PARADA GAY

Hoje tem festa na cidade, turistas do mundo inteiro estão nas ruas para reafirmar o orgulho e a liberdade. Do alto, tenho vista panóptica para a multidão colorida e julgo sem pressa as bandeiras que tremulam.

A multidão não me interessa. Nem o orgulho, nem a liberdade.

Admiro a beleza do prédio, projeto meu, construído ano passado. As linhas alongadas da estrutura cortam o sol vermelho pela metade quando vejo a mulher que vai se jogar lá do alto. Segura a mão de uma criança, as duas no beiral. Quadro admirável: parecem, em preto e branco, recorte de jornal velho colado ao fundo da cena colorida quando a tarde finda.

Talvez seja impressão minha, preciso tomar um café, sair da rotina. Tenho visto fantasmas no banheiro, nas escadas. Tenho visto fantasmas nos espelhos. Trabalho muito, vivo sozinho.

O sol se põe.

Decido que é tempo de voltar para casa, para a televisão, para o banho depois da novela e assistir aos noticiários de todos os canais. Deixo o escritório.

Todos os dias pessoas se jogam do alto de prédios, a morte desce e sobe usando elevadores.

Mas aquela mulher vai se matar levando uma criança, vai se jogar do alto do prédio que eu projetei. Não gosto da ideia, se pudesse recolocaria a cena no prédio do outro quarteirão. Enquanto desço, o fantasma da mulher que nem morreu ainda me sorri num canto do elevador. No saguão, imagino a menina de dentes podres que me sorri e dizendo “Posso trabalhar aqui se não morrer?”.

No alto do prédio, é aquela mulher que expõe a criança e não eu.

Risco de morte, mão trêmula. Passo na cantina e acrescento conhaque no café.

Passo a grande porta blindex, levanto os olhos e observo mais uma vez. Tentado a ser testemunha do fato, da notícia, da vida como ela é e não mascarada como está e vai na parada gay que desce a avenida. Estão lá no alto, vivas ainda.

Talvez mais tarde, quando vir pela televisão o caso noticiado, me sinta participante do fato. Às vezes tenho nojo de estar vivo, de parecer vivo quando me sinto notícia aguardada.

Ainda estão lá, figuras diminutas. O resto eu imagino.

A mão esquerda da mulher segura firme o braço da criança que olha para os peitos à mostra. Sinto aquela compunção espúria de tocar nas tetas dela antes que despenque. Sensualidade sem valor estético, adoecemos... Essa é a liberdade que praticamos.

A criança está envergonhada, ou seria eu? É apenas uma criança, não sabe de quase nada. Para mim nunca terá um rosto.

Na luz amena alaranjada, a mulher ergue os braços. Parece proteger-se da ultima claridade. A criança se afasta dela assustada, como eu faria, e dá as costas para o sol. Cega nesse instante, desconhece o abismo e dobra o corpo sobre os joelhos. A mulher solta-se no espaço, a criança cai com ela.

A cidade faminta devora os corpos caindo do décimo quinto andar. A cidade faminta devora os corpos deformados na calçada. A cidade faminta esquece logo o corpo e calçada e a parada gay segue serpenteando a avenida.

Na mente, eu tive tempo de desenhar os olhos da criança, olhos arregalados de pavor. Desenhei também a boca escancarada rasgando a cara dela caindo. Suspendo a respiração, o frenesi coletivo é apenas noticia. É coisa de jornal.

Enfim, sigo pela rua. Encontro a multidão. A multidão e minha história arrastam-se diante de mim. Engolido pela cidade mergulho na fome insaciável dos homens. Toda a estrutura derrete do alto dos andaimes nas construções que não têm fim, sinto as armações de aço derreterem e perpassarem meu corpo.

A cidade comeu os meus dias, levou os meus sonhos. Dou um passo, e outro ainda mais lento.

Estanco, sem reflexão e não resisto ao apelo.

Atiro-me à multidão e beijo na boca um estranho que passa.

Alcântara Batista

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 01/02/2015
Reeditado em 03/12/2015
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