O Diário da Motocicleta
 (Virginia Ossovski)

Maria Francisca estava com ódio. Já fazia quase duas horas que esperava pacientemente que o namorado terminasse de brincar com sua nova moto velha – que nem ao menos andava – e lhe desse um pouco de atenção. Ora, se ele não queria namorar, que a dispensasse; a fila sempre andava.

Era sábado e já passava das três da tarde. Maria Francisca havia vestido sua melhor roupa e queria passear, nem que fosse apenas para tomar um sorvete na esquina. Mas do jeito que as coisas iam seus planos já estavam mais do que frustrados. E ela não gostava nada disso.

Andando de um lado para o outro, a bela jovem deixava sua paciência esgotar-se cada vez mais rápido. O rapaz não dava sinais de que terminaria tão cedo; nem sequer fazia menção de soltar a chave de roda, com os dedos sujos de graxa. Examinava com preocupação quase carinhosa o motor desmontado da velha RX 81 (!).

Cansada de tentar chamar a atenção do namorado de forma carinhosa, Maria Francisca fez uma cara de arrepiar os cabelos – que ninguém viu – e gritou, furiosa:

- Eu queria ser uma moto, pra ver se você percebia que eu existo!

Maldita a hora em que a pobre coitada disse essas palavras carregadas de rancor! Infelizmente, de nada serviram. Sem erguer os olhos, o jovem continuava examinando sua querida lata velha.

Completamente furiosa, Maria Francisca saiu correndo e dando coices, desviando das árvores do jardim, na intenção de ir sozinha para a rua e procurar onde se divertir. Entretanto, quando quis se desviar da última árvore, simplesmente não conseguiu, escorregou e bateu a cabeça no tronco, indo ao chão logo em seguida.

Irritada, Francisca tentou se levantar. Esforçou-se um pouco mais do que esperava, mas terminou escorregando e caindo de novo.

- O que está acontecendo comigo? – perguntou-se, e ao mesmo tempo gritou para que o namorado desnaturado viesse ajudá-la.

Para seu espanto, assim que deu o berro, com todas as forças, tudo o que ouviu foi um som longo, estridente e irritante. Calou-se por um momento, assustada, tentando descobrir de onde viera aquele barulho horrível. Parecia tão próximo!

Não conseguiu identificar a origem do som, e também nada do desgraçado do namorado aparecer. Continuou a chamá-lo, cada vez mais brava, mas a zoeira em seu ouvido continuava, cada vez pior.

Pensando que acabaria enlouquecendo, Francisca se calou, um pouco tonta. Já nem se animou muito quando o namorado finalmente apareceu, girando a cabeça, tentando procurá-la, claro. Percebeu que ele a tinha visto e virou a cara para o outro lado, porque ainda estava muito brava com ele.

Sem se importar com isso, o rapaz se aproximou depressa, solícito, porém sem ajudá-la imediatamente. Começou a dizer coisas um tanto disparatadas.

- Como você veio parar aqui, amiguinha?

Francisca não respondeu, porque era mais do que óbvio que havia ido até ali porque ele não ligava para ela, e se tinha se machucado a culpa era toda dele. O que ele estava esperando para ajudá-la a se levantar? Com certeza devia ter quebrado algum osso; só não entendia direito o porquê de não sentir nenhuma dor.

- Alguém deve ter jogado você fora... que maldade!

Com certeza ela estava se sentindo desprezada... Bem, pelo menos o namorado estava começando a se dar conta do que fizera. Daqui a pouco poderia até pensar em voltar a falar com ele.

- Acho que não falta nenhuma peça... Isso é ótimo!

Mesmo sem entender direito o que o desgraçado estava falando, Francisca se sentiu contente por estar ao menos recebendo um pouco mais de atenção. Além do mais, ele finalmente estava gostando do que via nela!

- Tomara que ninguém venha procurar. Acho que vou ter que pintar de outra cor, por via das dúvidas. Quem sabe consigo cabritar o chassi.

O que aquele imbecil estava dizendo agora? Talvez estivesse pensando em pintar a casa outra vez. Era mesmo necessário dar um pouco de vida àquele amontoado de madeira podre.

Enfim, depois de tanto falar baboseira ele começou a se preocupar com o que deveria. Estendeu as mãos, fortes mas ainda bem sujas, para o rosto de Maria Francisca. Ela se espantou um pouco de estar sendo erguida pelas orelhas, mas não sentiu dor alguma. Parecia razoável a opção do rapaz, pois ela deslizava perfeitamente, guiada por suas mãos.

- Não se preocupe, eu vou cuidar muito bem de você agora.

Maria Francisca ia lhe dizer que já não era sem tempo, quando ergueu os olhos para o retrovisor da RX, um pouco à frente deles. O que viu, sendo arrastado pelo namorado, não era nada mais, nada menos do que outra moto!

O grito que soltou ecoou por vários quarteirões. Dessa vez, ela não teve mais dúvidas de onde aquela zoada partia. Vinha dela mesma.

- Puxa vida – resmungou o namorado – Vou ter que ver qual é o problema dessa buzina.

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 07/11/2014
Reeditado em 23/11/2014
Código do texto: T5027160
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