437-O FANTASMA VINGADOR-Crime e castigo

Sem querer, Zequinha Pituba se viu envolvido numa guerra de gangues. Começara no ofício há alguns anos, ainda garoto, como aviãozinho. Foi subindo na escala do crime e agora o que era simples entrega de mercadoria a clientes já determinados, transformara-se numa guerra pelo controle dos postos do narcotráfico. Apesar de todo o cuidado – inclusive tento negociado os trabalhos da Véia Candu para fechar o corpo contra agressões dos inimigos – nem sentiu os tiros disparados por trás. Tombou ali mesmo, no beco pelo qual sobe todas as noites, rumo ao barraco.

Foram feitos muitos disparos e três atingiram Pituba. Dois na cabeça e um no braço esquerdo. Nenhum deles foi fatal. As balas na cabeça apenas arranharam o couro cabeludo. Pituba, homem vigoroso, logo voltou a si, quando estava sendo arrastado por dois homens, subindo o beco. A dor no braço era insuportável. A cabeça explodia em luzes amarelas e roxas, um zumbido horrível como se uma serraria tivesse sido colocada em funcionamento dentro do crânio. As costas queimavam pelo atrito contra o solo.

Deixou-se ser arrastado, enquanto a consciência ia retornando aos poucos. Puxado pelos pés, não tinha como se safar. Abrindo os olhos, viu as paredes dos barracos passarem ao seu lado, em movimentos descontínuo, pois os algozes caminhavam descompassados. Levantou um pouco a cabeça, o tanto quanto lhe permitiam a dor, o zunido e os raios de dor. Viu os dois pelas costas. Imediatamente, soube que tinha sido alvo de uma emboscada e que haviam tentado matá-lo.

Ainda bem que tenho o corpo fechado. Vou fingir de morto e tentar escapar. Mas pra onde estes disgraçados estão me levando?

Não durou muito a tortura. Apenas o percurso suficiente para chegarem até seu barraco, onde morava com a mãe e a Gringa, a companheira. Os dois o largaram e um bateu na porta. Pela fresta, uma réstea de luz e uma voz de mulher.

— Quem é?

— Achamo o Pituba ali embaixo. Parece que foi atirado. Tá morto.

Pela voz, reconhece o Dito Cafua. Agora em posição menos desconfortável, pois está deitado de lado, pode olhar para os homens que o arrastaram. Apesar da parca iluminação do local, reconhece o outro: Belezinho. Todos dois conhecidos seus, foram até amigos há tempos atrás.

Disgraçados! Me atiram e ainda me trazem pra casa.

O desespero das duas mulheres ao verem o filho e o amante jogado na soleira da porta foi indescritível. Acreditaram na palavra dos dois homens e o trataram como morto. Amorosamente e com grande esforço, o carregaram para dentro de casa, limparam-no, trocaram de roupa e o deitaram sobre a cama. Apesar das dores que sentia e do grande sofrimento que via nas mulheres, em nenhum momento abandonou a idéia de fingir-se de morto.

É o único jeito de ficar vivo. Se desconfiarem que não morri, voltam e me liquidam no ato.

No morro, tudo se resolve por caminhos à margem da lei. A certidão de óbito veio por vias indiretas. Não houve velório. E o enterro no cemitério do Caju foi providenciado logo nas primeiras horas da manhã.

Durante o resto da noite e as horas do amanhecer, o morto-vivo teve momentos de inconsciência. Voltava a si e mantinha-se firme, sem denunciar seu estado real. A fome e a dor dos ferimentos faziam que ele, cada vez mais, se assemelhasse com o cadáver que pretendia ser. Nada o impediu, entretanto, de observar que Belezinho e Dito Cafua estavam presentes até no cemitério.

Agora mesmo é que tenho de continuar fingindo. Eles querem ter certeza de que morri e fui enterrado. Corja!

O caixão de preço modesto, de finas tábuas e ripas mal pregadas, foi forte o suficiente para manter a fina camada de terra. Durante o enterro, a consciência voltou plenamente ao suposto defunto.

Não posso ficar aqui muito tempo, vai faltar ar. Mas tenho de esperar todos irem embora.

Não havia como medir os minutos, por isso Pituba aguardou algum tempo indeterminado. Se foram quinze, vinte minutos ou uma hora, não poderá saber. Forçando a saída com o braço direito para cima, logo sentiu a terra fofa caindo pelos vãos da madeira quebrada. Mais alguns movimentos eficazes e vigorosos e então vislumbrou a claridade do dia. A terra caía, enchendo o caixão, mas a vontade de se safar daquela situação foi mais forte que tudo, e eis o enterrado vivo já de fora da cova.

Olhou em todas as direções. Um grupo de pessoas a umas quadras além, circulava uma cova. Saiu com cuidado para não ser descoberto e aos poucos, entre um túmulo e outro, foi se limpando e ajeitando-se pra sair do cemitério.

Fraco, mas com invencível sede de viver, caminhou pelas ruas adjacentes, até que se orientou e tomou a direção de um hospital que, sabia, ficava perto. O sol da manhã já estava forte e queimava a moleira. As dores dos ferimentos aumentavam a casa passo. Ao chegar à porta do pronto-socorro do hospital, desmaiou.

Acordou ao entardecer. O sol penetrava pelo vitrô e as sombras se alongavam. A enfermaria estava cheia, e havia grande movimento de enfermeiras, médicos, auxiliares e parentes de doentes. Pituba passou a mão pela face, sentiu a cabeça latejando. O braço esquerdo estava com curativo à altura de onde a bala penetrara. Com os dedos da direita, sentiu a cabeça enfaixada da testa até à nuca. Uma enfermeira se aproximou:

— Acordou, meu nêgo? Ainda bem. Temos de saber quem é você. Tá sem documento, sem dinheiro, nada.

— Cadê minhas roupas?

— Tão aí, nessa cadeira ao lado.

— Quero levantar. Quero ir embora.

— Tudo bem. Mas antes tem de passar pela portaria pra falar quem é você.

A moça o ajuda a vestir a roupa. Sente-se bem. Recuperado pelos medicamentos e pelo soro que recebeu. Calça os sapatos e dá os primeiros passos.

— Tudo Bem. Estou legal.

Ela o toma pelo braço e o leva até à portaria.

— Sente-se aqui. Vou falar com a secretária. Ela vai te chamar daqui a pouco.

Fingindo obediência, ele senta-se. A portaria regurgita de gente entrando, saindo, falando, usando celulares. A enfermeira dirige-se à colega, que lhe lança um olhar desinteressado, só para verificar. Observa a enfermeira voltando para a ala dos doentes.

Sem se preocupar, Pituba levanta-se e sai do hospital.

E agora? Se apareço em casa, a Gringa e minha mãe vão levar o maior susto. E os bandidos, sabendo que voltei, vão me procurar de novo. Mas tenho de voltar. Pegar dinheiro e o berro.

Espera anoitecer. Furtivamente, chega até a casa. Sabe como penetrar pelos fundos, o que faz com facilidade. Pretendia apenas pegar a arma e dinheiro. Mas não teve como evitar o encontro com a mãe.

— Cruzes! É um fantasma! — gritou a mulher. — Ave, minha Nossa Senhora!

— Sssshiiiiiii! Não sou fantasma não, mãe. Tou vivo. Fala baixo.

A mãe obedece e cochicha:

— Mas eu vi ocê morto!. Juro que vi!

— Tava fingindo. Agora, fica quieta, num faz alarde. Cadê a Gringa?

— Foi no mercadinho.

Em movimentos precisos, Pituba retira um maço de notas de uma gaveta, e o revólver de outra gaveta. Da cama, retira um lençol, que dobra, fazendo um volume pequeno. Como entrou, sai pelos fundos.

Na manhã seguinte, dois cadáveres são encontrados nos becos da favela: Belezinho e Dito Cafua. As balas certeiras atingiram os dois no mesmo lugar: na testa. Os olhos do mortos, arregalados, denunciavam uma ultima visão de terror.

— Eu vi, juro que vi — falava uma mocinha, com a face aterrorizada, entre soluços. — Foi um fantasma que matou o Dito. O corpo enrolado num lençol branco.

— É isso mesmo! — Confirmou outra testemunha, que vira Belezinho ser atirado. — E a cabeça tava toda enfaixada.

Antonio Gobbo

Belo Horizonte, 5 de junho de 2007 –

Conto # 437 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/09/2014
Código do texto: T4979948
Classificação de conteúdo: seguro