O crítico literário – O livro maldito

Os livros são feitos para encantar, para arrancar lágrimas ou para escandalizar os mais puritanos. Você, caro leitor, se coloca a decifrar as palavras do autor, e decodificar toda a sua magnifica ou inexpressiva tessitura. Como um espectador solitário, senta-se no cinema, pronto para apreciar a obra prima de um cineasta louco. E aquilo o invade, você observa com encanto as laminas de luz que lhe chegam aos olhos disparadas pelo projetor, e você deseja, deseja simplesmente estar ali, absorvendo cada símbolo entre os seus olhos. E assim são as palavras de um escritor, um emaranhado de significados enraizados no papel, podendo despertar algo inesperado em nossas almas, algo imensamente novo, ou despertar os nossos piores pesadelos. Livros nos envolvem em abraços ardentes, não nos deixam partir, as vezes nos machucam e ao mesmo nos divertem, é uma coisa viva e perigosa de variadas maneiras.

Sendo então, os livros são grandiosos instrumentos de poder, e o honorável e indiscutivelmente sábio, Senhor - Thomas Reis, teria a importantíssima missão de julgar esses produtos notáveis da memória e imaginação humana, úteis ou não tão uteis a sociedade, e mais importante, já ia me esquecendo, comerciáveis.

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Ele acordou, esticou os braços e estralou os ossos. Fritou os ovos o bacon e colocou-se a ler o jornal de todas as manhãs. Na manchete: escritor Steven Queen, em início de carreira foi encontrado morto em uma caçamba de lixo. Engoliu a saliva, sentindo-a escorrer pela garganta. Lembrou-se do rapaz franzino e extremamente tímido, e o seu calhamaço de folhas nas mãos trêmulas. Ele havia avaliado os escritos sem muito entusiasmo, afinal, a experiência lhe dizia, autor tímido não vende, mesmo que possua talento. De fato, o rapaz revelava uma certa destreza incomum ao ofício, mas os excessos de adjetivismos e rebuscamento tornavam a leitura intragável para um leitor despreparado, enfim, não era adequado ao mercado editorial.

Folheou novamente o jornal, e lá estava a face do jovem rapaz em preto e branco, como uma foto em uma lápide. Aqueles olhos tão grandes e assustados, socados em um o rosto anguloso demais e magro, era simpático, mas a expressão de estar agonizando pelo fato de estar vivo, lhe forneciam uma certa morbidez. Fitando os olhos do falecido, pode sentir um frio lhe percorrer o corpo como uma corrente elétrica. Como se aqueles olhos impressos no noticiário o estivessem observando e cobrando algo de sua própria consciência.

Lhe veio a memória o primeiro dia em que o viu, entrou em seu escritório um pouco esbaforido, ajeitou os óculos e os cabelos muito lisos grudados no suor da testa, estava visivelmente tenso e nervoso. Observou o terno surrado marrom que usava, três números maior que ele, provavelmente emprestado de algum defunto qualquer. A figura estranha saída diretamente de um filme de Hitchcock, era o próprio Norman Bates, dez anos mais novo diante dele cheirando a naftalina.

Apresentou-se gaguejadamente e desviava os olhos nervosos a todo momento. ´´ O crítico literário`` conhecido como ´´O devorador de sonhos``, apenas o observava em um paciente silêncio. Olhou para o relógio, era a última entrevista agendada do dia, depois dos insistentes telefonemas e pedidos do rapaz, decidiu dar-lhe uma chance. Estava ansioso para o fim do dia, chegaria a sua humilde casa, depois de enfrentar o trânsito infernal da grande São Paulo. Tomaria uma ducha, e assistiria um documentário no History Channel, com uma boa dose de uísque no copo. No entanto, estava ali com aquele rapaz embasbacado, que lhe havia tomado trinta minutos de sua preciosa vida.

Folheou as primeiras folhas do calhamaço encardido, e crispou a face, ajeitou os óculos para aparentar um possível interesse. Parou subitamente, e retirou os óculos em uma expressão descontente.

- Sinto muito, isso não vende – recebeu o olhar triste e decepcionado do rapaz – se quiser editar, procure uma editora independente – sim, parecia cruel e ele gostava disso, era a melhor parte do seu trabalho – romances sobrenaturais, não vendem hoje em dia, procure antologias, terá mais sorte...

O rapaz permaneceu estático, como se fosse tomado por um choque abrupto. Em seus pensamentos, podia contabilizar os dias de pesquisa, produção, as noites em claro a reescrever pela milésima vez em busca de sua utópica perfeição. Aquele sonho havia lhe custado quinze meses de sua vida, e fora destruída em apenas alguns minutos.

- Mas por favor, leia com mais calma, são apenas os capítulos iniciais, quem sabe não é algo rentável? – insistiu o rapaz em um tom de apelo.

O crítico moveu-se em sua cadeira desconfortavelmente, colocou o corpo a frente de sua mesa e cruzou os dedos, suspirou, pois não era a primeira vez que virá esta mesma cena. Eram anos de profissão, mais de sessenta livros editados de autores surpreendentes, eram dois casamentos, sem filhos, e dois divórcios, parecia bem experiente no assunto.

- Como eu disse, sinto muito, mas não podemos arriscar nossos investimentos em algo que tenho certeza que não irá vender, seus exemplares ficaram presos nas prateleiras juntando pó, creio eu.

O jovem escritor parecia tenso a ponto de explodir, seu rosto estava vermelho de raiva.

- É a minha vida, minha vida está neste livro, você não pode me descartar assim!

- Já vi muitas histórias como a sua, vá pra casa rapaz...não há profundidade, é oco, e os adjetivos, manere neles....

O rapaz engoliu aquele sapo viscoso, empurrando com o dedo garganta abaixo, junto com seu auto respeito e dignidade. Retirou-se desolado, era a sua última opção de editora, famosa por editar livros improváveis, para leitores prováveis. Mas era isso, o crítico havia dado seu veredito, reuniu os caquinhos miúdos do seus sonhos e partiu.

Sua consciência lhe dizia: deveria ter escutado meu pai alcoolizado, afinal, a bebida cria grandes filósofos, dizem que boa parte do que falamos bêbados foi pensando sóbrio. Meu pai dono de verdades filosóficas embriagadas – sorriu – ele sempre diz, ser autor nesse país de bosta é morrer de fome, quem lê neste país?, poucos... eu lhe digo garoto, arrume um emprego e pare de viver as minhas custas! – sua mãe, uma pobre mulher de aparência sempre cansada, intervia em sua defesa e lhe dizia – você tem talento filho, não dê ouvidos ao seu pai, ele é um homem frustrado, vá em busca dos seus sonhos, não desista! – mesmo com as palavras de apoio de sua mãe ecoando em sua mente, não eram suficientes para apartar o amargor de mais um ´´não``.

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Dezenove ligações. Vinte e-mails. Algumas tentativas frustradas de um novo agendamento, perseguições a secretária. Steven Queen, poderia ser um rapaz extremamente persistente e um pouco obsessivo. Enviou seus escritos reescritos pele enésima vez, e a resposta fora sempre a mesma, não. Descobriu o endereço do crítico e lhe enviou junto a uma cesta cheia de flores uma cópia, que fora imediatamente descartada junto as flores.

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Reescrever os períodos incessantemente tornou-se sua maior obsessão. Pilhas e mais pilhas de capítulos descartados acumulavam-se na sua escrivaninha. Papéis rabiscados, esquemas recriados, tudo meticulosamente orquestrado por suas palavras obsessivas. Tornar seus escritos rentáveis eram muito mais do que um simples ofício, eram a reconquista de sua dignidade e até mesmo uma forma de ajudar sua própria família. Quando finalizou o último capítulo, finalmente aquele parto complicado havia terminado. Sentiu como se todos os seus neurônios estivessem falecido devido aquele esforço sobre-humano, mas no final releu-o, e pela primeira vez gostou de ter escrito aquelas palavras tão brilhantes. Estava finalmente pronto, sua cria respirava e emanava poesia, podia sentir seu próprio coração pulsar no papel, como se tivesse-o arrancado de seu corpo e impresso. Era sua mais bela criação, respirou aliviado e sorriu, como Dr. Frankenstein sorriu para sua criação, afinal, estava vivo.

Andou pelas ruas a sua procura, ligou diversas vezes no escritório, mas recebeu apenas respostas evasivas. Esperou, esperou até o sol se pôr, esperou até o fim do expediente. Já era noite quando viu o homem atravessar a rua em direção ao carro, e o seguiu, era sua última chance.

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Tirou as chaves do bolso e acionou o alarme do carro, olhou ao redor não havia mais ninguém naquele área, sentiu-se até um pouco solitário. Era o segundo dia que iria para casa um pouco mais tarde, pois estava cuidando de um autor carioca em início de carreira, talentoso e simpático, e naquele dia havia fechado contrato para três volumes de seu universo fantasticamente rico.

Entrou no carro, e antes de fechar a porta, lá estava ele, Steve Queen, nas sombras da noite, segurando a porta com as mãos, olhando o crítico literário intensamente com um olhar louco. Quando ele iria desistir, perguntou a si mesmo.

- Você precisa ver meus escritos, deixo recados, mensagens, cartas, cópias e nenhuma resposta, você precisa ler! Ele está perfeito, ele vive, respira!

Notou o olhar alucinado do rapaz, e sentiu medo.

- Olha garoto, aquela foi a minha resposta... – afastou a mão direta, e a levou até o fundo do casaco. Estava disposto a usá-la, mas apenas para sua proteção, sentiu o aço frio nas mãos. Iria ter de proteger-se se o rapaz tenta-se feri-lo – não insista, vá para casa!

O rapaz o pegou pelo colarinho, elevando-o, puxando o pobre homem para fora, empurrando-o contra o próprio carro.

- Você tem que ler, ele...ele está simplesmente perfeito! ... – pode sentir hálito de álcool vaporizado em sua boca, muito próximo do seu rosto.

Mas um som de estouro, assustou ambos. Os olhos arregalados do rapaz, guiaram-se até o seu peito de onde uma linha grossa púrpura escorria por entre sua blusa de moletom. O corpo tombou, sem vida diante de seus pés. Sentiu o peso do aço em suas mãos, e sua temperatura. Observou os olhos do rapaz, penetrantes, negros e brilhantes olhando diretamente para ele antes de apagar completamente. O sangue escorreu manchando as folhas de seu último escrito, que parecia beber avidamente a tinta rubra que lhe caia. Assustado, procurou algo que pudesse ocultar o corpo, olhou para uma caçamba do outro lado da rua, não havia movimento, ou alma viva que pudesse testemunhar o senhor de meia idade arrastar um corpo e depositá-lo em sua derradeira sepultura. Agradeceu por portar uma arma não registrada, daria fim a ela também. Ninguém, ninguém poderia saber, pois assim, sua carreira estaria arruinada.

Aquela noite dormiria com a consciência amarga.

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- Eu preciso...eu preciso...- uma voz rouca sussurrava – perfeição... escrever mais, escrever mais...- dizia a voz ofegante.

Os cabelos negros escorriam por entre a tez muito branca, morbidamente branca. Os olhos eram duas covas rasas, nas quais os olhos muitos negros moviam-se freneticamente. Os dedos finos como tiras de marfim, trêmulos e indecisos, moviam a pena no papel em busca das palavras perfeitas. Em uma súbita explosão de raiva, arrancava as folhas e as rasgava, formando uma pilha de papéis aos seus pés. Ouviu o crocitar distante de um corvo e a vela ao lado tremulou sentindo as vibrações aflitas do espirito atormentado do escritor.

A figura mórbida curvou-se sobre seus escritos, afundando a pena sobre o papel, os dedos já sangravam devido a cólera obsessiva – eu preciso, preciso provar...mais profundo, da alma! – dizia a si mesmo incessantemente em uma voz rouca e pausada, uma saliva louca escorria por entre os seus lábios. Os olhos vidrados buscavam a perfeição mesmo que isso lhe custasse a própria sanidade, seus dedos moviam-se velozmente apesar das feridas abertas, feitas pela fricção constante da caneta em suas mãos. Ele não poderia suportar mais aquele maldito ofício, mas era o seu dever e sua terrível maldição.

- Não! Não! Não é isso... – um grito explodiu em sua boca – ele precisa ser editado, precisa! – levou as mãos sujas de sangue a cabeça, esfregado os cabelos de forma louca. Seus olhos ficaram vermelhos e ardentes devido ao esforço da escrita, parou subitamente, e observou suas mãos pausadamente, admirando com horror as feridas em suas palmas, com os dedos secou as lágrimas dos olhos ardentes, duas esferas quentes e arenosas em seu crânio.

- Preciso ver com os olhos da alma, aquilo que ninguém mais consegue ver.... – sussurrou.

Os dedos finos guiaram até seus globos oculares, penetrando em sua úmida e macia superfície. A face crispou-se em um grito de dor terrível, enquanto as mãos como possuídas de vontade própria, forçavam seus músculos esguios contra a cavidade óssea. Um suco vermelho e quente escorreu por entre seus dedos, uma explosão rubra cobria o rosto do escritor. Em suas mãos jazia os fragmentos de seus próprios olhos, reduzidos a uma matéria morta e extremamente brilhante.

- Mais profundo, para você, em sua própria pele... – a voz sussurrou roucamente, mas desta vez, suas palavras pareciam direcionadas a alguém. Ele apenas sorriu.

Despertou abruptamente, com o coração tamborilando em seus ouvidos. Olhou para o relógio, ainda eram apenas três da madrugada, mas pareciam uma eternidade em seus pesadelos. Ainda podia lembrar da face medonha do rapaz em seu sonho. Levantou e olhou pela janela, a rua estava deserta, mas podia jurar que alguém o observava no outro lado da rua, escondido entre as sombras. Teve medo de dormir novamente, porque ao fechar os olhos o rapaz estaria lá, esperando por ele.

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Pela manhã, estava exausto pois não conseguira fechar os olhos. Havia assistido alguns documentários na tevê, se alguém lhe perguntasse quem era o tal de Ragnar Lodbrock, ele com certeza saberia todos os detalhes do herói nórdico. Apesar do alimento intelectual noturno, sentia-se extremamente cansado, e qualquer um que o olha-se poderia perceber isso. Andou pelo escritório com a sensação de que muitos já haviam percebido, sua secretaria lhe trouxe o café.

- O senhor está bem, parece bem cansado?

- Não dormi muito bem essa noite... – ligou o notebook e revisou sua agenda do dia.

- O senhor precisa ver isso nos seus olhos, pode ser contagioso – observou ela.

´´ meus olhos, o que há de errado com eles?`` olhou para o espelho, e viu que seus olhos estavam da cor do sangue intenso, a íris extremamente azul lhe parecia boiar em uma piscina de sangue puro. Assustou-se e afastou a pálpebra inferior para avaliar a extensão dos danos, e lá estava escrito, unidos em minúsculos vasos sanguíneos, a palavra, morte.

Pegou seu paletó e saiu do escritório, precisaria consultar um médico imediatamente.

- O senhor está com uma conjuntivite bacteriana, não há riscos de contaminação, mas sugiro que fique de repouso... – disse o doutor, enquanto escrevia o receituário com sua letra indecifrável.

- Mas... havia algo mais, como se estivesse escrito nos meus olhos... – observou.

O médico levanto os olhos por cima dos óculos, com aquela expressão de ´´ do que diabos você está falando?`` - o senhor andou bebendo ou consumindo drogas?

- Não... – sentia-se completamente ridículo e decidiu não insistir no assunto, poderia ser apenas sua mente lhe pregando peças.

Chegou em casa e um pacote pardo amarrado com barbante lhe aguardava na porta. Pegou-o e entrou largando o casaco sobre o sofá e deixando pacote sobre a mesa da cozinha. Provavelmente iria abri-lo mais tarde, pois teria alguns dias de folga. Curioso abriu o pacote rompendo o embrulho feito. Levou a mãos a boca, estarrecido, os escritos do rapaz tingidos de sangue enegrecido estavam diante dele, com um bilhete, LEIA-ME, e um cartão de um hotel de nome King Edgar, do qual jamais ouvira falar. Enfurecido, imaginou tratar-se de uma brincadeira de mal gosto, ou a culpa já começava a lhe pregar peças. Jogou-o no lixo, assim como havia feito com o rapaz na noite anterior.

Decidiu que tomar um banho o deixaria mais relaxado, tomaria um calmante de dormiria um pouco. Deitou em sua cama, e logo estava adormecido.

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Vestiu seu melhor terno, iria a um sepultamento. Poucos ali estavam; uma mãe chorosa de face cansada com olheiras que escorriam até os lábios. O pai, com sua expressão dura e sofrida, apesar da aparente inexpressão, a tristeza lhe emanava pelos olhos. O padre fez sua prece. Tudo parece muito vazio e simples, como em uma fotografia velha. Uma cova aberta aguardava o caixão barato. Observou o caixão descer a sepultura, e ouviu os soluços nervosos da mãe.

Adiantou-se para jogar uma rosa sob o caixão, quando notou uma tinta negra escorrer por entre as fendas da madeira. Observou-a com curiosidade pois a mesma subia em pequenos filetes buscando a superfície da terra úmida. Afastou os pés calçados em um Louis Vuitoon, e observou a coisa negra esgueira-se na terra. Parecia estar farejando algo.

Sentiu os pés presos, finas tiras negras estavam enroladas em seus tornozelos. Sentiu um solavanco e foi direto em um tombo seco ao chão. Enquanto era arrastado para a sepultura, rasgou a terra com os dedos, levado um pouco de grama nas mãos. Gritou o quanto seus pulmões permitiram e ainda viu de relance os pais apenas o observando com olhos culposos.

Já nas entranhas escuras da terra, viu-se em uma sala obscura e percebeu que algo estava a arranhar sua pele. Um bisturi brilhante penetrava a superfície de sua pele branca. A ardência o atordoava.

- Irei escrever em sua própria pele, você será meu mais amado e perfeito trabalho – dizia a voz rouca, mas estranhamente calma. Suas costas estavam feridas, podia sentir o cheiro de sangue fresco e as linhas finas que escorriam por entre seu dorso.

- O que você quer? – perguntou ao seu agressor – eu tenho dinheiro, te dou o que quiser! – ainda não podia ver o rosto do homem que o feria.

- Você sabe o que eu quero... – respondeu brevemente – sabe, muitas vezes pensei em como seria depois da morte. O que acontece antes do fim? Quantos minutos antecedem a extinção? Será que o tempo cessa como as asas de um beija flor em pleno ar....

- Me deixe ir! – gemeu mais uma vez, a cada risco mínimo que o bisturi fazia.

- Os pulmões deixam de aspirar e somos imersos em um tempo sem tempo. E ai, a consciência desaparece? Quantos minutos antecedem a inexistência? Vislumbrei milhares de mortes. Das mais trágicas a mais cômicas. Olhei nos olhos de muitos antes da alma esvanecer, cuja chama é engolida pela escuridão. Ouvi os últimos pedidos, as súplicas por perdão, os arrependimentos dos moribundos até o derradeiro sopro de vida dentro de seus corpos...

Ele não estava feliz com o rumo daquela conversa, sentiu os pulsos paralisados, assim como os tornozelos, as tiras negras lhe prendiam, estavam vivas, e a cada movimento brusco, elas apertavam seus pulsos. Gritou novamente, seus pulmões ardiam, mas o seu agressor não parecia se importar.

-...logo o receptáculo da alma torna-se opaco, sem cor, suas pupilas se apagam, assim como uma estrela morre. A partir daí, o processo natural desconstrói os receptáculos devolvendo-os a natureza. No entanto posso lhe dizer, não há nada do outro lado... do lado que você me condenou....

As tiras viscosas negras moveram seu corpo para frente deixando-o face a face com o agressor. O rapaz, o escritor daquela noite, vítima do seu dedo mole no gatilho. As cavidades oculares vazias e completamente negras o encaravam, o sorriso nos lábios do jovem, apenas formavam a face mais medonha já vista antes. Deixou-se mergulhar naquelas órbitas vazias, tragando-o para a escuridão.

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Acordou com o som dos próprios gritos, revirando-se na cama, notou que estava ensopado, e suas costas doíam. Levantou, levando as mãos a extensão de suas costas, quando retornou, encontrou os dedos manchados de sangue. Saiu em disparada até o banheiro retirando a camisa, e lá estavam as letras escarificadas em sua pele, linhas retas que deixavam a carne exposta, o sangue escorrendo por entre as fendas, formando uma imagem aterradora. Em suas costas, abaixo da nuca, estava a palavra: assassino.

- O que você quer de mim!? Seu desgraçado! – gritou como se ele o pudesse ouvir. ´´ eu estou mal da cabeça, é isso, só pode ser isso. É a maldita da meia idade``, pensou por um instante, antes de notar que o calhamaço de folhas estava agora em sua cama.

Abriu violentamente o livro, sem capa, e o cheiro ocre de sangue seco o deixou enojado. As folhas estavam em branco.

- Só pode ser brincadeira!! – gritou ele.

E súbito surgiram tingidas em sangue negro ´´ Leia-me, King Edgar Hotel, quarto 182``

Aterrorizado, imaginou que o preço de sua liberdade era ler o maldito livro.

- Se eu ler, você me deixará em paz?

Novamente palavras surgiram ´´ Liberdade``...´´ Vingança``...´´ Divida``...´´ paz``...

Se aceitasse ler os escritos malditos do escritor, seu destino seria ir ao King Edgar Hotel.

Era apenas uma noite, somente uma noite e aquele pesadelo terminaria e tudo voltaria ao normal. Em uma noite de garoa fina, estava diante da fachada do sombrio e imponente hotel de vinte e um andares de janelas obscuras. O recepcionista, um senhor beirando as portas da morte, com cabelos brancos e voz calma, lhe atendeu sem muito ânimo. Ele reparou, sem discrição a pele macilenta e amarelada, e a cicatriz em forma de meia lua que riscava seu lado esquerdo, tornando-o uma figura curiosa e ao mesmo medonha. O velho observou o livro que ele segurava contra o peito, e imediatamente lhe entregou a chave em forma de flor de lótus junto com um panfleto com as regras de uso do hotel que ele não faria questão alguma de ler.

Usufruindo dos modernos sistemas de elevadores de 1912, que sacolejavam e rangiam, chegou ao 18º andar, percorreu os corredores com destino ao quarto 182, último reduto de inspiração e criação de Steve Queen, um escritor frustrado e mal compreendido. Não era de se admirar a escolha do local, ninguém iria perturbá-lo naquele lugar, poderia passar horas, escrevendo, lendo, criando, que ninguém neste mundo o importunaria.

Inseriu a chave na fechadura e ao entrar deparou-se com um cenário digno de filme de terror medieval. Paredes revestidas de madeira, uma cama grandiosa de ferro que parecia pertencer ao um hospital psiquiátrico. Havia uma escrivaninha antiga de madeira lascada com uma máquina de escrever Olivetti, pensou em quem usaria essas coisas em plena era tecnológica. Ao lado, ainda um tinteiro com uma caneta de pena para os mais tradicionalistas shakespearianos, e uma etiqueta, use com moderação: item raro, composição; bugalho, seiva de acácia, vinagre e vitriola verde. Nas prateleiras, absinto, vinho e o que não poderia faltar para as horas de diversão e para despertar a mente criativa, ópio. Nas estantes, com livros clássicos enfileirados, ainda estavam um corvo empalhado, diga-se, muito mal empalhado, uma coruja branca e uma adaga sem fio. Procurou o interruptor, mas o que encontrou foram apenas velas em candelabros empoeirados.

Ele sorriu, e o riso tornou-se uma gargalhada histérica, estava diante do quarto de hotel mais excentricamente decorado para escritores. Jamais imaginou encontrar um cenário que desafia-se como um lapso temporal a realidade, a sanidade e o tempo. Dirigiu-se até o banheiro, com medo de encontrar o próprio Poe, bêbado na banheira e afogado no próprio vômito, mas para sua alegria, parecia o único lugar normal.

Acima da cabeceira da cama, em letras cravadas na madeira, estava escrito em latim ´´ ao criador e suas criaturas``. Olhou para o livro que repousava sobre a escrivaninha, a maldita criatura do escritor assassinado.

Caminhou até a janela, coberta por espessas cortinas de veludo negro, afastou-a com as mãos e notou que os vidros eram completamente negros, de forma que não era possível ver as luzes do mundo real. Ele estava isolado.

Ouviu um sussurro, quase um ressonar e notou que a capa movia-se pesadamente como músculos torácicos, aspirando e expirando o ar abafado do quarto. Subitamente as páginas se abriram, desfolhando lentamente. Ele se aproximou do livro e letras vermelhas tingiam o papel.

´´palavras cravadas na carne, criaturas de uma mente inconstante, aqui, finalmente ganham vida. O que tu és, homem? Ganancioso, prepotente, impotente diante de tais angústias. Diante a minha morte. Diante a própria morte. És simples. Se não um assassino? Ser ou não ser, eis a questão?``

O livro sussurra em seus ouvidos, assassino, assassino. Sentiu o sangue ferver de raiva, subir até a face deixando-o vermelho de ódio. Enlouquecido, pegou a adaga e apunhalou-o violentamente, tantos golpes quantos foram possíveis, rasgando a capa, perfurando as folhas profundamente até perfurar a madeira da mesa. Do orifício, um sangue muito escuro jorrou aos borbotões, como se a lâmina houvesse atingido uma artéria daquele estranho objeto, que emitia ruídos agonizantes. Debateu-se contra a mesa, os ruídos afogados no sangue caudaloso, até que enfim, cessou. Estava morto, assim pensou.

Com os olhos ainda estufados de terror, observou as mãos e a camisa empapada de sangue negro e imaginou que isso seria o menor de seus problemas quando ouviu o bater na porta. Passou as mãos nos cabelos grisalhos que agora desgrenhados lhe davam uma aparência insana.

Atendeu a porta e deparou-se com uma senhora vestida em um uniforme elegantemente engomado, que o observava com um par de olhos castanhos muitos pequenos para um rosto velho e enrugado, os cabelos muito brancos estavam presos em um coque sem que um único fio lhe escapasse. Parecia-lhe apenas uma simples senhora, uma camareira qualquer, um rosto comum se não fosse a ausência de braços, que eram apenas duas tiras de pano costuradas ao casaco do uniforme. Ela já estava acostumada com aquela expressão, um misto de surpresa e terror e também as habituais perguntas constrangedoras e até ofensivas.

- O que foi! Vai deixar com que eu faça o meu trabalho ou vai ficar me olhando com essa cara? – ele parecia imerso em um pesadelo – tenho muitos quartos para arrumar, com licença!

A senhora colocou o homem estático para fora e fechou a porta antes mesmo que ele pudesse formular qualquer coisa audível, a porta fechou-se em um estrondo diante de sua face. Ele permaneceu ali, com um ar embriagado e louco, suas vestes voltaram ao normal, deixando-o ainda mais transtornado, diferente do homem centrado que usava apenas perfumes importados e os melhores ternos.

Cinco minutos se passaram, e a camareira estava a empurrar o carrinho para fora do quarto com o dorso, olhando-o com desaprovação.

- Da próxima vez que quiser rasgar livros, jogue no lixo! Seu moleque!

A repreensão o pegou de surpresa, fazendo-o sentir-se como um menino de dez anos diante de uma senhora apressada e mal humorada, que saiu resmungando algo como ´´ malditos escritores`` antes de desaparecer entre os corredores.

Ao entrar deparou-se com um quarto limpo, sem sangue ou resquício de uma noite alucinante. O livro estava intacto sobre a mesa e ao lado a garrafa de Absinto repousava inocentemente, escrito ´´Beba-me``. Aquela bebida barata era a única coisa que iria ingerir aquela noite, logo quando tudo terminasse iria comprar a garrafa mais cara de uísque e afundar no sofá, rir daquela situação patética em que se encontrava. Abriu a garrafa sentindo o cheiro inflamar suas narinas, bebeu com nojo, sentindo o ardor descer como brasa pela garganta, aquecendo o peito e rasgando o estômago vazio, quase expulsou o líquido agressivo das entranhas.

O livro novamente abriu-se, revelando as folhas um pouco amarfanhadas, e as letras escarlates novamente começaram a tecer-se magicamente.

´´ "Profeta, ou o que quer que sejas! Ave ou demônio que negrejas! Ave negra friamente posta, mensageiro dos mortos, juiz dos infelizes, ao implacável destino dos injustos! Hoje, o corvo será sua sepultura...``

O corvo crocitou rasgando o silêncio da noite, batendo as asas vigorosamente, a ave que antes era obra de um taxidermista incompetente, ganhara vida na forma de uma ave negra de olhos vítreos brilhantes, as patas enrugadas de unhas longas riscavam a madeira da estante. Bateu as asas e investiu contra o homem, que pouco pode fazer ao não ser defender-se das bicadas que lhe arrancavam nacos de carne. Agitando os braços no ar, espavorido, imerso em uma confusão de penas negras, tentando afastar o enlouquecido agressor, mas em um descuido deixou os olhos vulneráveis a figura negra cheia de ódio. A sequência fora rápida, a dor aguda unida aos gritos e ao bater de asas, notou o sangue espesso e morno em seu rosto. Seus braços agitando-se descontrolados no ar, sentiu o pulso chocar-se contra o corpo da ave que caiu em um baque seco sob a escrivaninha, agitando as asas debilmente antes de desfalecer.

Levou os dedos aos olhos, movimentando as pálpebras pesadamente e tudo ao seu redor parecia estar coberto por uma fina camada de sangue. Tateando, com os braços estendidos procurou o caminho até a porta, suas mãos encontraram a maçaneta da porta que ficou escorregadia com o sangue que havia nelas, mas ela não se moveu, estava trancada.

- Não! Me deixe sair! Fiz o que queria! Desgraçado! Me deixe sair!

Vociferou injúrias na escuridão de seus olhos, estava cego. Usou todo o ar dos pulmões para gritar no buraco da fechadura, mas ninguém podia escutar. E sentiu que não estava sozinho, alguém o observava calmamente, uma sombra sentada na escrivaninha imóvel. E com a habilidade de um ourives cunhou com a pena as últimas mórbidas palavras cravadas na alma de um assassino. Ratos, vindos em hordas, ondas murmurantes que formavam raivosas criaturas de olhos vermelhos, surgiram das dobras do livro, folha a folha. Os ratos farejando o ar, seguiam o rastro do cheiro de medo do homem que esgueirava-se contra a porta, mesmo cego, podia ouvir os milhares de guinchos e chiados em sua direção.

Cobrindo-o como um tapete felpudo, os pequenos roedores saltaram em sua direção, mordiscando sua pele, rasgando a carne e roendo os ossos, quando gritou, um pequenino pulou em sua garganta para silencia-lo. E no fim, sobraram apenas os botões do homem, e todos retornaram ao livro maldito agora com um novo hospede em seus intestinos.

Se visitar o hotel King Edgar e por ventura quiser uma boa história, não deixe de visitar o quarto 182, o livro maldito estará lhe esperando na escrivaninha para ser lido e apreciado, quem sabe.

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 28/12/2014
Código do texto: T5083988
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