689-A MORTA-VIVA-

E lá estava ela, hirta e branca como convém a todo cadáver. Mas não estava nem morta e nem inconsciente. Pelo contrário, estava viva e bem ciente de tudo o que estava ocorrendo ao seu redor. A tal ponto de saber exatamente que estava próximo o momento em que a tampa do esquife seria colocada sobre si, aparafusada e ela seria levada para a cova.

O terror estava presente em cada célula de seu corpo, em todos os neurônios, ativando a adrenalina — e ainda assim, ela lá estava, sem nada poder fazer para evitar que fosse enterrada viva.

Somente as funções metabólicas estavam diminuídas ao mínimo. O consciente e as sensações básicas como a audição, o olfato, a visão e o tato permaneciam. As pálpebras foram cerradas por alguém, impedindo-a de ver. A audição e o olfato é que lhe davam pistas do que estava acontecendo. E, aterrorizada cada vez mais, ela deduzia o que estava por vir.

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Susana Friedschman era — ainda é, embora perto de deixar de ser — antropóloga. Não havia completado quarenta anos e seu trabalho era reconhecido nos meios científicos do mundo inteiro. A herança deixada pelo pai à filha única permitia-lhe dedicar-se inteiramente à sua paixão pelos índios da Amazônia, com os quais convivera a maior parte de sua vida.

As fábricas e o patrimônio imobiliário estavam sob a gestão de uma holding que, bem administrada, que lhe proporcionavam conforto financeiro. Casara-se aos vinte e quatro anos com Emiliano Zampata, um jovem mexicano, que gostava de fazer filmes mas que não saíra da mediocridade. Não acompanhava Susana nas suas viagens e aventuras de pesquisa antropológica. Ultimamente, dedicava-se a fazer curtas-metragens pornográficos. A renda fabulosa da esposa proporcionava-lhe também recursos para seu capricho de cinegrafista amador.

Na prática, Susana e Emiliano não viviam juntos: ela passava meses na floresta, e dias em Curitiba, para onde trazia os resultados de suas pesquisas. Ele, sempre metido com filmagens as quais descambavam constantemente para orgias documentadas em filmes libidinosos.

De tanto conviver na mata, com as tribos mais remotas do planeta, Susana perdera a noção de tempo. Suas vindas à civilização, ao seu domicílio, eram raras e exclusivamente para trazer produtos de suas pesquisas: plantas com propriedades diversas, aproveitadas na indústria de cosmético ou em laboratórios de sua propriedade. Ou peças para os museus.

De todas suas pesquisas, havia uma que não divulgara. A seiva de determinada planta nativa da floresta da região dos índios baniubas na região do rio Purus, uma das mais remotas do Brasil, na divisa com a Colômbia e Venezuela.

— Esta seiva paralisa animais e pessoas por muito tempo. Ficam como mortas. Chama-se caapi-moji. Erva do mal. Nunca usar em pessoas. Erva Maldita. — Dissera o Pagé baniuba que lhe revelara o poder da planta.

Ela sabia do que o pajé estava falando. A seiva da planta, quando ingerida ou introduzida no corpo de animais ou pessoas, induzia a um estado cataléptico, isto é, o indivíduo fica paralisado, apesar de continuar funcionando os sentidos e as funções vitais, só que um pouco desaceleradas. A pessoa fica parecendo uma estatua de cera e é dada como morta.

Era um segredo que ela manteve consigo. Como todo segredo, entretanto, está sujeito a uma revelação, este foi chegar ao conhecimento de Emiliano. Nada de grave, se, por sua vez, Emiliano não ouvisse agora mais as opiniões de Janete, a estrela atual de seus curtas pornográficos.

— Você é bobo! Com essa imensa fortuna de Susana em suas mãos, você poderá se tornar o produtor dos melhores filmes do mundo. — Janete aconselhava Emiliano, já se vendo no centro de fabulosas produções cinematográficas.

— Não posso me livrar de Susana. Qualquer coisa que eu fizesse para eliminar minha esposa, a suspeita recairia sobre mim, em primeiro lugar.

— Use a cabeça, seu tolo. – Janete adorava provocá-lo, chamando-o de bobo e de tolo, desafiando-o a uma ação.

O repto estava lançado. A idéia começou a roer a cabeça de Emiliano. Aceitando a idéia de matar a esposa, começou a pensar como a colocaria em prática. Lembrou-se da informação sobre a seiva misteriosa, guardada pela esposa no cofre da residência, de acesso comum ao casal.

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Foi numa ocasião comemorativa à qual Suzana estava presente. Emiliano, hábil dissimulador, colocou a seiva no copo de bebida da esposa e aguardou o resultado, que não demorou.

— Ui, acho que bebi demais! — disse Susana aos amigos, deixando-se cair pesadamente numa poltrona, ainda no recinto da festa. — Estou zoando...

Emiliano se antecipou:

— Venha, vou levá-la para casa.

Guiou rápido pela madrugada, a ponto de que Susana estava ainda caminhando, inda que apoiada nele, ao chegar em casa. Subiram para o quarto do casal, onde ela, ajudada pela empregada, trocou de roupa e deitou-se.

Pouco antes do amanhecer, Emiliano, observando a esposa imóvel, sem sinal de vida, telefonou para o doutor Amarildo, amigo do casal, médico de renome em Curitiba.

— Por favor, venha depressa! Suzana está passando muito mal.

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O veredicto do médico foi imediato:

— Está morta! Como foi isso?

— Ela sentiu uma tonteira na festa, chegou aqui com enjôos e deitou-se.

— Uma síncope fulminante, sem dúvida. — disse o médico.

— Ela se queixava ultimamente de constantes dores do peito. Mas se negava a consultar um médico, fazer exames, essas coisas. Ela mesma dizia que dispensava consultas, estava muito moça e na hora certa, saberia como agir. Ela acreditava mais em pajelança do que na medicina ortodoxa.

— É compreensível. De tanto viver no meio dos índios, esquecera-se de si mesma — disse o médico, enquanto preenchia o atestado de óbito.

No quarto, Susana, depois do mal-estar inicial, voltou à consciência plena. Nada podia ver, pois suas pálpebras estavam cerradas e ela não conseguia abri-las. Tentou movimentar-se mas não pode. Nem mesmo as pálpebras obedeciam ao seu comando.

Ouviu os passos se aproximando da cama, sentiu o frio do estetoscópio em seu peito, ouviu o diálogo entre o marido e o médico

Num átimo, compreendeu toda a situação: Estava sob o efeito da Icaapi-moji, a erva do mal. Mas como foi que viera a ser vítima? Como a seiva entrara no seu corpo?

Impedida de se movimentar, o pensamento, entretanto, funcionava com uma intensidade potencializada talvez pelo efeito colateral da droga. O raciocínio foi rápido e conclusivo:

Emiliano! Ele me aplicou a seiva. Só ele sabia da droga e onde estava guardada. E colocou na bebida!Na festa desta noite! Sim, quando senti a zoeira, pensei que estava tonta.

E prosseguia pensando, tirando conclusões:

Se foi Emiliano — e está claro que foi ele — que colocou a caapi na minha taça, colocou numa quantidade que me fará ficar neste estado por muito tempo. Tempo suficiente para me enterrar viva!

Desde aquele momento, o terror tomou conta da mente de Suzana.

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Pode ouvir toda a agitada movimentação ao seu redor. Sentiu quando foi embrulhada em um lençol e levada, escada abaixo da grande mansão, para o carro funerário, que a conduziu para o velório.

Parece que tudo já estava preparado para seu enterro.

O medo se transformou em pavor, à medida que as horas passavam. Dezenas, centenas de pessoas se aproximaram do esquife onde ela estava acomodada entre flores de cheiro adocicado, cheiro de morte. Sentia-se coberta por um véu que roçava seu nariz, a testa, os cabelos e as mãos cruzadas sobre o peito.

O véu da morte, pensou.

A imobilidade dentro do exíguo esquife gerou um novo pavor: a claustrofobia.

Nunca vou conseguir sair daqui. Vão me trancar dentro do caixão, me enterrar viva!

Por mais que se esforçasse, não conseguia mover nada. Seu corpo não obedecia a nenhum comando consciente.

Se eu conseguisse pelo menos abrir os olhos ou dar uma piscada. As pessoas veriam que não estou morta.

Inútil. Nem as pálpebras, nem a boca, nem um dedo. Imobilidade total.

As horas passaram lentamente. Não se poderia dizer que o terror, o medo, o pavor, a claustrofobia e outras sensações iam aumentando, pois tinham atingido há muito o seu clímax. Era como se o corpo de Suzana fosse uma pilha viva gerando essas ondas de energia, que se espalhavam inocuamente ao seu redor.

Uma movimentação maior gerando um som de arrastar de pés indicou à morta-viva que estava chegando o momento do enterro.

Ela não pode ver quando Emiliano, ajudado por outra pessoa, pegou a tampa do caixão. Mas sentiu. Sentiu em cada fibra de seu corpo que aquele seria o momento final, pois uma vez lacrada dentro do esquife, sua morte estaria consumada.

A mente humana tem poderes sobrenaturais. Foi naquele momento crucial, e definitivo que, além de todo o poder paralisante da droga maldita, a reação ocorreu. Concentrando-se num único e extremo esforço, a mente de Susana fez com que sua boca abrisse e as cordas vocais emitissem um grito que mais se assemelhou a um urro mortal.

NÃÃÃÃÃÃÃOOOO!

Todas as pessoas no recinto se assustaram. O que ajudava Emiliano a levantar a tampa levou tamanho susto que a tampa se lhe escapou das mãos. Emiliano, também surpreso, não conseguiu sustentar sozinho a tampa, que caiu ao chão com estrondo aumentando ainda mais a confusão que passou a imperar no recinto.

Alguém gritou:

— Ela não está morta não!

Pessoas mais atrevidas acercaram-se do esquife. Entre os curiosos, um homem decidido, afastou o véu e levantou as pálpebras. Susana viu a face vermelha do homem bem acima de si. Os olhos brilharam com lágrimas que brotaram espontaneamente.

— Ela está viva sim! Está chorando!

O pandemônio se instalou no velório. Emiliano viu que todo seu plano fracassara e que os resultados seriam nefastos.

— Me ajudem aqui, vamos tampar logo o caixão.

Inutilmente tentou levantar a tampa, pois outras pessoas se interpuseram e o impediram.

— Água. Tragam água! — alguém gritou.

As velas foram apagadas e afastadas. O mesmo homem que se aproximara e vira as lágrimas nos olhos de Suzana, agora tentava levantá-la.

Ela estava ainda sob os efeitos da droga, mas conseguia piscar e articular sons.

Foi um tanto grotesco levantar o corpo hirto e retirá-lo o esquife. Esfregaram-lhe os pulsos, passaram água na testa. Alguém começou a massagear o peito. Medidas aleatórias e ineficazes, pois a droga ainda imobilizava o corpo.

Levada às pressas para o hospital, sob o comando do doutor Amarildo, o mesmo que atestara sua morte, permaneceu sob observação e com medicamento anti-cataléptico injetado através do soro.

Somente algumas horas depois dos primeiros sintomas de vida é que o corpo de Susana foi voltando à normalidade. Sua consciência, entretanto, não lhe faltou um só momento durante todo o tempo em que estivera aparentemente morta. Por isso, ao voltar a articular palavras, estava tão certa de que fora o marido o autor de toda a tentativa de eliminá-la, que perguntou:

— Emiliano... Onde está meu marido?

Foi então que se deram conta de que a última vez que viram o mexicano fora no velório. Depois, nunca mais foi visto em lugar algum.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 21 de outubro de 2011

Conto # 689 da SÉRIE 1OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 07/03/2015
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