Assassino da cruz
             
É por ela que sofre? Por sua filha? assim comecei minha conversa com Adelaide.
Da menina? Aquela coisa que saiu de mim? ela perguntou Do que aconteceu com ela?
           — Sim.
            — Não sinto nada em relação a ela, nem mesmo o sonho me importa, o que queima a minha pele é só a angústia, a incapacidade de entender o que se passa na minha cabeça. Não controlo o que penso; é como se fosse o carro desgovernado, não sinto nenhum prazer nisso disse Adelaide.
            — Por isso não quer viver? Tem alguma ilusão sobre a morte? perguntei olhando para o horizonte, sem provocar encontro de olhares, o que deixaria Adelaide nervosa.
            — A morte é minha salvadora, mas não tenho ilusão, sempre a mesma coisa. A minha busca é  pelo vazio Adelaide, olheiras profundas e seus cabelos estavam pregados de suor, a pele branca somava o quadro de filmes de horror anos cinquenta. Ela tossiu e completou Morrer é a solução mais natural para o que acontece na minha cabeça.
            Aquela ouvia centenas de vozes e tinha pesadelos horríveis onde comia partes de sua filha recém-nascida. A criança foi encontrada morta, sufocada com marcas de mordida e Adelaide presa e trazida para meu hospital. Ela admite tudo.
Havia outros pacientes no pátio pegando sol; na maioria das vezes Adelaide ficava reclusa, hoje foi liberada para o pátio. Gosto de conversar com ela, suicidas são os  pacientes desafiadores. As pessoas que levavam a sério o dilema de Albert Camus: viver é realmente necessário?
             O meu  ano de formatura foi em 1968, plena ditadura. Naquela época, copiando outros adolescentes, sofri a metamorfose comunista, um jovem engajado na luta contra a desigualdade social. O tempo passou e entendi a frase: “o homem é o lobo do homem”. As desigualdades são necessárias, assim como a maldade é tão importante quanto a bondade para que a humanidade amadureça.
Não posso negar, minha especialidade na psiquiatria é o suicídio. Poucas pessoas entendem o sofrimento dessas pessoas. Sempre fui intrigado cientificamente com a coragem desses pacientes.
            Conversava com Adelaide quando o enfermeiro Lauro me chamou, ele disse que um homem distinto e bem vestido me procurou. Lauro me respeitava mais que qualquer um, ele achava que eu tinha um dom sobrenatural da cura, então acenei com a mão para o homem e disse:
            — Sim, de que se trata?
            — Pode nos seguir perguntou um dos homens, pois havia outro, vestido de terno branco.
            — Sim eu disse.
Caminhei devagar, sem mostrar muita curiosidade, fui para a sala ao lado do auditório, sentei em uma cadeira de plástico velha e o senhor bem vestido falou:
            — Como quer que lhe chame? Para mim tanto faz sorriu ao falar. Disse a ele que preferia ser chamado de Doutor Carlos, ele tossiu e disse: “sim, entendi”, tossiu novamente e voltou a sorrir.
Disse que era um delegado de polícia e estava em uma investigação importante. O doutor Dias olhou para um dos homens que estava de pé na porta, que disse para ele de volta: "pode começar'.
Tenho um assunto sério para falar ele olhou novamente para o homem de terno branco Mas é necessário que nos acompanhe até à delegacia.
Uma coisa comum para médico responder a processos, então eu fui à delegacia sem preocupações, pois metade das queixas são bobagens.
Quando começou a falar os absurdos, mantive-me sereno, sempre olhando para aquele par de lentes escuros dos óculos Ray-Ban fora de moda. Acho descortês alguém que conversa sem olhar nos olhos.
 Três dos meus pacientes apareceram mortos, sem violência, apenas um tiro certeiro com uma pistola trezentos e oitenta na nuca; certamente com o paciente dormindo, pois não havia reação alguma, as vítimas, neste caso, foram sempre mulheres, encontradas com uma rosa vermelha e cuidadosamente arrumadas na cama, nuas com braços abertos e a rosa entre os seios.
Típica posição do crucifixo eu disse O senhor sabe que essas pacientes eram extremamente perturbadas, sofriam com as alucinações, uma delas cozinhava a própria mão e mordia arrancando pedaços; uma outra comia partes de cadáveres..
Delegado Dias tossiu e continuou.
As vítimas conheciam o assassino Dias alisou a barba e olhou para o homem de pé na porta O senhor quer dizer que o assassino aliviou o sofrimento delas?
Creio que sim, ou pelo menos essa é uma possibilidade.
O senhor faria isso, aliviaria o sofrimento de pacientes como esses?  disse o delegado.
Claro que não, eu os trato. o sarcástico do delegado não me preocupava, conheço o tipo, não está interessado em resolver o caso, quer apenas ter uma plateia e um bom salário no fim do mês, gosta do poder da arma e do distintivo, de dizer para todos que é policial; provavelmente tem impotência ou ejaculação precoce, já cuidei de casos assim.
Resolvi dar um basta e ir direto ao assunto.
            — Meu objetivo sempre é científico, não me interesso sobre assuntos humanitários. Procure alguém mais fraco.
            Dias balançou a cabeça negativamente e deu um sorriso.
Coincidências demais. Sabe quanto tempo estou na polícia? Longos vinte anos. Uma coisa me diz que, algo se pula como gato, anda como gato, mia como gato, é gato e pegando um desenho, e me entregou temos uma testemunha, um garotinho inteligente que ficou escondido enquanto o assassino estava na casa ele enfatizou as palavras Matando a mãe dele, o menino foi esperto suficiente para ver isto.
Entregou-me uma folha de papel com desenho, talvez feito pelo próprio menino.
A cruz invertida é o símbolo conhecido como a cruz de São Pedro (I a.C.- 67 d.C), um dos apóstolos de Jesus Cristo e o primeiro Bispo de Roma governou a Igreja Católica em Jerusalém durante um período de aproximadamente 10 anos e fundou a Igreja na cidade de Roma em 42 d.C; Pedro teria pedido para ser crucificado de cabeça para baixo em sinal de respeito. Por outro lado, a cruz invertida representa um dos símbolos satânicos medievais, uma vez que suas cerimônias estavam baseadas em dogmas avessos ao cristianismo. Desde então, muitas seitas satânicas utilizam a cruz como símbolo do anticristo, representando as forças do mal ou do diabo, bem como a negação aos dogmas do Cristianismo, falei tudo isso enquanto o delegado comia um palito e jogava de um canto a outro da boca.
            — O senhor anda bem  informado disse o delegado.
            — É meu trabalho, sou psiquiatra.
            Mostrei minha tatuagem para ele.
            — É Isso que procura? Isso que me ligou aos crimes? É uma tatuagem de quando ainda era jovem. Fiz alguns retoques porque gosto dela, mas não passa de um símbolo tolo...
            Dias sorriu e olhou para o homem de branco na porta. Continuei a falar.
            — Existem outras pessoas com essa tatuagem no mesmo braço disse de forma firme Isso não quer dizer que eu tenha matado alguém. Isso é ridículo!
Quando jovem, eu e mais dois amigos fizemos a tatuagem da cruz invertida do Anticristo. Para mim e meus amigos o Cristianismo é um câncer social.
Os meus amigos mais chegados: Luiz e o Fernando. O primeiro prático,  o segundo inteligente e sensível; com ele troquei ideias sobre as minhas pacientes mais graves.
Luiz é  juiz  de uma vara de família, Fernando, um professor de filosofia e sociologia que leciona em escolas de segundo grau, falei tudo isso para o delegado.
            — Você quer dizer que pode ser qualquer um deles? disse o delegado Olhe só, são pacientes deste hospital e você tem essa tatuagem, acho bom procurar um advogado Vou conversar com seus amigos, por enquanto não saia da cidade, estou de olho no senhor.
            Procurei um advogado e fui até a casa de Fernando e ele não estava. A mulher me recebeu e disse:
            — Fernando teve uma forte depressão, ele até tentou procurar você ela chorou Ele me falou de vocês dois...
            Pobre mulher, não queria ver o que era óbvio para uma lesma. Passei uns dias procurando Fernando e não achava, decidi ir à casa de Luiz, mas desisti, ele não falava comigo há anos.
            Fui preso e acusado de assassinato.
            Meu mundo caiu naquele dia. Fiquei a espera de alguém que acreditasse em mim; sem parentes e com dificuldade de arranjar um advogado fui diabolicamente acusado de ter matado as três mulheres. Pedi para falar com o Luiz e um dia ele chegou até a minha cela e suspirou.
            — Não pode ficar me acusando assim de ser um criminoso, ainda bem que conheço o delegado Dias, você tem um sério problema ele engoliu as palavras, tinha um suor na careca , então continuou  pelo menos  se confessar posso conseguir uma redução de pena.
Eu não fiz nada. Como vou confessar? Não matei aquelas mulheres disse chorando desesperado.
            — Não da para aguentar suas lamentações, fingimentos e mentiras, não consigo mais; tentei te ajudar de todas as formas; você não tem mais família, eu sou a sua última gota de esperança – disse com a voz baixa e ar de tristeza.
            — Eu quero falar com o Fernando – disse gritando   ele vai me ajudar.
            — Fernando? Pelo amor de Deus, o que você tem? Por que estes médicos não dão um jeito em você? Parece que um demônio invadiu a sua cabeça. Quem pensa que engana? disse e saiu. Nunca mais o vi.
            Luiz tinha a face de um criminoso aquele dia. Será que ele havia matado aquelas mulheres? Eu sabia que ele conheceu uma das minhas pacientes e havia saído com ela, depois que ela enlouqueceu definitivamente, queria arrancar o órgão sexual de todos os homens, então Luiz teve grandes problemas com ela, perdeu até a estabilidade emocional; um dia achei que Luiz tivesse capacidade  de  matar, eu vi nos olhos dele o ódio por ela.
            Escrevi cartas para Fernando, disse que precisava de ajuda, que eu havia discutido o caso daquelas mulheres com ele e que sabia que queria abreviar o sofrimento delas, escrevi suplicando para ele que contasse a verdade, sabia que Fernando havia atirado naquelas mulheres.
Só advogados ruins pegaram o meu caso, até cair na mão de um defensor público, depois que todo o meu dinheiro acabou.
Amanda Crester, mãe de uma das pacientes do hospital, veio me visitar e perguntou.
Precisa de dinheiro?
Não.
Quando sai? – ela perguntou.
Não sei, preciso de um bom advogado – disse e olhei para os olhos de Amanda.
Ela precisa de você... Você sabe... Ela sofre demais, precisa...
Eu senti minha cabeça rodar e o chão tremer, comecei a gritar.
Não matei ninguém! – e depois daquele dia não queria receber pessoas relacionadas com meu passado.
Dias ficou famoso com a minha prisão e Luiz finalmente veio para a capital; falou até na TV sobre o meu caso, soube que fez carreira na magistratura.
Onde estaria Fernando para me defender?
A escolha é da pessoa, se quer viver ou morrer disse Fernando uma vez.
            Fernando nunca apareceu.
Com meu destino traçado eu passei trinta anos na prisão remoendo aquele  ódio de Fernando pelo abandono, de Luiz pela traição.
 Estudei tudo que aconteceu comigo centenas de vezes. Eu tentei encontrar alguma explicação para a vida me tratar daquele jeito...
Tentei tantas apelações quanto pude, comecei a me coresponder com um jovem médico chamado Eduardo, ele trazia livros e jornais, contou-me que confirmou a história de Luiz com uma de minhas pacientes e que Dias e Luiz eram amigos.
            Quando deixei a prisão, eu estava velho, minhas mãos tinham calos do trabalho bruto de alimentar porcos; tentei não desperdiçar o meu tempo. Com ajuda do Dr. Eduardo eu consegui superar.
Fui solto a primeira vez, então comprei uma bicicleta, sentia o  vento na face e liberdade,  não queria ter paradeiro, então andei dias de bicicleta até que parei em frente à casa do Fernando...
            Uma criança que brincava na porta correu até onde estava e segurou as minhas pernas velhas, tinha o rosto suave e fisionomia familiar.
            — Com quem você fala? ela disse sorrindo Minha mãe disse que falar sozinho não é bonito.
            — Como? Claro que não, ela está certa sorri, passei a mão na cabeça dela e completei É que sou velho...
            — Sei quem você é disse a criança.
            — É mesmo! E como sabe?
            — Sou Pablo, você é meu avô, minha mãe foi lá dentro pegar biscoito, ela não viu você e eu vi a sua foto na geladeira ele disse isso e segurou na minha perna mais forte, uma mulher de vinte anos abriu a porta da casa de Fernando; era bonita, usava um vestido azul e tinha os cabelos negros, levou um choque quando me viu, andou devagar em direção da criança, percebi que se aproximava chorando e disse.
            — Não o machuque ela tinha as mãos tremulas. Era a filha de Fernando.
            — Como... Meu Deus! Não vou marcá-lo...
            — Não mãe, ele não vai me machucar. É meu avô, vi a foto dele.
            Senti o chão sacudir, minha cabeça doeu e quase cai. Segurei em uma grade.
            Estranhamente gritei com o  garoto.
            — Está ficando louco garoto, meu nome é Carlos... Sou psiquiatra; não tive filhos, como posso ter netos. Onde está o Fernando?
            A mulher puxou a criança para perto do seu corpo e se afastava correndo até a entrada da sua casa, falou ao celular.
            — Doutor Dias, ele está aqui, ele acha que é o Carlos. Não saiu de lá curado porcaria nenhuma, ele vai voltar a matar.
            A polícia chegou rápido, ainda que tenha perdido a noção do tempo sei que foi rápido.
Fiquei mais seis anos preso, até que um médico psiquiatra esclareceu toda a história e no dia da minha alta ele disse.
            — Como está, Fernando?
            — Com oitenta e quatro anos, muito velho, cansado dessa confusão toda; ora sou Carlos, outra sou Fernando, os remédios que tenho tomado melhoraram um pouco as coisas, mas estou agradecido, Dr. Eduardo... Por todo esse tempo, pelos livros a troca de ideias, as cartas.
            Ele era novo e estudou meu caso por longos anos, ajeitou o bigode fino e disse:
            — Seu caso foi praticamente a minha tese de mestrado. Eu nunca vi personalidades tão distintas, você sabe Carlos é transforma Fernando, um é o médico que cura, o outro mata porque acha que as pacientes sofrem, Fernando é o bom, Carlos é que tem que ser suprimido ele pegou um pouco de água e foi didático A ideia de que pessoas com Transtorno dissociativo de identidade (DID, na sigla em inglês) foram vítimas de abuso quando crianças, parece bastante plausível. Em primeiro lugar, porque o percentual de pacientes com DID que viveram violência física, sexual ou psicológica quando pequenos, é maior que no restante da população. Em segundo, porque é possível pensar que a pessoa se refugiou em sua própria mente, criando um “outro” para escapar da realidade dolorosa e assim sobreviver psiquicamente em um momento da vida em que é impossível lutar ou fugir do que tanto ameaça. Shirley Ardell Mason, que ficou conhecida como Sybil, teria sofrido maus-tratos na infância, que a levaram a desenvolver outros egos para fugir da dor.
            — Conheço o caso Sybil, li o livro na prisão – disse e estendi a mão para o psiquiatra Preciso ir, quero pedalar um pouco enquanto ainda tenho pernas.
            — Bem, a justiça te liberou disse Eduardo. O  médico parecia ainda intraquilo com a minha saída, meus delírios sérios, conversei com minha mulher como se fosse Carlos!.
            — Fernando, precisa expulsar Carlos, totalmente disse Eduardo e continuou Carlos é perigoso, veja bem, você foi até a sua casa, conversou com sua esposa e contou todos os crimes horríveis de Carlos.Você sabe que a mente humana é incrível. Carlos é o psiquiatra mais brilhante que já conheci, porém, você nunca estudou medicina. Vou falar uma coisa, os conhecimentos que ele tem são estupendos, andei pelo mundo inteiro, não conheço psiquiatra igual.
            — Tudo era tão real eu disse Eu cheguei a conversar com minha mulher como se fosse Carlos, tratei de pacientes, meu Deus!
            — A sua esposa estava orientada a não provocar a fissura das personalidades, você pode ficar violento ele deu um sorriso e continuou Ela te conhece.
            — Como disse, para mim era tudo real.
            — O real é uma fábula, só temos acesso ao real na morte, todo resto é produto do nosso imaginário o médico olhou-me nos olhos Agora, neste momento, quem você é?
            — Fernando.
            Apertei a mão do médico e deixei a clínica,  peguei a minha bicicleta; a sensação de liberdade me deu um novo ânimo; parei em um posto de gasolina para tomar um refrigerante, encostei a bicicleta, quando um cão pastor correu, a dona, tentando segurar o cão,  derrubou a minha bicicleta, eu prontamente ajudei, ao entregar a coleira notei nos pulsos a cicatriz.
            — Desculpe, senhor ela sorriu  A bicicleta é sua? Que bom que faz exercícios; e como está bem para a sua idade, andando de bicicleta; eu adorava, agora sofro de pânico.
            — Que nada, quem me dera é ser jovem – e passei a mão no Pastor Alemão  que belo cão você tem aí.
            — Nome dele é Carlos.
            — Que coincidência. O meu também.
 
 
 
                                               fim
            
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 07/04/2015
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