DTRL 18 - A nem tão simples mente de Joseph Carter e sua impressionante criação.

Para Lílian.

I - Inverno.

A noite caiu finalmente. Acendi algumas velas pela casa: na cozinha, no banheiro, nos vários quartos, e uma na pequena janela do sótão.

Eu gostava do sótão, e passava muito tempo ali. Desde a chegada do inverno, a neve impedia-me de ir até a cidade buscar óleo para os lampiões: portanto, velas.

É sempre aconselhável tomar essas medidas como precaução para quando essa temível estação está a ponto de chegar. A neve é tanta que deixa todas as estradas inutilizáveis. Mas gosto do inverno. O frio é bom. É tão natural, tão implacável.

Bem, estou morando atualmente sozinho nesse casarão, herança de meu mui rico e admirado pai. Um mequetrefe sem igual, se quer minha opinião. Se você não o conheceu, sorte a sua. Seu fim foi prematuro, eu era apenas um jovem então: quando criou o costume de agarrar uma das empregadas em variados quartos da casa.

Vai ser nosso segredinho, certo, pequeno Joseph? Nosso segredo de cavalheiros.

Segredos de cavalheiros é o inferno.

Pego uma taça de vinho, acendo a lareira e me sento na poltrona vermelha, também herdada. O frio penetra o ambiente, mas as ondas de calor que se soltam do fogo deixam o recinto habitável. Ouço os fantasmas perambulando pelos quartos e corredores, já acostumado com isso. Não mais me importo com estas pragas. Aliás, não deve se preocupar com os mortos: eles não o farão mal.

Os vivos, eventualmente, farão. Não gosto dessas entidades, mas é o preço que se paga. Ter feito o que fiz.

Sempre se paga algo.

II - Quadros e bonecos de cera. Sexta feira, 6.

Deitado no piso do sótão, olhando pela minúscula janela, me sinto bem. Rodeado por lembranças, físicas ou não, deixo livre minha mente para ir onde quiser. Alguns dos bonecos de cera me fitam, sem expressão alguma, os olhos abertos contemplando a eternidade à eles atribuída, inanimada.

Se você disser algo, moleque, eu vou te trancar naquele porão e te deixar sem comida.

Acendo uma vela para substituir a que havia acabado de se apagar.

Do lado de fora a neve cai sem parar. Por debaixo da espessa camada de gelo, está o chão de cascalho, por onde te vi correr descalça. Me recordo de seu sangue, escorrendo lentamente das solas dos seus pés. Por que fiz aquilo?

Eram outros tempos, afinal.

Não eram?

Por um momento, meus olhos me pregam uma peça de mal gosto: um vulto, caminhando entre a tormenta, vindo em minha direção. Tão frágil! Mas logo, retorno à realidade, retomo a sanidade.

Ao levantar vejo alguns retratos de minha autoria. Várias pessoas, apenas seus rostos. Na maioria adultos, mas também algumas crianças, e por fim uma tela em branco. Meu demônio. Dei esta obra às estações do ano (dos anos!), e mesmo assim não progredi um traço sequer.

“Por que você pinta esses quadros?”. Eu amava suas perguntas.

“Para tornar eterna a beleza, ora. Um dia ela há de perecer, isso me entristece muito… A vida é algo tão frágil, e passa tão rápido: não pode, também, passar despercebida.”, respondi, vendo seus lábios se abrirem num sorriso. Que sorriso!

E as noites foram passando, uma após outra, até que uma delas levou-a consigo. Deixando a tela reservada para o seu esplendor intacta, branca, crua.

III - Excesso de tinta, vinho e devaneios. Domingo, 8

Adormeci na noite passada, olhando através da janela.

Os fantasmas começaram a fazer mais barulho que o usual.

Eu te avisei. Ah, te avisei…

Minha cabeça dói. Sinto sua falta. Sinto tanto.

IV - Culpa. Segunda feira, 16.

Já não aguento mais. Estou enlouquecendo. Por que Diabos eu fiz aquilo? Por que?

Quero me redimir, por Deus, quero apenas isso. Assim que o inverno passar, vou me entregar. Esses malditos bonecos de cera estão tentando até o impossível para levar minha sanidade embora.

Mas afinal, eu os criei.

Será que já fiz algo certo nessa existência?

V - Tormenta.

Minha querida, já não consigo me lembrar em que dia estamos. A tempestade lá fora finalmente deu trégua. Alimentei o fogo da lareira com alguns quadros. Me sinto um pouco melhor.

O inverno está se aproximando de seu fim, assim como eu do meu.

VI - Promessa.

Querida, o quadro está quase pronto! Não consegui retratar algo muito feliz, lamento por isso.

As velas estão acabando, mas já começa a clarear. Uma promessa, quem sabe? Uma luz no fim do túnel.

VII - Silêncio.

Os fantasmas silenciaram. Resolvi retomar o trabalho artístico, e isso está me fazendo muito bem. No começo, tive dificuldades com o manejo das agulhas e da tesoura, mas logo me lembrei de como deveria dividir os dedos na agulha, espetar e puxar, com suavidade.

Posso ver que o quadro que estava pintando é digno de elogios, e não poucos. O retrato mostra a realidade nítida e gritante: a arte sabia do resultado antes mesmo do artista, minha querida. Minha cara. Consegui, feito realizado por poucos, transformar a dor em tarde, a morte em vida e expressão com tanta clareza meu universo – estrelas gigantes, isoladas, perdidas - quanto os primeiros dias de primavera expressam sua beleza.

A água congelada parou de cair lá fora, mas agora cai líquida de meus olhos. Para a pintura, usei toda a tinta que me restava: posso sentir o veneno impregnando minhas veias. Para a outra parte da obra, as velas caíram muito bem! Restou apenas umas.

Creio que atingi comigo mesmo meu ápice, minha apoteose. Que obra de arte! Agora, preciso apenas perdurar, atravessar a tênue linha entre a vida e a morte. Deixei alguns quadros juntos de suas inspirações, para que saibam como eu me sentia, pelos meus próprios olhos. Clarões evidenciam os trovões que já não mais ouço. Foi doloroso o processo, o manejo das agulhas, mas valeu a pena. A voz de meu pai silenciou. Silenciou, me deixou enfim.

Estou indo ao seu encontro, querida. Espere por mim.

VIII - Fogo.

Retirei todos os corpos de dentro do casarão. Deixarei este diário como legado, as instruções claramente detalhadas em páginas amareladas, junto da confissão. Essas pessoas devem saber quem eu fui e porque fiz essas coisas.

Esparramei móveis pela casa e fechei a saída de fumaça da lareira. Acendi a última vela na janela do porão, para guiar-me até ti. Nosso amor, que se fez entre fogo e vinho, deve nos unir uma vez mais.

Agora falta pouco, querida Lílian.

Falta pouco para que eu possa novamente te ver, te ter novamente em meus braços, num abraço apertado. Te beijar, seus doces lábios, sentir seu belo corpo em contato com o meu. Ainda me lembro daquela vez em que dançamos à luz da lua e das estrelas, e depois dormimos no chão, sobre um lençol estendido, em frente a lareira. Sequer precisamos acendê-la! E do fogo, o nosso, fez-se amor, em sua forma mais pura. E, adormecida em meu peito, sentia sua respiração lenta, ouvia seu coração batendo, suave.

E adormeci fitando sua face, angelical, a pouca luz refletida pela lua deixava seu rosto ainda mais belo. Me senti um menino naquela noite, feliz, livre de qualquer malícia. Livre.

IX - Tênue linha, minha querida Lílian. Todos a enfrentamos um dia, apenas uma vez.

Vejo o casarão arder. Abro um sorriso, ou ao menos tento (a cera dificulta um pouco minhas ações).

Quebrei duas taças do mais fino e caro cristal, reduzindo-as a pouco mais que pó, e misturei os resíduos à uma garrafa de vinho. Que o rubro do vinho se una ao meu. Me deito ao lado dos corpos dos meus familiares, e ao lado do seu - minha noiva, não esposa! Fugiste antes que eu pudesse te chamar de família! - preservado após os anos. Que meu corpo una-se ao seu.

A cera há de impedir as intempéries do tempo, preservando minhas feições. As costuras estão firmes: meus olhos irão contemplar o eterno que tanto almejo. Sinto o seu calor chegando até mim. Está na hora.

Querida, eu te amo.

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Tema: Crimes Passionais.

Gostaria de mandar um grande abraço pra todos aqui no Recanto das Letras: com seus conselhos, dicas, críticas e elogios, me fizeram evoluir. Devo muito à vocês.

Este texto é dedicado à todos que participaram do meu processo de evolução, desde o DTRL 15. Eu estaria a mercê não fossem seus comentários.

De coração, estou muito grato.

Miguel Bernardi
Enviado por Miguel Bernardi em 25/09/2014
Reeditado em 26/09/2014
Código do texto: T4975540
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