ALMA FRIA

O velho parou na entrada da cidade petrificado com tamanha beleza. Passou suas mãos escuras de sujeira e sol sobre a pele suada do rosto e se pôs a caminhar em direção ao que parecia ser uma pracinha .

___ Que lugar convidativo! Pensou alto enquanto examinava o velho relógio de pulso que se agüentava em seu braço preso por um fino arame. Talvez eu fique aqui por alguns dias a mais , talvez um mês desta vez... Talvez até me estabeleça aqui , quem sabe? Não... não devo fazer planos , a cada dia já basta o seu próprio mal.

Praticamente se jogou em cima do banco , despejando alí todo o seu cansaço de dias e noites de caminhadas. De cidade em cidade mendigando do trabalho ao pão, conhecendo pessoas boas e moleques arteiros ( sempre , onde quer que fosse tinha problemas com eles.)Dormindo em pastos e almoçando o que lhe davam. Aquilo já não o atingia mais ( o ser humano se acostuma com qualquer coisa ...) Costumava dizer a quem lhe perguntasse o porque daquela vida . Na verdade , nem mesmo ele se lembrava quando tudo começou... Perdeu a mãe cedo. O pai ele conhecia de uma foto mal feita tirada durante uma bebedeira num bar ( ele é o quarto da terceira fileira de cima pra baixo), foi assim que foi apresentado a ele pela tia que o criara. Tia esta ( uma ótima cozinheira ) , que sempre visitava sua cama a altas horas da noite... Misturando em sua mente um cheiro de fritura e calcinha velha. De cachaça e vômito... Lembranças escuras que o acordavam nas madrugadas de fome e frio.

Conferiu o seu relógio com o grande da igreja e com o do estômago, que começara a reclamar da falta de algo que o preenchesse.

___ Três horas da tarde , é chegado o momento... Falou sem se importar com o volume da voz.

Olhou para os lados encabulado. Dos bancos da praça só um se encontrava vazio... Enxugou demoradamente as mãos na calça jeans suja e surrada e apalpou levemente a capanguinha que trazia presa ao braço direito. Passou as mãos sobre ela parecendo sentir uma espécie de topor. Abriu bem devagar a pequena alça que a atava e olhou para dentro dela como quem olha um filho que acabou de nascer... Quem visse de perto seus olhos pensaria ser outro e não aquele que agora a pouco entrou com a alma revigorada naquela desconhecida cidade... Suas mãos tocaram algo dentro da bolsa e ficaram assim sem se mexer por alguns minutos, parecendo tocar o céu... Ele permaneceu com os olhos cerrados. Talvez fazendo uma prece , talvez tendo um orgasmo... Pouco depois abriu levemente os olhos e tirou um pequeno pedaço de pão dormido da bolsa. Neste momento, não podia evitar que alguns acompanhassem atentos aquele ritual. O que respondeu com um tímido sorriso desdentado, fazendo com que muitos virassem os olhos noutra direção . Permaneceu assim , meio desconfiado até quase comer por completo o pão. Seus olhos correndo do saboroso pedaço de alimento (que fazia escorrer um baba amarela que lhe tocava a gola preta da camisa), passando por um casal que sem se importar com a luz do dia se esfregava num banco mais afastado, até um playground cheio de crianças que aproveitavam aquele dia ensolarado para sujarem bem as roupas para desespero das mães e babás que os acompanhavam... Comeu e permaneceu assim , viajando... Olhava para o alto e para baixo. Passava demoradamente a língua pelos lábios feridos... Seus olhos agora não só distingiam cores, poderiam sim facilmente ler a alma tal a força que emanava dele... Seu pau quase rasgando a calça velha , suas mãos quase quebrando o tosco banco, quase gozou... Mas controlou-se a tempo. Podia ser perigoso, podia chamar a atenção... E não era isto que ele queria... Queria sim abrigo e alimento. Continuava com fome. Precisava de mais, precisava , precisava, mais, mais....

DIÁRIO DA MANHÃ 17 / 01 / 2007 Quinta feira

Uma série de desaparecimentos de crianças vem tirando o sono da pacata Ribeirão Das Neves , cidade da região metropolitana de Belo-Horizonte.

Tudo começou na última semana onde nada menos que cinco crianças desapareceram na cidade. Buscas foram efetuadas sem sucesso. Famílias inteiras se mobilizaram na tentativa de ajudar a polícia. Foram vasculhadas áreas em toda a cidade e no seu entorno , mais sem êxito . Uma equipe de BH chegou hoje a cidade e pretende solucionar rapidamente os desaparecimentos. Segundo o delegado, não se pode descartar nenhuma hipótese , e ele trabalha em diversas direções diferentes. Mães e pais se mobilizam , passando noites e dias inteiros a procura de seus filhos e prometem não descansar até os encontrarem.

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Outra estrada, outros lugares. Novas paisagens, o mesmo sol, o mesmo ar , a mesma fome...

Já faz três dias que sigo esta trilha... Vou ficar mais um pouco andando pela mata, aqui me sinto mais seguro. Aqui me sinto rei. Este é o meu reino , sou dono , mando ...

Belos olhos tinha aquele garoto... Olhos grandes e verdes ... Olhos suculentos... Acho que vão demorar um pouco para achá-los... É o tempo que preciso, é tudo quer preciso...

Três da tarde... É hora do lanche ... Esta é a hora do mal . A hora em que Cristo foi morto. Três da tarde ... É hora ... Quero sentir seus olhos lindos novamente... É hora... É hora de alimentar minha alma fria... Acho que estou ficando velho pra isto. O moleque quase se solta, arteiro... Arteiro mais saboroso... Gosto do gosto dos olhos inocentes... Esta conversa me deu fome... É hora , três da tarde ... É hora da alma fria...