Pagando dívidas - DTRL 20.

Dona Oscarina acordou após as oito horas da manhã de um dia chuvoso e solitário. Era uma data importante, o aniversário de sua filha, Carina. Mas não era o aniversário de nascimento, e sim o de seu desaparecimento. Já haviam passado dez anos que a moça de cabelos vermelhos, olhos alegres, sorriso fácil, que era seu orgulho e única companhia após a morte do esposo, havia sumido sem deixar traço.

Dez longos e desesperados anos, onde cada som na calçada da casa silenciosa lhe fazia renascer a esperança, para logo morrer ao avistar algum passante desconhecido.

Durante essa data tão amarga, ficava a folhear os álbuns bolorentos, onde sua filha sorria para ela. Um exercício masoquista impelido pela incerteza. Uma tortura, na realidade, mas para a idosa era uma forma de expiação por pequenas falhas que todos os pais cometem mesmo amando os filhos de todo coração.

Infinitas foram às vezes em que sentiu vontade de fazer algo para acabar com tudo, mas a esperança, essa senhora cruel e frívola, lhe acenava com promessas tolas engendradas no coração gasto de tanto esperar.

Mesmo sem vontade de se erguer da cama, a mulher calçou seus chinelos baratos e caminhou até a cozinha a fim de buscar algo para beber. Nunca foi afeita a bebidas, mas acabou por criar o hábito com os anos. Em certas noites, só conseguia encontrar a paz do sono, quando estava completamente entregue aos vapores do vinho de garrafão e a cachaça artesanal comprada na birosca da esquina.

Enquanto fazia as tábuas rangerem queixosas, com suas passadas rumo ao armário de bebidas, pôde notar um grande envelope de papel pardo enfiando por baixo da porta de entrada da casa. Pensando ser alguma cobrança ou um reclame qualquer, fez pouco caso e prosseguiu até a cozinha, onde se serviu de uma farta dose de cachaça para desanuviar os sentidos ainda dormentes.

Após mais duas doses, deu meia volta e ao passar novamente pela entrada da casa, recolheu o envelope e o carregou consigo, até o quarto. A figura solitária sentou-se na cama e abriu a carta. Uma grande folha de papel, dobrada ao meio, se desnudou a seus olhos. Era uma estranha missiva, onde palavras recortadas de jornais e semanários criavam sentenças.

Os olhos da mulher vagaram ante as frases, que graças à influência da bebida, pareciam serem escritas em alguma língua morta e de entendimento impossível. Ficou nessa labuta sem sentido, até que seus olhos se cravaram em um nome, o nome de sua filha.

Oscarina sentiu o ar lhe faltar e tudo pareceu ficar suspenso, como se o tempo houvesse parado.

***

Ele esperou nas sombras de um velho sobrado da esquina. Ficou entocado naquele antro de escuridão na zona pobre da cidade, no meio do bairro boêmio, aguardando que a mulher saísse da gafieira, para então, poder agir.

Desde que fora perseguido pelos matadores, há a cerca de dois anos, que não pisava as ruas da pequena cidade perdida entre as estradas rumo ao litoral. Sempre adorou a calma e tranquilidade do lugar, mas agora cada árvore, casa, loja, pessoa e mesmo as pedras do calçamento lhe davam ânsias.

Odiava a tudo de forma profunda. Odiava pensar que, por causa de uma mentira, se tornou motivo de piada e quase perdeu a vida, tudo pelo capricho da mulher que agora bebia e dançava na gafieira repleta de bandidos, putas e vagabundos.

Ficou sob o manto das sombras por várias horas até que a aurora começou a tingir o céu. Só então a música parou e a gafieira se pôs a cuspir os tipos que a infestavam: Homens desalinhados, que apoiados sobre amigos e mulheres, cantavam com vozes embriagadas e roucas pelas ruas.

A única que se diferenciou foi a mulher que ele esperava. Ela saiu daquele do prédio mal cuidado, abraçada a um rapazote completamente bêbado. Após um beijo rápido, o deixou e seguiu seu caminho em direção ao centro da cidade com um sorriso que somente a bebida proporciona.

O sujeito de tocaia esperou que ela entrasse em uma ruela, e então caminhou em sua direção. Ao notar que alguém se aproximava, a mulher olhou para trás, pois pensava estar sendo seguida pelo jovem que acabara de deixar na porta da gafieira, mas ao ver o homem, seus olhos se arregalaram.

Sem dificuldade, como um lobo que caçasse uma lebre ferida, o homem a alcançou e agarrou-a pelo pescoço em uma chave de braço.

A força do perseguidor era incomum, parecia estar possuído, pois babava de raiva enquanto cortava o fôlego da mulher que se debatia. Em poucos segundos, os olhos dela esgazearam, o corpo ficou mole e se largou nos braços do homem, que ao sentir o peso morto, soltou-a.

Ele sorriu ao vê-la bater no calçamento frio. Sorrindo, verificou se alguém havia sido alertado pelos gritos da mulher, mas ao perceber que nem uma viva alma apareceria, passou a rir, um riso baixo e mau.

O homem segurou a jovem e caminhou até a uma caminhonete estacionada. Jogou o corpo da vítima sobre a carroceria e a amarrou com tamanha força usando de uma corda grossa, de juta. A fibra cortou levemente a pele da mulher e fios rubros tingiram a pele clara dela.

Ao terminar os nós, enfiou um pedaço de estopa na boca da sequestrada e a cobriu com uma lona velha.

***

A surpresa, aliada a adrenalina cuspida pelo corpo, fez com que o torpor da bebida sumisse quase instantaneamente, Dona Oscarina começou a ler a estranha missiva, fazendo expressões de espanto a cada linha que decifrava:

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Olá, como vai a vida?

Talvez a senhora não se lembre de mim, até por que sempre me teve em baixa conta, ou melhor, sempre me desprezou e nunca tentou me conhecer.

Provavelmente não pensou em mim durante todos esses anos, pois eu nunca fui digno de sua amizade ou préstimos. Penso que enquanto suas vistas passam sobre essas linhas, nem tenha noção de quem eu seja, mas lhe asseguro que ao final desta carta, jamais se esquecerá de mim.

Decidi lhe enviar essa mensagem para coroar o meu feito, pois isso é a cereja do bolo. O bolo frio que devoro durante toda essa década. Um manjar venenoso: vingança.

Creio que tenho andado em círculos até agora e a mensagem se mostra muito críptica, mas vou remediar isso, porém primeiramente, gostaria de externar minha alegria por poder comemorar esta data: o aniversário de dez anos do desaparecimento de sua amada Carina.

E como sou um sujeito justo, lhe darei um presente: a oportunidade de saber o que aconteceu a sua amada filha. Para isso, exijo duas coisas: Que mantenha segredo sobre tudo e se apresente no endereço e hora que estão no fim desta missiva. Caso pense em contar para alguém, tenha certeza, eu saberei, e então jamais descobrirá o que aconteceu com Carina.

Fica por sua conta decidir o que fazer.

Sinceramente,

Eu.

P.s.: Compareça no dia corrente, na Travessa Hubaldo Ciqueira, número 12, às 00:00 horas.”

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Ao terminar de ler, a idosa foi assaltada por um turbilhão de sensações conflitantes. Sentia as esperanças renascerem, para logo morrerem sob a pressão do medo. Pensou em ligar para a polícia, mas temia ser verdade o que dizia a carta. Sentia alegria, medo e raiva. Ficou durante vários minutos conjecturando, embasbacada, sobre o conteúdo da mensagem e todas as possibilidades que a mesma lhe jogara na face, até que seus olhos foram atraídos pelo relógio e pôde notar que já passavam da duas da tarde.

Encarou o objeto por algum tempo e então se ergueu. Com passos decididos, foi até o armário, escolheu o seu melhor vestido, depois uma anágua e correu para o banho. O endereço ficava do outro lado da cidade e se fosse andando, chegaria cedo para, com um pouco de sorte, descobrir que sua filha estava viva.

Enquanto a água fria do chuveiro corria sobre seu corpo, Dona Oscarina não conseguia nem imaginar quem havia lhe enviado aquela carta, pois só pensava em encontrar sua filha.

***

A caminhonete levantada pesadas nuvens de pó ao correr pela estradinha de barro rumo a uma réstia de mata virgem. O homem sorria enquanto guiava a máquina e pensava no que iria fazer com a vítima desacordada na carroceria. Após três horas de viagem pela estrada esburacada e quase sem uso, estacionou o veículo sob as sobras de um ipê em floração e desceu. Retirou a mulher debaixo da lona e a jogou nos ombros, para então seguir uma trilha no meio da mata.

Durante mais duas horas, caminhou com dificuldades, até que chegou numa clareira, de espessa vegetação. Lá, ele jogou a mulher no chão e seguiu por outra trilha, até um tronco morto onde havia escondido uma pá e um pé de cabra. Quando retornou a clareira, a mulher se retorcia, como uma minhoca ferida, tentando se livrar do aperto da corda. Ao ver o homem grunhiu e ele sorriu ao ouvir os gritos abafados pela estopa. Agarrou com violência os cabelos da mulher e a arrastou para próximo de uma árvore, depois, com um pontapé, a fez sentar no chão úmido.

Ainda ouvindo os gritos abafados da cativa, que agora se misturavam a soluços de um choro nervoso, o captor foi até o centro da clareira e retirou um monte de folhas que escondiam um buraco, onde um tonel de óleo estava enfiado. Logo depois, usando do pé de cabra, abriu o barril de aço e buscou a mulher, que entendendo o que iria acontecer, se debatia e gritava com todas as forças, mas a força e brutalidade do sequestrador eram armas mais do que suficientes para dar cabo do intento.

Ao chegarem à beira do buraco, o homem, com um carinho que até o momento não havia demonstrado, depositou a sequestrada no interior do objeto metálico. A respiração da vítima ficou cada vez mais entrecortada, parecia que iria sufocar a qualquer instante.

Ele retirou a estopa da boca da mulher, que exausta, apenas conseguia emitir arremedos de gritos. O homem ficou olhando fixamente nos olhos dela, sua face era uma representação da tristeza mais profunda. Quando cansou de olhar, foi em direção da pá que estava jogada no chão, então a voz fraca e chorosa da mulher partiu o silêncio.

-Por favor, me perdoa?

Ele estancou ao ouvir a pergunta e por longos segundos, ficou imóvel sem saber o que dizer ou fazer, até que ouviu novamente a mulher pedindo.

-Por favor, Henri, me perdoa?

Henrique voltou até a borda do buraco e olhou nos olhos da pessoa que havia sido a causa de todas as suas desgraças e algo no seu coração, agora murcho e quase completamente seco, inflou. Ele se ajoelhou e estendeu a mão até o rosto da mulher, o segurando de forma carinhosa, com um cuidado que só quem ama sabe ter. Ficou olhando nos olhos de Carina, enquanto lágrimas pesadas fugiam de seus olhos. Algo fora quebrado em seu espírito, algo bom e puro. Seu pequeno tesouro de menino, que ele, sonhador e tolo, havia oferecido a uma pessoa que o via como um lixo qualquer. Mesmo agora, prestes a dar cabo a sua vendeta, alguns pedaços desse tesouro que resistiram as dores pelas quais passou, se estilhaçavam, virando pó. Deixando seu peito finalmente seco e morto.

Acariciou aquela que amou por um bom tempo, perdido em lembranças, até que novamente ouviu Carina pedir.

-Por favor Henri, me perdoa? Você foi o único por quem eu já tive carinho.

Ao ouvir a frase, o semblante de Henrique foi tomado por uma sombra cruel e furiosamente, se levantou para buscar a pá. A sequestrada ao ver a reação ante suas palavras urrava como um animal ferido, pedindo socorro e clemência, mas isso só parecia enfurecer ainda mais o homem que cheio de ódio, lançou a tampa no tonel, agora um esquife, o lacrando.

Carina gritava de horror dentro do barril de aço, as trevas eram absolutas e cada vez que a terra caia sobre a tampa, fazendo reverberar um som seco e funesto, ela gritava por misericórdia, quase estourando os pulmões. Mas de nada adiantou.

Após três horas, Henrique saiu da mata carregando o pé de cabra e a pá. A noite já começava a dominar o mundo. Com os dentes cerrados de ódio, jogou as ferramentas sobre a carroceria, entrou na caminhonete e segui em direção da cidade. Seus olhos faiscavam de ódio incontido e vociferando como um animal assassino deixou escapar uma frase por entre os dentes.

-Puta! Dissimulada! Olhou nos meus cornos e mais uma vez mentiu.

Rasgando o silêncio da noite, a caminhonete cruzou a estrada levando o homem, que agora era praticamente uma fera, até a cidade que tanto odiava.

***

Ainda era cedo quando a mulher chegou ao endereço descrito na carta, mas a travessa já se encontrava deserta, apenas os cães e gatos vadios davam alguma vida ao calçamento gasto, onde o mato crescia entre as ranhuras, cercado por galpões da antiga fábrica de conservas enlatadas. Afoita, Dona Oscarina procurou por entre as sombras da passagem, mal iluminada por antigos postes comidos de ferrugem, por alguém, por sua Carina.

Cada canto mal iluminado, parecia esconder uma silhueta, e transloucada de aflição, se pôs a correr de um lado ao outro, procurando nas sombras, chamando por sua filha, por alguém, mas ninguém surgiu.

Esse rompante atlético cobrou seu preço, sentiu sua fronte pulsar e um calor infernal dominou seu corpo, apesar de ser outubro. Começou a ter falta de ar e uma tontura forte, então o mundo pareceu girar ao seu redor. Estava prestes a cair, quando alguém a amparou.

A idosa soltou um grito espantado, ao sentir seu corpo ser tocado e como um bicho ferido, desferiu tapas na pessoa que lhe segurou, de maneira automática, com os olhos cerrados. Já solta, Dona Oscarina tentou se recompor para identificar quem havia impedido sua queda, mas a pessoa estava oculta nas sombras.

-Quem é? Foi você que enviou a carta?

Da escuridão, uma voz masculina fugiu. Era arrastada, idosa, e uma nota de espanto se fazia presente.

-Sou o vigia da fábrica, dona! E sei nada de carta alguma!

E seguindo o exemplo da voz, um senhor idoso, de olhos claros e frios, vestindo uma japona pesada, gasta pelos anos, se colocou sob a luz da rua. Sua expressão era de pura surpresa.

-Ouvi alguém gritando e vim ver quem era. Algumas vezes, uns moleques maconheiros ficam zanzando por aqui, pensei que eram eles, mas quando cheguei, vi a senhora quase caindo e tentei ajudar. Não queria lhe fazer mal, senhora.

Envergonhada, a idosa apertou as mãos contra o peito, como um arremedo de súplica, enquanto tentava se explicar.

-Me desculpe! Estou muito nervosa! O Senhor não tem ideia da situação horrível que estou passando! Minha filha!... A carta!...

Novamente o mundo passou a girar e Oscarina tombou de bunda no chão. O vigia correu em seu socorro.

-Meu Deus! A senhora está bem? Quer que eu chame ajuda?

Caída sobre a calçada, a mulher soluçava.

-Não, tudo vai ficar bem. Só preciso me acalmar, tenho problema de pressão alta. Preciso apenas me acalmar.

O vigia se colocou de joelhos em sua frente, com a voz cheia de preocupação, falou.

-Também sofro por causa da pressão alta. Tenho uma cartela de comprimidos lá na guarita, espere aqui que vou lá rapidinho e trago para a senhora.

O homem se ergueu e apressadamente caminhou em direção do fim da travessa, dobrou a esquina e desapareceu na noite. Oscarina ficou sentada na calçada, sua respiração era pesada e um suor frio escorria de sua face se misturando as lágrimas que desciam por sua face. Ficou sentada por um alguns minutos tendo apenas o silêncio como companhia, tentava se acalmar, mas cada vez mais se afogava na ansiedade que fluía de seu peito.

Perdida em seus pensamentos, nem se deu conta do som dos passos de alguém se aproximando.

O vigia retornou a travessa trazendo uma cartela de comprimidos e uma caneca de alumínio cheia de água da torneira, estava preocupado com a mulher.

Quando chegou ao local onde havia deixado a idosa, não a encontrou. Gritou pela mulher, mas não obteve resposta. Em um misto de raiva e alívio, derramou a água na rua, voltando para seu posto sem entender nada.

***

Quando acordou, seu corpo doía demais. Não conseguia perceber onde estava. A visão, borrada e sem alcance, não ajudava em nada. Tentou se levantar, mas não teve sucesso, pois algo prendia seus pés e mãos. Piscou várias vezes, tentando normalizar a visão, e quando conseguiu: ficou pasma.

Estava em um lugar apertado, com um forte cheiro de óleo de motor, amarrada e amordaçada. A única iluminação provinha de uma vela minúscula, dessas que costumam usar sobre bolos de aniversário, em formato de um número dez, afixada sobre um parafuso.

Gritou em desespero, ou melhor, gemeu, pois a mordaça lhe tapava a boca, a fazendo quase sufocar. Ficou gemendo e se debatendo desesperadamente, até que novamente o ar lhe faltou e tudo virou uma dança de roda, girando. A tontura a fez parar de se contorcer e urrar. Tentou se acalmar e normalizar a respiração, entrecortada e pesada, o melhor que pôde, mas o ar parecia rarear. Quando conseguiu se acalmar, notou que ao lado do lume da vela, uma folha de papel, com inscritos confeccionados da mesma forma que os da carta, estava colada na parede.

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Como a luz era pouca, teve que esticar o pescoço para ler a mensagem, seus olhos se esbugalhavam cada vez mais ao passar pelas linhas:

Espero que tenham sido longos anos, amargos e solitários. Que a dor e a tristeza tenham demolido sua alma mesquinha e frívola até que apenas a desesperança exista.

Rogo que para assim como eu, seu coração tenha sido esmagado e sua alegria destituída pelo escarnio do mundo. Torço para que ao final da leitura, te afogues em ódio impotente, assim como quase me afoguei. Mas diferentemente de mim, tu morrerás tragada por essa correnteza bestial, pois não terá como me fazer mais mal algum.

Espero que sinta a dor, o ódio e a miséria sentidas por mim até que morra sozinha, na escuridão.

Nunca poderá lançar sua filha em uma sepultura, pois vadias como vocês, merecem nada além de um tonel enferrujado em um matagal qualquer.

Agora me despeço, desejando que tenhas horas finais miseráveis.

Sinceramente,

Henrique.

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Antes mesmo de terminar de ler, Dona Oscarina gania, se debatia e molhava a face com uma verdadeira cascata de lágrimas. Sua esperança de rever a filha fora sepultada, assim como ambas.

Mesmo impedida de gritar pela mordaça, urrou tanto e por tão longo tempo, que a voz foi morrendo aos poucos, quase sumindo. Cheia de ódio, desejava encontrar Henrique, para com as próprias mãos esmagar sua cabeça, retalhar seu corpo e alimentar os cães com o que sobrace. Meras quimeras vãs de uma pessoa amarga e sem esperanças.

Quando novamente se acalmou, notou que a chama da vela diminuía, percebeu ainda, que era cada vez mais difícil respirar. Por alguns instantes, não entendeu o motivo do lume estar diminuindo, pois havia mais da metade da vela para ser consumida pelo fogo, mas então, horrificada, compreendeu que o ar estava se exaurindo.

Desesperada, tentou respirar devagar, ficou nesse exercício até notar como a chama, já praticamente uma brasa, ia sufocando. Tão logo a vela se apagou, deixando apenas o pavio em brasa, a idosa voltou a urrar e chorar em desespero.

Ficou lá, ganindo na escuridão, até começar a sentir uma forte fraqueza, uma sonolência profunda, que lentamente lhe arrastou de uma escuridão para outra.

***

O caminhão tremia e saltava toda vez que cruzava um dos inúmeros buracos na estrada de terra vermelha, erguendo uma grande nuvem de pó escarlate, que parecia perseguir o veículo. O motorista pisava fundo, queria chegar ao seu destino antes das nuvens plúmbeas tombarem do céu na forma de gotas e raios. Caso fosse pego pelo temporal, correria o risco de atolar ou, na pior hipótese, perder o controle do velho bruto herdado.

Quando as primeiras gotas atingiram o vidro, já avistava seu destino: sua casa. Lugar modesto, cercado pela mata, onde seu avô levantou uma tapera para viver, onde seu pai, por sua vez, ergueu a casa de tijolos portugueses com as próprias mãos e sem muito conhecimento do oficio de pedreiro. Algumas paredes eram meio enviesadas, com barrigas, mas isso nunca incomodou o motorista, na verdade, amava sua casa, pois era uma espécie de ligação entre as gerações de homens que dividiam seu sangue.

Estacionou a Scania debaixo da velha jaqueira, torta, carregada de barbas-de-velho, cheia de fissuras em sua casca, onde as cigarras se refugiavam. Saltou a cerca de bambu, onde os pés de bucha se retorciam, escalando e espalhando suas ramagens, e então correu rumo à varanda. A chuva já caia ruidosa no momento em que raspou suas botas no piso pintado de vermelho, estancou ao notar seu reflexo no chão—Maria vai me matar—pensou.

Descalçou as botas e as carregando nas mãos, entrou porta adentro. Tudo estava da mesma forma como se lembrava, tudo limpo, organizado e bem cuidado. Apesar de o mobiliário ser antigo e um tanto gasto, a casa simples e humilde era bem cuidada. O homem sorriu satisfeito, pensava em como era um caboclo de sorte por ter se casado com Maria, uma moça prendada, vocacionada para ser mãe e esposa, algo raro nos tempos correntes.

Continuou seu caminhar e após alguns metros chegou à cozinha, a porta dos fundos estava aberta, por isso conseguiu ver a esposa correndo feito louca, carregando lençóis nos braços, vindo em sua direção. Ela sorriu ao ver o marido e após largas as roupas sobre a mesa, o beijou demoradamente.

-Demoraste demais para voltar, João. Resolveu os seu negócio?

Ainda abraçado à esposa, o caminhoneiro respondeu.

-Resolvi, sim. Cadê os meninos?

Se soltando do homem, Maria novamente tomou os tecidos nos braços e enquanto ia para o quarto, explicou.

-Estão com minha mãe, vai ter festa de São Cosme e Damião e lá eles podem correr atrás de doces. E também, melhor eles lá, assim a gente pode matar a saudade—a voz da mulher se encheu de uma lasciva, bem conhecida pelo esposo, quando pronunciou a última palavra.

João sorriu, estava feliz por estar em casa. Retirou uma caneca esmaltada do armário e se serviu do café na garrafa térmica. Recostou-se no batente da porta da cozinha e ficou bebericando a emulsão forte e doce, preparada do jeito que gostava, enquanto seu pensamento vagava perdido.

Sacou do bolso da calça a carteira e ao abri-la, ficou contemplando uma foto onde dois rapazes estavam abraçados sobre a caçamba de um caminhão. Um deles era sorridente, com o olhar cheio de malícia e atrevimento, já o outro, apesar de estar sorrindo, passava um ar de extrema infelicidade, algo em seus olhos parecia morto, sem alma. No topo da fotografia, já um tanto desbotada, havia uma inscrição a caneta: João e Henrique, primeiro frete do sul até o norte. 12 de julho de 19xx.

O homem guardou a carteira no bolso e passou a olhar o céu carregado.

-Tu eras um caboclo bom, Henrique. Burro, mas bom. Meu pai nunca teve outro filho varão, mas nem por isso não tive um irmão—João deixou escapar um longo suspiro, ficou calado por alguns minutos, seus olhos tinham manchas de tristeza quando novamente falou—Tu fez de um tudo por mim, mesmo na época em que eu levava uma vida torta, não me abandonou. Ficou lá, firme e forte, me puxando para fora da podridão. Me ajudou a voltar pra vida direita, até me apresentou Maria, minha esposa, mãe dos meus meninos.

Pousou a caneca no chão e tirou do bolso um maço de cigarros, acendeu um com ajuda de um isqueiro e após o primeiro jato de fumaça, continuou.

-Teve uma época em que pensei que tu fosses boiola, sabia? Tu nunca andavas com mulher, sempre vivia solitário. Tua única amizade era eu —a voz de João ficou embargada e um novo suspiro foi liberto por ele.

-Mas agora, depois que tu te foi, depois de eu ter lido aquele teu livreco de notas, entendo o motivo. Tu não tinhas mais esperança na vida, era um infeliz, e tudo por ser bom e amar a rapariga errada. Sei que tu não eras santo, que fizeste muita merda antes de vir pro sul, mas os corações das pessoas não deviam serem usados como brinquedo e o teu foi.

Tragou mais uma vez a fumaça, para lançá-la em forma de anel rumo à tempestade que varria os campos.

-Hoje voltei lá da tua cidade natal. Fui atrás da mãe da tal Carina, para terminar o que tu querias fazer, mas não teve como. Coloquei-a dentro de um latão também, bem ao lado da filha. Sou muito grato por tudo que tu fizeste por mim, meu irmão. Sempre achei que tinha uma dívida contigo.

Deu uma última tragada no cigarro, jogou a guimba longe e ao expirar a fumaça, disse.

-Agora, penso que paguei essa dívida. Penso que já não devo nada a você, fora meu respeito e carinho. Fique em paz meu irmão.

João entrou na casa e lentamente a porta se fechou.

Tema: Ex.

TTAlbuquerque
Enviado por TTAlbuquerque em 22/01/2015
Reeditado em 29/01/2015
Código do texto: T5110526
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