Abjeto

"(...)

Procuro afogar no álcool

A tua lembrança

Mas noto que é ridícula

A minha vingança”

CARTOLA – Peito Vazio

Há alguns dias parei de beber, não estava sendo tão difícil como eu pensava. Num ímpeto de emoção joguei as minhas garrafas de uísque e gim pela janela, e elas estilhaçavam-se lá embaixo, no asfalto, enquanto minha mulher rompia num frenético bater de palmas, tomada de alegria pela minha decisão. Ela me largou ontem, soube da Glória.

Mas eis que agora me tenho debruçado sobre mesa da cozinha, e na minha frente uma garrafa de gim que eu encontrei no fundo da minha despensa, agora vazia. Meus olhos fitam a garrafa: vejo através do líquido em seu interior, transparente como água, e me perco nas memórias: sinto saudade de Marta, minha ex-mulher, de Glória, que se foi também, me lembro das dívidas e dos meus bolsos vazios. Tenho mil motivos para esvaziar esta garrafa num só trago, mas mantenho-me resignado, pronto para atirar este gim lá na rua também.

Precipito-me para a garrafa e vou em direção à janela, faço menção de arremessá-la, mas estanco: sinto que a garrafa pesa, sinto o peso da garrafa na minha mão, o peso familiar da garrafa que eu tanto conhecia, o vidro, a limpidez do vidro, a textura do vidro, a lisura do vidro, a lisura do líquido descendo pela minha garganta, a boca, o gosto de gim na boca.

Volto com a garrafa. Pouso-a sobre a mesa outra vez. Penso em ir dormir. São dez da manhã.

Dormir, excelente solução. Não percebe quem dorme o tempo passar. O sono é uma tesoura que corta o tempo, que é um barbante, um longo barbante rompido em dois pontos, um no momento em que se dorme e o outro quando se acorda. Quando despertamos esse barbante é emendado novamente e o fio cortado são as horas passadas despercebidas, pela mágica do torpor. Queria dormir pelo resto da vida.

Vou para a cama. Levanto-me dois minutos depois. Ligo a TV. Desligo. Abro um livro. Fecho. Nunca fui muito de ler, e não será agora, numa crise de abstinência como essa, que eu vou me preocupar com os devaneios desses escritores idiotas.

Volto a encarar a garrafa, minha boca está sedenta por álcool. Mantenho-me forte, não posso mais beber. Pergunto-me: por que não beber? A quem mais devo satisfações? Não, não posso pensar nisso, não posso mais beber e acabou. Minha vida não faz mais sentido, pelo que mais eu vivo? Não posso mais beber. Não tenho mais dinheiro, Glória levou tudo, Marta, o resto. Não posso mais beber. Não tenho emprego. Não posso mais beber. Vou perder a casa. Não posso mais beber. Não, não posso mais beber...

***

Naquela tarde algo voou pela janela do prédio, e não foi uma garrafa de gim.

Marcel Sepúlveda
Enviado por Marcel Sepúlveda em 22/09/2014
Código do texto: T4971651
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