A pena do Diabo

Não sei por qual motivo escrevo. Sei que irei engavetar esse depoimento e esquecer que um dia o escrevi. Mas eu preciso. Preciso ao menos relatar e ter quem acredite em minha história. Pois se acreditarem, saberei que não perdi o pouco de sanidade que tinha.

Eu havia esperado por aquela encomenda ansiosamente, comprei na internet um raríssimo item que iria compor minha coleção. A caixa era de madeira e estava repleta de arabescos e estranhas inscrições, retirei do seu interior delicadamente uma pena antiga. Era grande e negra, com fios muito finos que ainda mantinham o seu brilho. Havia ainda um vidrinho com um líquido negro, com uma etiqueta que dizia: use com moderação, item raro. Sua composição era a costumeira de canetas de pena antigas.

O mais interessante talvez, era saber que aquela pena fora usada por grandes autores como Edgar Allan Poe e segundo o vendedor, anteriormente esteve em outras mãos, como as de Shakespeare e Bram Stoker. E até mesmo Mary Shalley a segurou em noites tempestuosas. Era difícil de acreditar que tal instrumento de criação estivesse finalmente em minhas mãos depois de anos de busca.

Coloquei-o em minha mesa, junto a folhas especiais que havia comprado na manhã anterior, uma imitação sintética de pergaminho, e assim iria iniciar minha escrita em um ritual diário. Ah sim, esqueci-me, mas sou um escritor amador, um entusiasta, um pouco excêntrico em minhas ações diárias como pode notar. Todos os dias, das 19:00 as 22:00, eu pratico um pouco deste meu ofício, infelizmente, não posso dizer que seja uma profissão integral, pois sou bibliotecário em um museu no centro da cidade, meu trabalho é arquivar, organizar e catalogar documentos antigos. Durante meu tempo livre noturno, eu escrevo, uma válvula de escape para uma vida da qual eu não gosto mas já havia me habituado, era o comodismo e o marasmo da vida moderna. Digo, que quando estou com os meus dedos no teclado, abro todas as comportas da imaginação, revelando todos os meus mais sombrios desejos. Mas são histórias para outra hora.

No dia seguinte, eu estava com um sorrisinho meio tolo nos lábios, era a alegria de saber que o item finalmente estava em minhas mãos. Quando minha superior, sempre muito atenciosa veio até mim, pode ouvir o som do seu salto ecoando pelos corredores e também a tensão que isso causava em todos. Para ela, bastava erguer a sobrancelha para insinuar uma expressão de descontentamento e bater com a ponta das unhas longas sobre o balcão.

- Está ocioso hoje é? – sua voz estridente sempre me deixava tenso.

Ela me detestava e não fazia questão alguma de ocultar esse sentimento tão lindo. Me julgava desleixado, deveria ser a barba por fazer ou a camisa sempre amarfanhada ou o fato de sempre usar as mesmas calças. Eu não me importava.

- Tenho serviços para você, não quero ninguém vadiando hoje aqui!

Era a sua frase preferida. Eu apenas aquiescia e lhe fornecia um sorrisinho amarelo e escondia por detrás dele um foda-se sua vadia. Por que estou falando dela? Você vai entender logo mais...

Depois do trabalho eu estava ansioso para retornar para casa, não me importei com o trânsito ou com a superlotação do metrô. Queria apenas iniciar uma nova história que estava matutando há meses. O enredo contava a história de Lenora, que era uma criação de um grupo de escritores que viviam em comunidade, um hotel para ser exato, que era, adivinhe só? Sim, mal-assombrado. Conforme os personagens eram criados, as entidades tomaram suas identidades e se materializaram. Naquela noite eu deveria criar Lenora, minha verdadeira obsessão, idealizando sua voz, seus trejeitos, seus desejos, eu aspirava que ela fosse mais verossímil possível.

Escrevi o máximo que pude e não notei o jorrar das horas, meus olhos ficaram em brasa e os dedos dormentes até que finalmente pudesse finalizar ao menos quatro capítulos iniciais. Assim adormeci exausto entretanto satisfeito com o que havia feito.

Foi então que tudo teve início.

Em uma manhã nebulosa que me virei na cama e senti o cheiro sufocante de cabelos perfumados, abri os olhos ainda sonolentos e notei fios negros ondulados que desciam por um dorso nu e branco. Saltei da cama, estarrecido, completamente estático com a visão das curvas femininas volumosas que se moviam lentamente sob o lençol.

Ela despertou e sorriu para um homem que provavelmente estava com a expressão de um imbecil incrédulo. Levantou-se esticando os braços e bocejando, os cabelos caiam em cachos entre os seios muito pequenos e redondos. Era como eu a havia imaginado, uma pintura de Botticelli, olhos pequenos e castanhos de um brilho dourado e lábios finos e delicados esculpidos em pele de marfim.

Sua expressão infantil e doce era um misto de diversão e curiosidade. Eu apenas a observava com a boca entreaberta até sussurrar seu nome, Lenora...

- Sim... – Ela respondeu em um tom doce.

- Mas, como é possível?

- A pena... – Seus olhos guiaram-se até minha escrivaninha onde estava repousada a pena – todas as criações de nossos mestres andam pelo mundo...

- Drácula, Frankenstein?... – Perguntei, imaginando a resposta.

Ela apenas meneou com a cabeça.

- Todos reais, assim como eu... então mestre, que histórias criará para mim e meus amigos que ainda emergirão?

Ela sentou-se aos pés da cama, com as pernas cruzadas e com uma expressão de curiosidade em seus olhos estranhamente perturbadores.

-

Lenora ficava em casa, trancafiada, longe de olhos curiosos. Vestia uma camisa azul e uma cueca velha minha, seu dia era ocioso, gostava de assistir televisão. Por vezes eu tentei alimenta-la, mas parecia não gostar de comida humana. Constatei isso logo mais tarde.

Ao chegar em casa depois de um longo dia de trabalho, senti um cheiro estranho vindo da cozinha, azedume ferroso e o vapor das panelas enquanto ela cozinhava alegremente. Ao abrir encontrei partes humanas em um ensopado marrom borbulhante. Enlouquecido, tive de dar fim ao que sobrou do que descobri ser um vendedor ambulante que infelizmente bateu a minha porta.

Imagine o que é encontrar partes humanas em seu congelador?

Foi o que aconteceu com a minha chefe, depois que faltei três dias ao trabalho recebi uma ligação, tive o azar de discutir pelo telefone em frente a Lenora. Semanas depois minha chefe estava armazenada em potes de plástico na geladeira, e sua cabeça estava presa a um buquê de rosas falsas com um cartão feito em folha sulfite escrito ´´ Meu mestre, eu te amo``...

Minha vida estava ficando cada vez mais doentia. Durante as madrugadas, incontáveis vezes ela invadia meu quarto em busca de sexo, não imagine que eu não gostasse de início...mas, imagine um demônio montado em você todas às noites sugando sua força vital, reduzindo-o a um trapo humano? Você consegue imaginar? Não queira. Desculpe, não sei quem está lendo, mas acho que pode me entender de alguma forma.

Olhava-me no espelho todos os dias, eu era um resquício de algo que já foi um homem. Decidi pesquisar sobre a tal pena, conseguir respostas, quem sabe colocar um fim naquilo tudo. Não encontrei referência alguma sobre o assunto, mas encontrei alguém que pode me ajudar. Há uma filial dos Warren aqui no Brasil, Sim, Ed e Lorraine Warren, aqueles que guardam a boneca Anabelle. Fica em um escritório mofado no centro de São Paulo.

Disse a Lenora que chegaria mais tarde pois faria hora extra e então me encontrei com um cara esquisito que fumava charutos e tinha um ar soturno, tipo um Constantine à Brasileira. Retirei a pena da caixa e sua expressão foi de surpresa:

- Onde conseguiu isso?

- Na internet– eu estava com um ar cansado e meio absorto.

- O endereço?

- desconhecido...

Ele segurou a penas nas mãos, passando os dedos pela sua estrutura, do cálamo, barba e bárbulas. Espetou a ponta no dedo indicador e uma gota de sangue surgiu, a pena parecia beber a pequena gotícula vermelha. Ele estava com os olhos muito atentos e sua expressão era tensa.

- É autêntica... a pena das asas de Lúcifer...

- Eu não compreendo...

- Lúcifer era um anjo e tinha asas, quando caiu em desgraça, suas asas foram tingidas de negro, pelo menos assim diz a lenda e como punição logo ao ser julgado teve suas asas extirpadas. É a mais alta punição dada a um celeste como dizem nos livros...

Olhando com uma expressão sem ânimo eu não conseguia ao menos compreender do que ele estava falando.

- Dizem que a pena amaldiçoada foi usada por diversos escritores e suas criações ganharam vida. Lorraine conta que o próprio Poe foi morto por uma delas, mas ninguém acredita nisso...

No princípio em não acreditava, era apenas um item de colecionador...

Ele percebeu meu devaneio.

- Não me diga. Ah não, você criou algo? – Minha expressão apenas confirmou a sua pergunta – livre-se dela ou dele, o que você criou mesmo que não queira é mal, fará mal aos outros e no fim destruirá você!

Mal sabia ele que ela já havia feito o suficiente até o momento.

Antes de sair deixei a pena aos cuidados do homem, que me garantiu que encaminharia ao museu Warren, mas avisou-se que itens como este havia aos milhares no mundo. Pelo menos sabia que o item em questão ficaria longe de mentes criativas com potencial destrutivo. Retornei à minha morada um pouco mais tranquilo sabendo que a pena estaria em boas mãos. Mas pensei, afinal, o que faria com a minha criação?

Ao chegar encontrei Lenora, sentada no chão da sala como uma criança cantarolando, as pernas entreabertas revelaram o cadáver de um gato, com as mãos ela segurava as entranhas e as levava sôfregas a boca. Os cordões de sangue envoltos em gordura pingavam de seus lábios e como uma criança que se lambuza com chocolate ela sorria. A imagem me fez curvar e vomitar o pouco do alimento escasso que havia em mim e isso parecia diverti-la ainda mais.

Era doentio.

Eu não poderia suportar mais.

Nesta mesma noite em que escrevo está carta, uma noite chuvosa na qual o céu é um vermelho sangue, irei com ela para longe, com a promessa de mostrar-lhe o mundo. Quando disse isso a ela, seus olhos cintilaram de excitação. Mas na verdade, estou levando-a para a morte. Há litros de gasolina no porta-malas, junto aos meus escritos.

Pode ser a última vez que escrevo algo, como pode ser que ninguém o leia.

Talvez Lenora será destruída essa noite ou talvez eu morra com Lenora.

Mas sinto em meu espírito aflito que talvez as criações de um escritor nunca morrem.

Carta encontrada em hotel que segundo o noticiário local apenas um corpo fora encontrado carbonizado.

Janeiro de 2015.

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 07/02/2015
Código do texto: T5129247
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