A Ceia

Há fartura na mesa, como nunca antes vista. Capaz de encher os olhos e bocas famintas dos famigerados de toda a região. Naquele ano atípico, a família toda fora convocada, sim, o termo correto é convocada, não havia escolha quando tratava-se do patriarca da família. O grande Barão de Sant´Anna, detentor de grandiosa fortuna, e o responsável por grandes obras na cidade e pela chegada da tão aguardada ferrovia, assim como também senhor e comerciante do maior número de escravos da região.

O casarão estava cheio de todos os remanescentes de sua família, sejam em qualquer grau, ex-esposa, primos, filhos, sobrinhos, todos aguardavam a chegada de tão ilustre senhor de terras. E ouviam em todo o salão os murmúrios de vozes confusas em constantes conversas sobrepostas e gracejos de jovens damas.

Ao adentrar o salão, apoiou-se na bengala e sorriu de forma amarga aos seus convidados, um meio sorriso forçado, na tentativa de parecer simpático ou menos austero. Ao seu lado uma escrava de beleza exótica o auxiliava em suas limitações e assim sentou-se com dificuldades a mesa com a ajuda dos demais escravos. Era gordo e limítrofe, possuía apenas uma coroa de cabelo ao redor da cabeça, as sobrancelhas espessas e despenteadas cobriam um par de olhos muito sombrios e pequenos, que agitavam de maneira estranha suas espessas sobrancelhas, ele notara tudo ao seu redor e todos ao seu redor notaram que há muito tempo estava com uma aparência doentia. Bolsas flácidas abaixo dos olhos de um amarelo âmbar em gradativos tons esverdeados, adornavam o rosto que antes fora redondo, que estava aos poucos murchando, deixando os ossos maxilares em evidência. Era um indivíduo robusto e corpulento, diferente do homem mirrado e de aparência esfaimada, a roupa lhe parecia muito solta no corpo, de modo que os braços muito finos lhe davam um ar quase caricato. Madame Erminia, A baronesa, desviou o olhar quando notou um líquido branco viscoso escorrendo do ouvido esquerdo do barão, não haveria de tocar no assunto durante todo o jantar, nem mesmo nos hematomas que o pó de arroz tentou encobrir em suas mãos.

Estendeu os braços e deu a ordem para todos se sentarem, e assim um a um, pôs-se a mesa junto ao patriarca da família Sant´Anna.

- Comam e bebam, hoje é noite de ano novo, logo estaremos em um novo século. – olhou de soslaio para o escravo e todas a portas e janelas foram fechadas.

Os convidados entre sorrisos e afagos familiares, iniciaram a ceia, enquanto o velho apenas os observava. Eram risos, o tilintar de pratos e talheres, típicos de uma noite de jantar, até o soar do relógio de corda, poucos minutos para um novo século, poucos minutos para a liberdade.

A escrava ficou ao lado do seu senhor durante todo o tempo, usava uma túnica lilás com riscas negras, seus cabelos estavam trançados e amarrados em um coque, os seios fartos e redondos despontavam por entre o tecido muito fino. As mulheres a observaram com desprezo e reprovação, não havia nada mais depravado, lascivo e pecaminoso do que o que estava naquela sala. Elas todas senhoras cobertas de negro, com cruzes de madeira em penduricalhos, ilustres e recatadas mulheres de Deus. A imaginação cruel das mais recalcadas iria envenenar a mesa com pensamentos sobre a prostituta negra do Barão e seus encantos. A escrava movimentou os quadris de forma sedutora e aproximou aos ouvidos de seu senhor e logo falou aos convidados.

- O senhor está cansado, por isso pediu que eu falasse por ele – olhou para a velha gorda sentada ao seu lado que se empanturrava com as especiarias da casa – Você, madame que queimou gente de minha cor, que deitou-se com homens de meu povo e depois os castrou. Sabe aquela criança a qual fez comer um ovo cozido tirado da panela de água fervente, aquela menina que fora chicoteada e teve os cabelos queimados por você, aquele pequeno que levou beliscões para apaziguar a tua fúria e mal humor, eles estão aqui...

A Baronesa, estufou o peito, como os pombos fazem a arrulhar, com os olhos flamejantes de ódio, a escrava podia prever o que ocorreria depois, poderia ser o chicote ou o tronco, seria desnudada e descarnada, humilhada perante os seus. Mas esta noite, não.

- Que brincadeira de mal gosto é essa Barão? Manda essa negra para a...- suas palavras ficaram presas em algum lugar em sua garganta, quanto encarou ao seu lado uma figura translúcida a observá-la com consternação. Uma menina negra, muito magra, trajada de trapos que apenas fitava a mulher enquanto ela gorgolejava um liquido quente e borbulhante, do qual podia ser visto o vapor escapando das narinas, ouvidos e boca, ovos cozidos eram regurgitados aos borbotões. Os convidados que não podiam mover-se em suas cadeiras, apenas observaram estarrecidos a mulher obesa estrebuchar e morrer ali mesmo com a face no prato de sopa.

- E você, Senhor Ferdinando, quantos não marcou com seu nome, quantas mulheres não foram violentadas em sua alcova, e tiveram filhos teus que depois foram mortos por afogamento, pequenos bastardos. Você está marcado, sua alma está marcada pelo pecado.

Ele sentiu uma dor pungente nos membros, nas contas, braços e tronco, como se chicotes invisíveis açoitassem sua carne, rasgando suas vestes, riscando a pele, penetrando a carne branca e macia. Tiras e mais tiras surgiam, em uma ação violenta, como se o agente estivesse inundado de ódio e vingança contra o seu feitor. Quem sabe por detrás do véu desta realidade fria e estapafúrdia, pudéssemos ver com estes olhos mortais milhares de seres enegrecidos de dor a açoitar seu antigo mestre. Mas aos cegos do mundo real, ao menos podiam sentir a raiva, o ódio em partículas no ar. Os gritos cortaram a noite, gritos agudos de dor, até que o corpo torna-se apenas um invólucro de tiras de carne exposta e pele desprendida, como tecidos esfarrapados de uma roupa velha, o corpo descarnado tombou em um baque seco, com os olhos revirados nas órbitas, deixando o branco reluzente morbidamente visível.

As senhoras mais ricas da região observavam a cena com os olhos estufados de horror, mas como por um encanto mórbido, tinham as mãos atadas as colheres de prata e comiam avidamente, levando o conteúdo de seus pratos aos lábios, como se estivessem em uma fome que jamais pudessem ser saciadas. Algumas choraram copiosamente enquanto seus estômagos inflados, eram empanturrados com mais e mais comida. Alguns botões explodiam em direções opostas, ricocheteando em móveis ou qualquer coisa que estivesse no caminho, um ficou alojado no olho do Almirante Miranda que morreu antes de completar sua refeição, e outro entre os olhos de Dona Estefana, da qual a cabeça pendeu como um pêndulo preso ao pescoço para trás. A menina Maria, dona de beleza estonteante e pouca ou quase inexistente inteligência que outrora divertia-se molestando as crianças da senzala, estava ali, miúda aos prantos, era apenas lágrimas e arroz saindo pelos cantos da boca, pelo nariz, até afogar-se no próprio vômito.

E todos que ali estavam, um a um, sangue maldito, tombou sob a vingança da feiticeira, alguns com feridas profundas que borbulhavam como houvessem sido lavados em água fervente ou vinagre, outros com espetos no pescoço feitos pelos próprios garfos, alguns amarrados a troncos espectrais ou enforcados em suas próprias gravatas. Fantasmas de milhares de séculos torturantes foram invocados, das entranhas da senzala, das fazendas silenciosas, do choro dos inocentes, das vítimas do homem branco, ouviram o clamor, o chamado da feiticeira e vingaram suas mortes, um a um, assim como haviam sido mortos pelas mãos cruéis de seus feitores.

Assim que o levante dos mortos terminou sua ceia, partiram entoando cânticos de sua terra e desapareceram na linha do horizonte noturno, partindo enfim. A feiticeira, observou o salão sangrento, todos jaziam ali mortos, o patrono da família, havia lhe servido apenas como um fantoche, estava morto há tempos, apenas falava o que lhe mandara. Liberto, enfim, o corpo murchou, esvaindo-se como um boneco, até que o que restasse fosse apenas um manto de pele sobre ossos.

Todos os vivos seriam libertos, homens e mulheres marcados, feridos e humilhados, seriam levados a uma terra prometida, e um exército seria formado. A escrava, seria rainha novamente, assim como um dia fora de seu povo, vingou enfim a morte dos seus, mas ainda tinha na memória nitidamente, a noite em que aquele homem branco, O Barão, arrancou sua liberdade, estuprou suas filhas e matou seu rei, tomando-a como sua escrava e prostituta. Ele estava morto enfim, mas a memória da dor, vive por séculos. Aquilo era apenas o início de uma guerra, que ela sabia, jamais teria fim.

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 06/01/2015
Código do texto: T5092219
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