Fim da Linha

A família Stratford mudou-se para a grandiosa casa próxima a linha férrea da cidade. O Srº Stratford, economista renomado, possuía uma ocupação que lhe exigia constantes viagens e mudanças de cidade. Desta forma a Srº Stratford, mulher robusta de feições severas e o pequeno Richard sempre se viam em casas e cidades barulhentas e fétidas.

Quando Richard acostumava-se com o fedor e o barulho da cidade grande e com os meninos menos abastados da escola primária, logo era hora de mudar-se novamente. Sua mãe, frequentemente ocupava seu precioso tempo com jantares e reuniões organizadas por senhoras notórias da região, não menos solitárias do que ela, ou menos ricas, ou invejosas, amizades frívolas e frias.

Richard, também era solitário e seus amigos silenciosos eram seus pequenos brinquedos. Milhares deles: carrinhos de madeira ou metal, quantos quisesse ou quantos seu pai pudesse comprar para lhe suprir a ausência ou o afeto paterno. Soldados de chumbo em prontidão aguardam o ataque em um ponto no tapete da Índia, do outro lado um pônei de madeira lhe espera com um sorriso esculpido. Mas sua atenção está em outra coisa, o ferrorama que acabará de ganhar, sorria satisfeito enquanto o trenzinho de metal tremia, apitava e soltava uma fumacinha branca pela pequena chaminé, percorrendo as linhas férreas entre curvas, túneis e vales em miniatura, feitas de maneira rústica, algumas casinhas exibiam suas pequenas janelas acesas. Os pequenos cidadãos em expressões eternas e borradas acenavam felizes a quem quisessem os ver.

Apesar de sua mente infantil, sabia que aquele meio de transporte visto de perto por ele diversas vezes, lhe parecia mais um animal feroz feito de aço negro, que ao chegar rangia e bufava, suas rodas eram como garras que soltavam faíscas nas linhas, era belo e horrendo ao mesmo, para ele tão pequeno, toda vez que iriam viajar antes de adentrar na barriga da besta grudava nas saias de sua mãe.

Mas naquele instante era tão inofensivo quanto um gatinho. Então escolheu um boneco qualquer para compor um novo cenário, um que sempre desejou ver, colocou-o sobre a linha do trem e esperou que o pequeno trem viesse ao seu encontro. E esperou. O choque destruiu o pequeno cidadão, reduzindo-o a pequenas partes secas de cera. O menino parecia frustrado, recolheu os pedaços com seus dedos gordos e jogou-os no lixo, junto com o resto do ferrorama. Era um hábito destruir coisas...

Saiu para brincar na rua, quem sabe haveria de acontecer algo mais interessante. Levou sua bola vermelha para chutar indolentemente, caminhou próximo a área que ficava a alguns metros da linha do trem. Iria apenas observá-lo de longe, apenas o horizonte, para depois não levar sermões de sua mãe.

Desceu a rua íngreme de casas pobres que levava até a área e deparou-se com um menino maltrapilho a brincar com uma bola de meias velhas. Era tão magro que a roupa ficava solta em seu corpo, usava uma boina com furos e remendos, os olhos encovados estavam atentos aos movimentos da bola. Richard, reparou nos pés do menino e nos seus sapatos que pareciam ter tamanhos diferentes e a sola parecia gasta, e ainda usava um casaco xadrez desbotado muito maior que seu corpo. Era o tipo do qual sua mãe sempre lhe falara; pobres, desafortunados, aqueles que falharam na vida, preguiçosos, mortos de fome, vagabundos, aqueles que merecem morrer. Quando o menino notou a presença de Richard, ele apenas sorriu encabulado. Richard, notou os poucos dentes e sentiu nojo do pobre e desafortunado menino que parecia ter a sua idade. O menino o convidou para brincar em sua simples inocência, sem imaginar o abismo que separavam os dois. Richard hesitou, pensando em o que sua mãe iria pensar ao vê-lo mistura-se a alguém daquele tipo. Mas que mal faria apenas jogar bola por alguns minutos, pensou.

Os minutos tornaram-se horas, e os dois esqueceram que pertenciam a mundos diferentes. Cruzavam passes, defesas e o menino mostrou-se habilidoso. Por um descuido a bola vermelha suja agora de terra rolou até o fim da rua, chegando a linha férrea. Os meninos suados e ofegantes se entreolharam para ver quem iria buscar a bola. Richard, parecia mais ofegante que o normal, suas bochechas estavam vermelhas e os cabelos negros molhados de suor escorriam pela face.

Os dois meninos seguiram pela rua.

Chegando a linha férrea, olharam para o horizonte e não havia sinal de chegada de trens. Novamente os dois se entreolharam na decisão para ver quem iria buscar a bola. O menino notou um medo paralisante em Richard, franziu o cenho em desaprovação, como quem diz ´´ esse povo da cidade rica, tudo bicha`` e logo atravessou a linha para buscar a bola vermelha.

Súbito ouviu-se distante um apito, e um sino a ecoar. O menino apressou-se para sair com a bola, mas ao girar o corpo seu pé ficou preso entre os trilhos, malditos sapatos velhos, pensou.

Richard viu o monstro de ferro crescer no horizonte, uma figura negra envolta em uma crina de fumaça branca, um cavalo de aço negro vindo do inferno. O menino usou os dedos sujos para desamarrar os sapatos, mas os nós eram velhos demais, então, ele olhou para Richard com aqueles olhos lacrimosos de morte, o peito arfando, pedindo socorro e sua voz perdida em algum lugar, a mão estendida em súplica, ele negou ajuda, pois queria ver o boneco na linha do trem, enquanto o cavalo o engolia.

E o dividia em pedaços...

Tudo fora tão rápido, um instante tão magnífico e horrível, resumido a gritos de horror e choros de dor, a mãe do menino, uma lavadeira industrial prostrada no chão. A Srº Stratford a ralhar desesperadoramente com um menino em estado de choque. Policiais e médicos legistas a recolher o pouco que sobrou em cestos do menino que fora identificado posteriormente como Robert de apenas 10 anos.

E Richard cresceu, sem culpa ou remorso, pois sua memória apagou qualquer traço de culpa existente do ocorrido. Tornou-se líder das Indústrias Stratford S.A, importadora e Exportadora de produtos de diversos lugares do mundo. Seu falecido pai, morto em circunstâncias suspeitas deixará tudo sob sua responsabilidade e sua mãe senil e completamente insana, encontrava-se em um sanatório no interior da cidade. Mrº Rick Stratford, como preferia ser chamado, podia ter tudo o que desejava, e as mulheres da cidade, das mais recatadas às casadas estavam à disposição de sua cama. Enfim, era um defensor da boa moral e dos bons costumes da cidade e sua sociedade hipócrita e toda a sua gente sórdida.

Deitado em lençóis de ceda com uma bela mulher nua ao seu lado, esposa do prefeito. Ele aproveitava de seus dias e noites de glória. Abrupto ouviu-se sinos soando pela casa, três badaladas, sentiu cheiro de fumaça, fazendo as narinas arderem. Em suas memórias pueris, ele conhecia esse odor.

Uma pequena bola vermelha quicou pelo corredor, ecoando e rolando despretensiosa na escuridão. A mulher ao seu lado não se abalou, permaneceu como uma ninfa tranquilamente adormecida.

Levantou-se um pouco temeroso, seguiu o odor de fumaça, viu uma sombra muito pequena esgueirar-se por entre penumbra noturna, pelos corredores, unindo-se às sombras da noite, com a bola vermelha, única que possuía cor em seus pés. A figura negra, não parecia notar sua presença, apenas guiava de forma habilidosa a pequena bola, desceu as escadas até a porta do casarão que abriu-se em um rompante e a figura desceu pelas ruas da cidade noturna.

Rick com os olhos agora muito estufados de horror apenas viu aquela figura espectral em sua casa e a seguiu como em um encanto infantil. Nas ruas desertas, apenas um homem e uma sombra que o guiava até a antiga e desativada linha férrea da cidade.

A figura parou por um instante, colocou o pé direito sobre a bola e parecia encarar o homem, um rosto sem face, de modo que não podemos saber qual era sua expressão. Rick franziu o cenho, sem entender o que se passara ali, então, de muito longe, ouviu-se um apito incomum, distorcido e muito agudo, de forma que feriu os seus ouvidos. Rick colocou as mãos nos ouvidos, para protegê-los daquele som medonho. Eis que no horizonte surge um gigante de ferro, vindo do inferno, sua fumaça é vermelha como sangue o cheiro de enxofre empesteia o ar e suas luzes são dois olhos amarelos brilhantes, sua estrutura parece pulsar e tremer.

Horrorizado, Rick não percebe que seus pés estão presos nos trilhos por um lodo negro. Ele pode sentir o chão vibrar, e tremer e antecipar a sua própria morte. O cavalo do inferno cavalga nos trilhos e clama seu sangue, seus cascos em milhões de patas negras faíscam em fagulhas iridescentes. Rick olha para a sombra ao seu lado que apenas espera, e o observa. Ele clama, ele chora e estende os braços para a sombra, ele lembra seu nome, Robert, o menino pobre que ele recusou ajuda. Grita milhões de vezes seu nome, antes que a besta de fogo engolisse seu corpo.

A sombra pode ter sorrido, quem sabe?

Este é o fim da linha.

perdoe-me os erros, preciso trocar meus óculos...B]

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 21/12/2014
Código do texto: T5076741
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