Em seus sonhos

Todas as noites de sexta feira é a mesma coisa, fico enrolando para dormir, lutando com o sono, me afogando em café amargo com coca cola. Ando pela casa, vou até a janela, olho para a rua.

Algumas pessoas circulam como insetos perdidos.

O cheiro da noite invade minhas narinas, cerveja, drogas e prostituição.

O bairro onde vivo é barra pesada. Mas minha vida está ali.

Quando não aguento mais, me deixo cair no velho sofá da sala. A TV ainda ligada é minha companhia.

E eu sei que ele virá, como toda sexta feira. Seus olhos amarelos, seus hálito nojento e os tentáculos que saem de seu rosto como um polvo apodrecendo.

Eu sei que ele quer me pegar, só não sei porque.

Isso eu não sei....

Acordo apavorado, angustiado, desesperado seria a palavra mais correta.

A cada sonho que tenho ele se aproxima mais, e mais.

Não sei até quando vou conseguir fugir e sei que quando ele me pegar nos sonhos eu não acordarei mais.

Será meu fim. Tenho de fugir. Sempre. Mas tenho mais uma semana de vida, agora só na sexta feira.

Quando o caçador vira caça, onde o invasor é invadido e tem de fugir....

Sim, durante seis dias da semana eu faço o mesmo que a criatura faz comigo.

Tudo começou há muito tempo, eu ainda era um adolescente e tinha pesadelos.

Com morte, sangue, assassinatos e demônios. Acordava aos prantos e gritando. Minha mãe sempre me levava para seu quarto, onde eu acabava de dormir.

Mas o namorado dela algumas vezes dormia lá e quando isso acontecia, minha mãe me deixava em meu quarto e nem ia me ver. Isso me deixava com ódio, dela e do namorado.

Uma noite, em meus pesadelos, um ser horrendo, me emboscou em um beco. Senti muito medo.

Ele se aproximou, fazendo sons estranhos com sua boca aberta, de onde escorria uma gosma. Seus olhos vermelhos a me fitar. O medo que senti era indescritível. A criatura andou ao meu redor, me cheirou como se eu fosse sua presa e que seria devorada ali naquele momento.

Naquele momento, dentro de meu pesadelo pude ver minha mãe e com ela vi também o namorado dela, e eu sabia que ela não iria me socorrer naquela noite.

Por um momento até esqueci a criatura a meu lado. O ódio estava me dominando. Eu queria me livrar dele. Aquele invasor. Aquele intruso.

E de alguma maneira a criatura percebeu isso, ela sabia o que eu estava sentindo e me olhou nos olhos.

Pude entender em seus olhos uma insinuação: mate-o !

Eu te dou o poder de invadir sonhos e fazer o que quiser, e o que é feito nos pesadelos acontece na vida real.

Mas tudo tem seu preço. Nunca ultrapasse seus limites. Nunca.

Aquela criatura na minha frente não possuía uma boca, era uma cena muito desagradável.

Mas ainda assim se comunicava comigo.

Fiz um esforço para captar a maneira que ele tentava me ensinar o que eu deveria fazer.

Depois de alguns minutos, eu estava dentro dos sonhos dele, e pronto para transformar em um pesadelo.

Eu não sei qual era minha aparência, mas devia ser horrível, pois ele, o namorado de minha mãe ficou apavorado ao me ver. Não tive sentimento algum. Só o desejo de acabar com ele. Ele foi se afastando até ficar preso em um beco.

Fui me aproximando e peguei em seu pescoço. Seus olhos se esbugalharam para fora.

Senti prazer fazendo aquilo. Em matar.

A criatura olho e repetiu: Nunca ultrapasse seus limites. Nunca.

Só me lembro de minha mãe acordar aos gritos. Ele estava morto ao lado dela. Asfixia foi o diagnóstico do médico.

Senti-me culpado, pois eu o havia matado, em sonho mas era a realidade. Mas o sentimento de culpa logo me deixo.

A princípio fiquei chocado, mas ao mesmo tempo aliviado. Minha mãe voltou a ser a minha mãe, que cuidava de mim sempre que eu precisava. E por um bom tempo fiquei sem ter pesadelos e nem sonhos bons.

Muito tempo se passou. Vários anos.

Uma dia, eu o vi, parecia estar me seguindo. Usava uma capa preta e um chapéu. Eu não sabia quem era mas sabia que ele me queria.

Quando eu voltava para casa no final da noite, ele me abordou.

- Como vai? Me perguntou

- Há quanto tempo. Tem sentido minha falta? Em seus pesadelos.

Senti um frio percorrer meu corpo, apesar de ser uma noite de verão e estar bem quente.

- O que você quer? Perguntei.

- Quero que você fique em meu lugar, que seja o Invasor de sonhos. Meu tempo está se acabando.

- Não posso. Não quero.

Me virei e fui andando.

- Pare. Não é uma escolha. Você precisa fazer isso. É uma troca.

- Não. Não posso.

- Você não tem querer. você é.

Eu já não sabia mais se estava acordado ou se estava em algum sonho. Tudo parecia escuro, assustador e frio.

Eu me me via entre enormes árvores, tudo era escuro e ouvia gemidos, vozes, gritos.

Sai correndo. sem rumo. mas parecia que não saia do lugar.

De repente eis que ele estava na minha frente. Feio, imundo e nojento, com seus tentáculos saindo de seu rosto.

- É assim que você é. É assim que vai ser.

- Você é um invasor de sonhos agora.

Senti algo se abrir sob meus pés e cai. A sensação de desespero e medo.

Acordei em minha cama sentindo um cheiro de fumaça. Eu estava sujo e molhado. Cheirando mal.

Me arrastei até o chuveiro e fique lá por um bom tempo.

Minha cabeça doía e meu quarto girava.

Toda noite a partir de então mesmo sem querer eu me via invadindo sonhos de muitas pessoas, algumas conhecidas e outras estranhas.

Descobri que os sonhos e pesadelos só acontecem porque os invasores entram em ação.

Existem muitos. Bons, maus, assustadores ... enfim... estão todos por aí.

E numa noite dessas, acabei salvando uma moça de um invasor cruel e louco que queria matá-la.

Sim, eu a conhecia muito bem.

Ela cuida de mim aqui no hospital onde estou há algum tempo.

E agora toda noite a criatura tenta me matar.

Faz alguns dias que não durmo. Sempre consigo disfarçar e jogar os remédios fora.

Não, ele não vai me pegar.

Ele não vai invadir meu sonho...

Hoje não.

Paulo Sutto
Enviado por Paulo Sutto em 10/02/2015
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