Exército anônimo – Híbrido - DTRL 18º

Tema: Guerra

Não tinha condições de sair daquele charco, mas punha força nos braços e tentava alcançar alguma parte seca do solo. Sem sucesso e banhado de suor e imundície, recostava a cabeça e tronco no amontoado de restos humanos em decomposição, e segurava o fuzil cujas balas pouco protegeriam o que sobrara da sua integridade física, mas serviriam ao menos para dar cabo de sua vida caso restassem forças suficientes para puxar o gatilho. Respirava descompassado devido à máscara anti-gás e sem saber se o que o afligia em maior intensidade era a fome, sede ou aquela agonia constante. Não se lembrava da última vez que havia se alimentado e parecia que fora há semanas. Sentia um formigamento intenso um pouco abaixo da virilha e em alguns momentos, o corpo desligava as sensações deixando-o em estado letárgico. Entretanto, o açoite provindo do calor dos raios solares o traziam de volta, de modo que ondas de mal estar o fazia sussurrar baixinho pelo término daquele sofrimento.

Tinha o corpo todo, ou o que sobrara dele, mergulhado em vísceras de coloração vinho enegrecida e óleo queimado, e o zumbido das varejeiras, cujos vermes se multiplicavam e vinham invadi-lo ainda vivo, aumentavam seu atordoo e minavam as esperanças de qualquer salvação. Quando os olhos recaíam nos retalhos humanos ondulantes e escombros que o rodeavam, sentia ânsias de vômito, mas não havia nada para pôr para fora. Vacilava na ideia de arrancar aquela máscara e envenenar de vez seus pulmões. Olhava para o céu rubro, outrora azulado, e não sabia se agradecia ou amaldiçoava a ausência das aves carniceiras. O ambiente era o retrato da hostilidade. Somente as baratas e os vermes eram capazes de sobreviver em um lugar como aquele.

Ao longe um tanque se aproximava lentamente, e na certeza do fim, dava vazão ao peso das pálpebras ao mesmo tempo em que lembranças bombardeavam sua mente.

“Os ponteiros do relógio no auditório marcavam dois minutos para meia noite, estava rodeado de outros jovens que assim como ele foram convocados para o teste àquelas horas. A Grande Guerra havia explodido no hemisfério oriental depois que o esforço pelo não desenvolvimento africano suportado na falsa ideia de aquecimento global e sustentabilidade utópica, fora desmascarado. As tensões se estreitaram em um grau onde a insânia apoderava-se valsando frouxa na mente dos Chefes de Estado. Na TV aberta os fatos ainda eram escondidos, já em outras mídias os discursos acerca das teorias conspiratórias com perigo biológico iminente, deixava o mundo sob alerta. Antrax, Ebola e o retorno da Gripe Espanhola disfarçada sob a sigla de H1N1, eram só uma amostra do que viria a seguir. Muitos jovens eram postos em linha de combate com aqueles uniformes de fibra de titânio e máscaras que pesavam mais do que suas cabeças, totalmente despreparados.

Ele estava lá, dando o melhor de si. Pensava nos louros pós-guerra, na moral que ascenderia, sobretudo, junto à família de Sarinha, a ruiva de olhar quente cuja família abastada não escondia o desdém para com ele. Despediu-se dela nas dunas de Fortaleza, e foi colocado no navio com um punhado de anseios junto aos inexperientes soldados. Seguiam inocentes moldados por mentiras que logo viriam à tona. No forte, tornava-se só mais um soldadinho de chumbo temeroso aos clarões das bombas nas linhas inimigas e a contaminação que pairava no ar. Percebia então que não havia lei na Grande Guerra, nem pensamento lógico algum. Via os superiores adentrando em cavernas e decapitando os adversários por puro sadismo e era só questão de tempo para também fazer o mesmo por medo do julgamento dos outros ou castigos por insubordinação.

No resto do mundo milhares de pessoas eram contaminadas por um vírus novo a cada dia, e abrigos surgiram albergando parte da população sob o solo e pondo fim no trânsito sobre a crosta terrestre. Armas modernas chegavam às mãos dos soldados, ainda que não soubessem usá-las corretamente. Tinham os corpos revestidos pelo uniforme anti-chamas, mas acidentes aconteciam em frequência assustadoras retirando-os de combate e os levando para lugares obscuros. Os inimigos, há muito, deixaram de ser conhecidos e aos poucos novos casos de híbridos eram constatados. Pessoas com o sistema nervoso central parcialmente comandado por emaranhados de fios e chips que recebiam ordens externas, teleguiados que eram interceptados lançando material contaminante em comunidades esquecidas que geravam aberrações. E nas noites de vigília o perigo tornava-se duplo.

A lembrança do som que a queda do míssil fazia, vindo na direção do forte, fora sua última lembrança antes de voltar à tona mais uma vez”

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Abriu os olhos e viu outros iguais a ele desembarcando daquele veículo. Os coturnos elevava a poeira na parte seca do solo de onde estudavam a área. Com alguma expectativa, ele levantou a mão como se mostrasse “Eu estou aqui! Vocês veem?”, mas a cena que veio a seguir deteve qualquer esperança: Um soldado chutava os membros daquele amontoado onde ele estava inserido. Aturdido, se imaginou diante dos oponentes e não dos aliados. Baixou a mão rapidamente, porém já havia sido avistado.

Os outros pararam sobre o corpo dele em um círculo de cabeças mascaradas, o ofuscar do Sol não deixava que fossem melhor visualizados. Sentiu o puxão que um dos soldados deu em seu corpo e desejou ter forças suficientes para ao menos esbravejar uma praga ante a dor que sentia.

Na parte seca do chão os outros o tocaram com as mãos enluvadas, de forma brusca a máscara foi atirada fora e ele temeu o contágio com o ar, mas já era tarde, pois o medo o fazia respirar rapidamente. Temeu um pouco mais ao ouvir o som da furadeira, e quando os membros inferiores foram levantados, o susto deixou-o sob espasmos enquanto a saliva espumosa escorreu pelos cantos dos lábios. Viu duas próteses de aço reluzindo diante dele e não conseguiu sentir nada além de espanto enquanto os outros desaparafusavam as peças que desejavam. Murmurava baixinho sentindo algo afrouxar em sua fronte e via um cilindro lustroso gotejante de líquido viscoso, segurado e lançado em uma grande bolsa, assim como o restante do material que também era surrupiado.

O cano do fuzil foi colocado entre seus olhos e por breves momentos ele reviu imagens criptografadas incutidas na parte do cérebro que lhe restava: um rapaz esquizofrênico que via surgir em um quarto escuro os seus quatro heróis, um ser incerto que alcançava a plenitude queimando qual Fênix, e um Corcel Negro - garboso e bravio -, que rumava adiante sem olhar para trás. A imagem de Sarinha não estava lá, era como se houvesse sido apagada assim como todo o passado vivido.

A arma foi baixada e o outro abanou as mãos dando de ombros o deixando a própria sorte. Viu os soldados se afastando e retirando tudo aquilo que podia ser reaproveitado dos seres incertos jogados naquele lodaçal. Rilhou os dentes grunhindo impotente sentindo os bagos de lágrimas escoarem. Respirou fundo resignado esperando que o beijo da morte viesse desligar o que havia lhe sobrado, mas ela negava aquele prêmio enquanto ele fechava os olhos pela última vez naquela condição.

Durante a noite vislumbraria uma nova concepção existencial e satisfaria a fome com a única carne à sua disposição.

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Tempo corrido e prazo já se esgotando, mas... eis a minha contribuição para a fogueira.

Sejam todos muito Bem-Vindos

Grata pela atenção!

Abraço!

Maria Santino
Enviado por Maria Santino em 12/10/2014
Reeditado em 15/10/2014
Código do texto: T4995853
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