Ocí: Olho Cego Incendiário

O eremita Theobaldo, cansado da correria das grandes metrópoles, subiu o complexo da serra “Deus me livre” e no pináculo “Ventos Tira chapéu”, o mais alto da região, armou a tenda e lá se instalou. Esse senhor de cabelos brancos e ralos, barba longa misturando-se aos cabelos que escorriam pelo peito, boca escancarada em formato de meia lua ao contrário, olhos esbugalhados e assustadiços saltados para fora da órbita, motivados pelos traumas dos sucessivos assaltos. O campo de visão do olho direito voltado para à esquerda, cruzando com o campo de visão do esquerdo, que está para direita. Theo é a uma criatura diabólica em pessoa.

- Aqui estou perto do céu e longe do inferno aterrorizante das cidades grandes. – E sempre que proferia algo que lhe comprazia, resmungava o “Theo-reu-theo-theo”, que segundo suas palavras, era o encantamento que poderia livrá-lo de todos os males.

- Isso é o que você pensa, barbudo dos diabos. Rah, rah, rah, rah! Na vida tudo é terror e sofrimento; nada de encantamento. Rah, rah, rah.

Os traumas dos assaltos e o convívio com toda sorte de traumas deixaram profundas marcas psíquicas naquele senhor. Nos últimos anos, Theo estava tendo alucinações e visões de mundo além-real. Às vezes, pegava-se confabulando com algo imaginário e nele, vagava um Olho Cego, o qual trazia-lhe sérios problemas psicológicos. “Algo que me atormenta, estrangulando-me a garganta, sufocando minha voz, dilacerando meu sorriso, com sua adaga afiada, quer torar, cortar, decapitar minha cabeça”.

- Pensas que pode se livrar de sua alma penada, seu barbudo alucinado? Sou ela. Usando outras pessoas na cidade, era eu que lhe atormentava. Lembra-se da vez que levaram a navalha em sua garganta, ficando um pequeno risco? Por que não chamou o seu amuleto? O gato tem sete vidas, mas você não terá a mesma dádiva dos felinos.

Ao ouvir isso, Theo soltou berros avassaladores: “Diabos, o que está me acontecendo? Vai desatinar o lúcifer”. Dito isto, uma tremedeira invadiu lhe o corpo e arrepios eriçaram-lhe os cabelos. “Rah, rah, rah”!

- Suma daqui! Vai aterrorizar outro ambiente. Não foi dessa vez, Theo-reu-theo-theo!

- Não. Posso até ir para outro lugar, desde que sua cabeça vá junto. O corpo pode ficar, se com o seu sangue, me banhar.

Certa ocasião Theo saiu para buscar lenha. Estando ele longe de casa, catando gravetos de cócoras, quando um cipó desceu de uma árvore e enrolou em sua garganta, levando-o ao desespero. Quanto mais tentava safar-se, mais se via estrangulado. Theo se debatia, enquanto que o cipó tentava de todas as formas amarrar-lhe os braços junto ao corpo; se isso ocorresse, seria o fim do eremita. De tanto debater-se, deu seguidos safanões no cipó, lançando-o no chão. O Eremita precipitou-se para cima dele, que dando-se por vencido, retornou rápido para a árvore de onde viera. Lá de cima, bradou: “Barbudo criatura dos infernos, pensas que venceu esse round, pelo contrário, bote as barbas de molho, porque você acaba de assinar sua sentença de morte”!

- Não foi dessa vez, Theo-reu-theo-theo!

Assim que se viu livre, Theo saiu em desabalada carreira de volta para casa, se jogando sobre as moitas de capim e pisoteando cipós que tentavam de todos os meios laçar suas pernas. Esbaforido e com o andado trôpego, avistou sua tenda. Pensou: “Como vou preparar minha comida sem lenha”?

- Por que dessa preocupação criatura desnaturada? A lenha chegou primeiro que você; aliás, a comida já está pronta. Quem se une ao Olho Cego (verme) que vagueia em lua cheia, não está sozinho.

Se o Eremita possuía o “Theo-reu-theo-theo” como livramento, encantamento e amuleto, do nada surgiu o Rah, rah, rah! Parece que as forças ocultas se equilibravam; porém, nem tanto. Uma voz rompeu os ares: “de agora em diante sempre que ouvir o Rah, rah, rah, ele vem acompanhado de: “contando as horas para sua cabeça decapitá”! Passado certo tempo, a voz insultou: “Ué, não vai pedir ajuda ao amuleto”?

- So...co...cor...ro! Eu me rendo. – Theo berrou desesperado.

Cenas como essas, o Eremita passou por várias; umas menos aterrorizantes, outras viscerais e dilacerantes, a ponto de pensar em se matar. Espaçadamente, por três vezes a morte apresentou-lhe as armas, com Theo, revidando e safadando-se às duras penas. Ao se ver livre, ruminava o “não foi ainda dessa vez, Theo-reu-theo-theo”! O que inflamava e enfurecia o verme. Verme, ou Olho Cego?

- Curioso você, hein escritor? Um ou outro; ou ambos, cabeça vai rolar. Fica esperto escritor picareta de merda! Bisbilhoteiro!

- Calma, calma! – sem saber com quem estava falando, aterrorizado, arrepiado e trêmulo, preferi continuar a descrição do conto sem fazer perguntas. “Isso mesmo, inútil!”

Para afugentar os olhos e cipós misteriosos da floresta, O Eremita sempre mudava de caminho. Pensava que mudando o trajeto, poderia escapar das investidas sinistras do Olho Cego. De tempo para cá, para se defender nunca mais tirou da cintura o facão e afiou estrovengas e machados, deixando-os debaixo do travesseiro. Recarregou a bacamarte que a tempos não espirrava um grão de pólvora. “Que venha o Olho Cego, o Verme, o Cipó, oooo...as puta que os pariu”!

Na semana anterior, ele havia ido à cidade fazer compras. Embora na folhinha fosse noite de lua cheia (os números estavam cobertos com pingos de sangue), a noite estava coberta com nuvens acinzentadas, encobrindo metade da lua, cercada por uma batalha de cavaleiros e espadachins. Noite sombria, onde o compasso da sinfonia era marcada pelos uivos de lobos. “Aaaaauuuuh, Aaaaauuuuh, Aaaaauuuuh”! Os uivos intrigavam o Eremita que sob a sombra do medo e do espanto, varria com os olhos os quatro cantos da trilha. Como se não bastasse, seus devaneios e alucinações o tomou de assalto.

- Estás cavando sua própria cova, Theo. Por favor, morra de fome, mas não vá fazer compras. Repito: estas cavando a sua sepultura.

Theo, além do facão na cintura, carregava no ombro a estrovenga, que assobiou cortando os ares. A noite estava sombria, funesta, mas sua cova talvez estivesse longe dali.

- Es..teja, onde este..teja, mudei de ideia e não vai me in..intimi...midar facil..cilmen... Nem terminou de balbuciar a frase, quando a meia lua tornou-se um olho cego e vago, grudando em sua jugular:

- Rah, rah, rah, desta vez não me escapas! Grita agora profeta barbudo, tirado a resistente e forte. Vai morrer sim, e digo mais, serás decapitado e dividido em três partes.

Os dois travaram uma batalha campal. Um dos lobos saltou da árvore e meteu-se entre eles; na realidade era comparsa do Olho Cego. Theo buscando força e resistência dos heróis de guerra, deu um salto para trás, conseguindo escapar do Olho e com o troar da lâmina cortante da estrovenga no ar, uma vez que corta nos dois lados, acertou as patas dianteiras do lobo; que manquitolando foi choramingar o seu uivo debaixo dos arbustos.

O Verme retornou à metade da lua. Com muito custo e heroísmo, o Eremita safou-se de mais essa. “Ainda não foi dessa vez, Theo-reu-theo-theo”! – Não provoque ele Eremita.

- Você é aliado do barbudo dos infernos, escritor? Já te falei, não se meta; a menos que queira ser ele.

- Não, não!

Cinco anos, três meses e quinze dias se passaram. Durante esse período, as investidas do Olho Cego ao Eremita foram diminutas; para o bem da verdade, foram apenas insultos de parte à parte, mas nada de confronto direto e acirrado, como costumavam duelar. Tudo transcorria, senão em perfeita comunhão, pelo menos tomados à indiferença. Um para lá o outro para cá. Cada um na sua. Tomavam caminhos opostos.

- Você que acha. Está pensando que o terror está por terminar, engano seu. Ainda terás muito, o que relatar. Não há paz que dure mais que um dia e terror que seja menos que a vida toda. Terror é semelhante à guerra e ambos se completam. Terror é morte precoce.

Dito isto, gotas de sangue espirraram da ponta da caneta, molhando a folha de papel; enquanto que Theobaldo se debatia contra o laço, que sempre usara para laçar as caças e que mantinha-o no topo de um dos potes de sustentação da tenda. Pegando-o nas mãos para ir à caça, covardemente, ele enrolou em seu pescoço e aos poucos ia apertando, apertando, apertando a ponto do Eremita lançar para fora da boca uns centímetros de língua. Em sua defesa, a estrovenga passou lambendo o laço, que com uma das pontas, tentava, atabalhoadamente, laçar o objeto voador. Agonizando a morte, Theo estava entre a forca e a navalha, pois qualquer erro da estrovenga, poderia decepar-lhe o pescoço.

- Não estrovenga; cuidado, qualquer erro pode levar-me à cova. Será isso então que disseram que iria comprar e com ela cavar a minha própria sepultura?

Por pura sorte, se é que assim pode-se dizer no momento de desespero e prenuncio de morte, o laço o soltou. O Eremita balançou a cabeça horizontalmente e fez retumbar o seu aforismo: “Ainda não foi dessa vez, Theo-reu-theo-theo”. Em resposta os lobos uivaram, um relampejar de luz no céu, dando a entender que acordara a lua, trazendo consigo o Olho Cego, juntamente com o Verme; cipós e todos o montante malévolo que habitava o pináculo “Ventos Tira Chapéu” enfureceram-se e em uníssono berraram “definitivamente vai morrer seu desmiolado! Se ficasse calado, talvez teria melhor sorte, mas como é um boca aberta, sua jugular passaras pelo crivo da sentença final”.

Esse último duelo, enlaçado como “batalha final”, passava-se na fonte, local onde o Eremita lavava suas roupas. Repentinamente, o assombro do invisível, falou algo: “de tanto fazer rir e cantar, morre o rei e a cigarra”. Theo olhou ao redor não vendo nada. Logo veio a ideia que era coisa de sua cabeça, pois, como ele mesmo sabia, passara por confusões mentais muito, mas muito acima dessa. Uma outra voz cálida, mansa saída do fio de água, disse: “Cinco anos, três meses e quinze dias se passaram. Vai lavar toda a roupa, inclusive a do corpo”?

- Ah, vai! Ô se vai! E vai ser agora.

- Não, Theo. Lembra o que disse. Cavou a própria cova. Meus Deus! Que boca essa minha.

- Theo, desgraçado, os seres invisíveis da floresta vieram para aniquilá-lo. Nem tente correr, usar estrovengas, facões, bacamarte. Ou melhor, venha com todo o arsenal de possuir. Antes do golpe certeiro e fatal, qual o seu último e derradeiro pedido. .

- por favor...nunca mais direi o “Ainda não foi dessa vez, Theo-reu-theo-theo”. Eu...eu...

E antes de qualquer outra palavra, vozes cortaram o céu, abrindo uma fenda, trazendo de volta a lua, O Olho cego, o Verme, cipós, lobos e...que precipitaram para cima do infeliz, caduco e alucinado Eremita, amarrando-o, enlaçando-o, enfiando os dentes em suas carnes, quando o pior aconteceu: um nó prendeu-o, para que a adaga entrasse de um lado e saísse do outro lado do pescoço. Em segundos, a cabeça tombou para o lado, que não suportando peso, caiu de cara no chão.

- Falei para não comprar ela; ainda por cima, tirou-a do corpo. Ela era a sentença de morte.

- Zombe agora, Idiota! Você estava condenado a tempo, estava somente esperando a liberação da sentença.

Theobaldo, o ex-Eremita do pináculo “Ventos que Tira Chapéu”, tinha fôlego de sete gatos e sangue de barata e após cortado, separado em três partes, não derramou uma gota sequer do líquido vermelho; que nos humanos, denominam sangue. O que faz fluir a vida nos vermes?

- Depois de tudo o que escreveu, vai desafiar”?

- Cla..claro que...que não, Verme! Que me...me...medo!

- “O corpo pode ficar, se com o seu sangue, me banhar”. Pelo menos esse prazer, esse gostinho, não terás; Theo-reu-theo-theo! Embora agonizando, zombou relutante a cabeça.

Saíram todos do local, inclusive a cabeça, indo o Olho Cego ( O Verme? ) para a lua. Cipós e lobos para as árvores. E...foi procurar outro corpo para incorporar. A cabeça?

- Não toma emenda mesmo, em escritor! Podemos voltar, só que para fazer o mesmo que fizemos, acreditamos que você tenha sangue.

- Nãâão! Me...me...meu san...san...san...sangue, nãããão! Sentindo um

calafrio no corpo e um algo colado em minha garganta, acordei sobressaltado; todavia, leve feito pluma por saber que Ocí havia perdido a guerra e por isto, não aterrorizaria o pináculo "Ventos que Tira Chapéu".

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 23/03/2015
Reeditado em 25/03/2015
Código do texto: T5179916
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