O Sabá dos Vencedores - DTRL 18

A escritora procurou mais uma vez, sem esperanças, o seu nome na lista de aprovados. Não estava, como já deveria saber... Bem, não era isso lá grande coisa; uma linha a mais em sua infinita lista de fracassos. Já ia baixar a tampa do notebook quando uma janelinha pulou, sem convite, à sua frente.

“Problemas para realizar seus sonhos? Clique aqui!”, as letras laranja brilhante saltitavam em um fundo roxo fosco.

Ela normalmente não cederia a um spam tão óbvio, mas estava se sentindo tão para baixo que acabou clicando. Não demoraria muito para formatar o computador de novo, mesmo. Foi esse desleixo que acabou selando seu destino.

Uma nova janela, com fundo verde-limão, convidava-a a digitar seu nome, idade, e o sonho que pretendia realizar. Encolhendo os ombros, ela revirou os olhos, deu uma risada e levou os dedos ao teclado.

- Eugênia... 23... Quero ser escritora. Uma grande escritora.

Contudo, seu sorriso morreu de repente. Assim que, distraidamente, tocou em “enter”, a tela de seu notebook escureceu e, por uma fração de segundo, a sombra de um rosto piscou de suas profundezas. Eugênia recuou e, ao mesmo tempo, um barulho violento de porta batendo a fez gritar.

Tentando manter a calma, ela cruzou com meia dúzia de passos a copa da casinha de madeira onde morava. Abriu a porta dos fundos, que havia acabado de bater, e deu uma olhada rápida na área de serviço e no quintal. Alguns cachorros e gatos brincavam malevolamente, trepando pelas árvores e se mordendo uns aos outros. Os limites do vasto terreno eram arbustos muito verdes e insondáveis, aliados das altas copas floridas de antigas árvores opressoras.

Eugênia suspirou, voltando para dentro de casa. Fechou a porta atrás de si, só por precaução. Bebeu um pouco de água e foi ver um pouco de TV, esquecendo-se da sua estranha experiência na internet – apenas mais uma entre tantas. Só mais tarde, quando o dia dera lugar a uma noite escura, a aspirante a escritora decidiu ver a quantas andava o mundo virtual.

Assim que mexeu no teclado para ressuscitar o notebook, percebeu que a janela onde havia digitado seus dados se transformara em uma caixa de diálogo. Com um arrepio na espinha, Eugênia leu a mensagem que recebera:

“Olá, Eugênia. Estou vendo que você tem uma ambição bem grande, hein? O que acha de fazer parte de um grupo de pessoas como você? :)”

Com direito a carinha feliz no final! Quem é que estava assim tão interessado em sua vida? Começando a ficar com medo, Eugênia chegou a procurar a opção “fechar” para a caixa de diálogo, mas em seu pânico não conseguia encontrar nenhuma. Então bateu com força a tampa do notebook. Depois agarrou um livro próximo, de Borges, e começou a ler em voz alta. Acabou dormindo.

No dia seguinte, Eugênia prosseguiu como sempre fazia. Levantou-se cedo, arrumou-se e partiu para uma escola próxima, onde dava aulas de inglês para crianças. Não se lembrava mais do incidente da véspera até o primeiro intervalo, quando pensou em ir até uma padaria próxima para comprar umas coxinhas. Percebeu o celular vibrando no bolso do casaco e o tirou mecanicamente do bolso. Era um aviso de e-mail.

“Olá, Eugênia, por que não nos responde? Gostaríamos tanto de ajudá-la...”.

Eugênia ficou com tanto medo ao ver que seu e-mail havia sido descoberto que atirou o celular a um metro de distância. Um garotinho louro ficou olhando, de boca aberta. Não é todo dia que se vê a professora surtar.

Em vez de coxinhas, Eugênia terminou comprando uma coca-cola para se acalmar. Lembrou-se que poderia ter uma gastrite e decidiu empurrar um pão de queijo para preservar as paredes do estômago. Sentou-se a uma mesa para dois, encostada na janela da padaria, e agiu naturalmente quando um estranho, usando boina e cachecol xadrez, ocupou a cadeira diante dela.

- Olá, Eugênia. Está tendo um bom dia?

Percebendo que jamais o vira antes, Eugênia teve um péssimo pressentimento e quis fugir, mas percebeu que derramaria toda a coca-cola se fizesse isso. Se estavam em um lugar público, ele não poderia fazer nada contra ela. Talvez.

- O que você quer? Como me achou aqui? – perguntou discretamente, mas muito assustada.

- Nós somos muito poderosos, Eugênia. Você não vai se arrepender de se juntar a nós.

- Nós quem?

- Somos os vencedores. Nada mais do que isso.

- E eu sou uma perdedora. Não daria muito certo.

- Eugênia, você não sabe o que o futuro lhe reserva. Eu posso olhar para você e garantir que vai crescer muito mais do que acredita ser capaz. Não costumo errar em minhas previsões, pode acreditar. Você é especial.

Ele parecia tão sincero e confiável. Eugênia vacilou.

- Acredite em mim... Confie e tudo dará certo. Sua fé fará com que tudo funcione.

Quando ele se foi, Eugênia estava um tanto abalada e confusa. As próximas aulas que deu foram as piores de sua vida; estava com a cabeça muito longe. Quando voltou para casa, abriu o notebook mecanicamente e começou a escrever, como se alguém lhe estivesse ditando. Usou praticamente os mesmos rascunhos que já tinha, mas acrescentou elementos-chave, cenas eróticas a cada capítulo, mortes violentas e um romance insuportável que se arrastou por páginas e páginas.

Ao terminar seu trabalho, nem ela conseguiu reler. Fechou o computador, enojada e exausta, e foi preparar aulas para a semana seguinte.

Alguns dias depois, Eugênia foi pega de surpresa ao encontrar no Facebook uma página dedicada somente a ela. Um livro que mal se lembrava de ter escrito, com uma capa que nunca vira antes, era exposto à exaustão, com várias fotos da “autora”, que ela certamente não havia tirado. Muita gente marcava aquelas postagens com sinal de positivo.

Ela só pôde deduzir que seu computador era metodicamente violado e seus textos e fotos, roubados. Entre o choque e o pavor, Eugênia terminou achando que aquilo não era assim tão ruim. Principalmente quando recebeu pelo correio ingressos para a Bienal do Livro em São Paulo e um e-mail marcando suas passagens para o próximo fim de semana.

Eugênia se apavorou, pois não conhecia São Paulo, mas uma força desconhecida a impulsionava sempre adiante. Quando chegou lá foi recepcionada por algumas mulheres muito simpáticas, que a levaram a um hotel cinco estrelas. Um táxi executivo a levou até o evento, durante todos os dias de sua duração.

A cada vez que lá chegava, era recebida com gritos e palmas, tinha de dar centenas de autógrafos em um livro que mal reconhecia como seu. Queriam entrevistá-la, mimá-la, tocar nela. Por alguns momentos, aquilo foi bom, mas logo Eugênia estava com vontade de chorar e ir para casa. Aquelas pessoas fanáticas tinham um quê de doentio, e ela estremecia de medo ao encarar seus olhos vidrados, as mãos grudentas e suadas esticadas em sua direção.

Ao final da semana de duração do evento, recebeu uma ligação da dona da escola de inglês onde trabalhava, comunicando-lhe que estava demitida. Com isso, Eugênia caiu violentamente de volta à realidade e começou a pensar como havia chegado àquele ponto. Entretanto, as simpáticas pessoas que haviam cuidado dela apareceram ao hotel para buscá-la e ela se esqueceu do problema que teria de enfrentar.

Uma das mulheres disse a ela que passariam em um lugar muito especial antes de se dirigirem ao aeroporto, e Eugênia nada teve a objetar. Seguiu-as mansamente e terminou dormindo no carro.

Acordou enquanto estacionavam nos fundos de um belo jardim. Pertencia este a uma mansão magnífica, que deixou Eugênia de boca aberta. Foi entrando com as mulheres sem perguntar nada, e só lhe disseram que à noite haveria uma grande festa. Ela estava mais do que farta de festas, mas não quis ser mal-educada e resolveu passar o resto da tarde passeando pelo lindo jardim.

Eugênia caminhou um pouco, sozinha, por entre as cercas-vivas floridas, mas logo algo lhe chamou a atenção: não havia passarinhos ali, nem nenhum animalzinho que se costuma encontrar nesses lugares. O silêncio era quase absoluto, a não ser pela canção das árvores sob a brisa suave. Aquele som a fez lembrar-se de casa, e sentiu saudades. Estava arrependida de ter ido até ali.

De longe, ela avistou uma fonte jorrando água e quis ir ver mais de perto. A fonte ficava em um ponto mais elevado, e o efeito era bonito com o sol batendo; podia ver um milhão de arco-íris. Deu um leve sorriso enquanto subia o morro, mas quando chegou até o pico sufocou um grito de horror. A fonte tinha o formato de uma horrível gárgula, com chifres e asas de morcego, que contorcia o rosto em uma careta estupenda.

O susto que levou a fez levar a mão à cabeça. O dia tão lindo estava ficando cada vez mais nublado, e Eugênia decidiu implorar para que alguém a levasse para casa.

Porém, quando entrou na linda mansão, ela não encontrou ninguém, absolutamente. Primeiro bateu na porta, depois a abriu, entrou timidamente, chamou, gritou, e nada. Tocou uma campainha em cima da mesa e se sentou para esperar. Depois de vários minutos, começou a ficar impaciente e andou por toda a casa, irritada. Abriu os armários, olhou por baixo das camas, até que finalmente se convenceu de que a casa estava completamente vazia.

Já anoitecia quando Eugênia voltou ao jardim para procurar ao menos o carro que a trouxera. Mas não havia nem sombra de meio de transporte por ali. A pobre escritora correu de um lado a outro, procurando uma rua, um caminho para fora daquele lugar isolado onde a haviam deixado, mas nada. Amaldiçoou-se por ter dormido na viagem; agora não sabia por onde escapar dali.

Percebeu que havia esquecido a bolsa dentro da casa, mas não teria coragem de entrar de volta. Enquanto a lua ganhava destaque no céu cada vez mais escurecido, Eugênia lembrou-se da horrível gárgula, e pela primeira vez se perguntou qual seria o preço por todos os benefícios que recebera na última semana.

Apavorada, Eugênia decidiu apenas correr, correr e correr, sem saber para onde, mas logo a noite fechou seu cerco ao redor dela, e mesmo a lua foi coberta por camadas e camadas de nuvens escuras. Sem enxergar um único poste de luz, ela esbarrou em um vulto alto, que usava uma boina e cachecol.

- Só mais um pouco, Eugênia... A festa já vai começar – disse uma voz, que ela reconheceu como a do homem com quem havia conversado na padaria.

Ela deu alguns passos para trás e acabou esbarrando em mais alguém. Estava um pouco aliviada por não estar mais sozinha naquele lugar escuro. De repente uma forte luz irrompeu a alguns metros dela. Uma fogueira acabava de ser acesa, permitindo que ela visse um verdadeiro círculo de gente em volta de si. Reconheceu algumas pessoas que vira nos últimos dias.

- Só falta uma coisa para que você seja uma eterna e absoluta vencedora – disse uma das mulheres gentis – Você precisa se consagrar ao nosso grande protetor.

- Como assim? Me consagrar ao quê? – ela perguntou, mas mal pôde ouvir a própria voz sob a cantiga estranha que todos começaram a cantar.

Eugênia desviou o olhar para a fogueira e deu um pulo para o lado quando viu que as labaredas formavam a imagem de uma horrível gárgula, como a que vira na fonte. Havia algo muito estranho ali. As chamas ficavam cada vez maiores.

- Esperem! – ela gritou o mais alto que podia – Eu não quero mais fazer parte disso! Não quero me consagrar a nada, quero só voltar para casa!

- Voltando atrás, Eugênia? – o homem da boina voltou-se para ela, saindo de seu lugar no círculo e forçando-a a chegar cada vez mais perto da fogueira – Agora que experimentou o sucesso, acha que vai conseguir voltar a sua vida de antes?

- Tenho certeza! Não gostei nada disso, e nem ao menos queria ter escrito aquele livro horrível!

- É uma pena... Agora é tarde para desistir! Eu disse que raramente me engano, Eugênia! Você pode ir muito longe! A não ser que prefira a morte!

Notando a fogueira cada vez mais próxima, Eugênia conseguiu se desviar no último momento das chamas. Mas não poderia continuar contando com a sorte.

- Tem uma coisa que todo mundo sabe, Eugênia, mas você talvez não. Escritor bom é... Escritor morto!

Cercada, a pobre garota não tinha mais para onde correr. O círculo de gente em torno dela se aproximava lentamente, sempre murmurando uma estranha canção antiga.

- Dê um viva a Lúcifer! Renda-se ao mestre e quem sabe ele permita que continue vivendo!

Saudar o Diabo? Eugênia estremecia, tentando calcular suas chances naquele lugar desconhecido, contra tanta gente capaz de qualquer coisa. Tudo o que queria era que aquilo jamais tivesse acontecido e pudesse voltar para casa.

“Se eu tivesse fé em Deus, não estaria com medo do Diabo”, pensou, e deixou que o terror guiasse suas próximas atitudes.

- Eu aceito! Viva Satã! Viva qualquer coisa! Me deixem em paz!

A música diabólica parou. O círculo humano começou a recuar, deixando no centro apenas Eugênia e o homem da boina, que ficou entre ela e a fogueira. O rosto dele ficava bem emoldurado pelas labaredas demoníacas e praticamente se encaixava nelas.

- Que bom que resolveu ser razoável, Eugênia. Agora podemos conversar direito.

Então o homem finalmente tirou a boina da cabeça e atirou-a ao fogo. Eugênia deu um rápido grito ao notar que ele tinha chifres, como os de um bode, destacando-se dos cabelos enrolados.

- Você está prestes a receber a maior honra de todas: a minha marca.

A escritora teve a impressão de que ele tirava as próprias roupas, mas logo começou a sentir tonturas e perdeu a consciência.

Seis meses depois, Eugênia trabalhava furiosamente diante de seu novo notebook. Este era o mais caro do mercado, mas ela logo se desfaria dele, porque agora só gostava de ter em casa aparelhos com cheiro de novo. Por falar em casa, ela não havia retornado para aquele casebre de madeira no cafundó do Judas; escolhera uma bela cobertura em Balneário Camboriú para manter o respeito.

Estava mais do que cansada, mas precisava terminar aquele livro com urgência ou seu chefe ficaria muito, muito zangado. Ela não queria isso. Não queria mais nada que não fosse realizar os desejos dele e vê-lo feliz. Era realmente um alívio não ter mais opinião própria. Seu sonho estava realizado, não estava? E ela havia conseguido sobreviver. Mais do que isso: havia se tornado quase uma das favoritas.

Levantou-se por um minuto para olhar-se no espelho. Levou os cabelos para trás das orelhas, mas desfez o gesto rapidamente quando viu os chifres. Sim, dois pequenos chifres de bode começavam a lhe despontar do alto da testa. Sorriu levemente: o chefe sempre tivera razão. É preciso ser muito especial mesmo para merecer uma honra como essa.

Tema: sociedade secreta, desejo, profecias