O menino e o cao

Quando o menino nasceu a casa se encheu de alegria. O primeiro filho. O casal exultava e era possível ver a alegria transbordando por todas as janelas da casinha simples da periferia de Belo Horizonte.

Na casinha alem do alegre casal, agora papais felizes, vivia também um velho cão. Criatura boníssima de temperamento dócil e gentil. O cão, que no momento do nascimento do primogênito, já contava os seus sete anos de vida, o que em idade de cachorro já podia ser considerado metade de sua breve existência canina, aceitou tacitamente a chegada da criaturinha e nenhum sinal de ciúmes demonstrou.

O cão, de raça indefinida era da cor marrom avermelhada, com pelos longos herdados talvez de algum ancestral de raça coker. Em seu focinho os bigodes característicos dos Fox terriê e suas patas grandes e fortes denunciavam laivos de sangue fila brasileiro. Mas o que mais o caracterizava eram os grandes olhos castanhos. Sempre dóceis. Sempre amorosos.

Com o passar do tempo um laço de amor foi se criando entre o cão e o menino, um amor incondicional e absoluto, como só os cães sabem amar. Entretanto o menino, sendo filho único, ainda que, do seu jeito, amasse o velho cão, tinha aquele amor grosseiro e egoísta que só a juventude consegue ter. Um amor que tudo exige e que pouco este disposto a dar em troca

A todas as brincadeiras da criança o velho cão aceitava e nunca de sua boca saiu um rosnado sequer para a rude criança. Foi para o garoto diversão de todo o tipo, e mesmo às vezes à custa de iminentes danos físico nunca se rebelou, nunca se revoltou, nunca um latido de advertência emitiu. Por mais maltratado que fosse bastava um carinho do menino e tudo estava esquecido, e este carinho, esta migalha de amor era tudo que bastava para os olhos castanhos se incendiarem de alegria.

A presença do velho cão se tornou algo tão comum na vida do menino que era impensável ver o menino e não achar o cão. Sempre fiel e zeloso segui aos passos do dono. E não poucas foram as vezes que o velho cão protegeu seu dono de outros meninos maiores, a custa de pedradas e pauladas, e até de outros meninos com cães maiores, a custa de mordidas e esfolados, que o velho cão carregava com orgulho, se tal pecado fosse dado aos cães.

Mas o tempo é senhor inexorável, e a tudo leva de roldão em sua marcha cruel. Os anos seguiram, e como o é desde a aurora dos tempos, o menino cresceu. E no crescer novos amigos fez. Meninos como ele, com brincadeiras de meninos, onde não havia lugar par ao velho cão. Mas este a tudo aceitou com resignação que só os cães com seus imensos olhos castanhos sabem ter. E deitado na beira do portão nas tardes poeirentas de julho via seu dono correr pela rua atrás de uma bola, pedalando sua bike, ou soltando papagaios que subiam ao céu.

Vez ou outra uma rusga com os colegas de rua surgia, neste momento o velho cão se levantava célere arreganhando os dentes, num instante colocava ordem na balburdia. Instante depois com os ânimos serenados, ele fazia aquele movimento circular tão típico dos cães e deitava-se novamente olhando a rua onde a tarde se arrastava e os folguedos seguiam.

Com o passar dos anos o menino, cresceu, como é o curso da vida. Mas influencia Deus sabe de quem, uma crueldade gratuita lhe surgiu no cerne do ser. Mas não era uma crueldade aleatória, contra qualquer um. Sem motivo ou razão, o velho cão tornou-se invariavelmente alvo de seus ataques de fúria. Quando brandas eram as crises de fúria o cão era duramente admoestado, mas em momentos de ira maiores, e poucos não foram, infligia duros castigos ao pobre ser. Passada a fúria vinha ao arrependimento e como é dado aos humanos esquecer-se daqueles a quem machucam, afagava o velho cão que a tudo esquecia.

Entretanto com o passar do tempo adiquiri uma mania cruel de forma sutil torturar o pobre animal. Facilmente havia treinado o velho cão a buscar um graveto que lhe atirara. Ficara espantado com a facilidade com que o velho animal aprendera a brincadeira. E desta forma não cansava de exibir as habilidades aos colegas. Nestes momentos atirava o graveto cada vez mais longe, e nos locais mais impossíveis. Grandes buracos, moitas de espinhos, depósitos de lixo coalhados de vidro quebrado. Nada era obstáculo para o velho cão que sempre voltava com o graveto, não importa a que penas. Uma vez apenas para impressionar os amigos lambuzara o graveto de pimenta cayena e quase arrebentara de rir ao ver o velho cão em desespero para trazer o graveto com a boca em chamas, e riram ainda ais ao vê-lo com o um louco a beber água aos montes. Mesmo assim o velho cão nunca se revoltou.

E talvez esta mancietude fosse o que realmente irritasse o garoto. Fruto de nossos tempos queria um cão bravo e agressivo como os pit bulls que via no noticiário. Mas o cão seguia com seu amor abnegado.

O menino agora tinha agora sete anos e seu cão beirava os 14. Para os cães ele já estava no fim da vida. E o velho cão cansado e judiado pelos anos parecia saber disto. Mas sempre estava disposto para brincar com o menino. Mas os anos são implacáveis e suas reações não eram mais tão rápidas e velocidade era coisa de anos passados. Mas ainda assim ele continuava a buscar o graveto. Mas enquanto o menino crescia em força o cão definhava, pois seu ocaso era próximo.

Mas quando mais lento ficava o velho cão mais irritado ficava o menino com sua lentidão. Até que um dia num ápice de maldade, inspirado talvez por um gênio ruim soprando em seus ouvidos ou simplesmente por um rasgo de sadismo bem humano, atirou o graveto com toda a sua força no meio do lago que ficava próximo à sua casa.

Era meio de junho, e o frio mineiro naquele ano resolvera vir com força total. A tarde já se aproximava do seu fim e o sol já tingia de vermelho o horizonte. Um vento frio soprava baixando ainda mais a temperatura. Ainda assim o velho cão se atirou a água escura do lago.

Nadando entre taboas e garrafas pet velhas tentava a todo custo achar o graveto, buscando aquela migalha de carinho do menino. A custo conseguiu encontrar o graveto bem pra lá do meio do lago e iniciou o nado de volta. A água fria em seu pelo grosso deixava suas patas dormente, mas ele nadou e nadou e nadou. Ele bem que tentou, mas o frio e seu velho coração não quiseram ajudar e extenuado deu seu ultimo suspiro na beira do lago.

Ao vê-lo cair na beira do lago algo despertou no menino e ele desabou numa carreira louca. Na beira do lago com os imensos olhos castanhos fitando o nada a expressão do velho cão parecia dizer:

- Fiz o meu melhor, será que agora foi bom o bastante?

Já era noite quando os pais encontraram o menino abraçado ao velho cão, chorando aos soluços pedindo perdão, ao nobre amigo que não soubera amar como devia.

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O tempo, entretanto, seguiu sua marcha, e como só resta aos que ficam viver, o menino continuou vivendo. Recusou – se a ter outro cão e assim foi. Cresceu, entrou na adolescência, brigou inúmeras vezes. Bateu algumas apanhou varias. E sempre se lembrava do fiel amigo que sempre ia em seu socorro nas brigas de criança.

Houve uma vez entretanto, que saindo de um bar as duas da madrugada, viu-se acuado num beco por um assaltante com uma faca em suas costas. Mesmo tendo entregado todos os seus bens sentiu que ainda assim o facínora iria lhe levar a vida também.

Então de repente ouviu um rosnado baixo e grave e logo a seguir o assaltante caindo no chão e sendo atacado por um cachorro. A baixa iluminação e o alto nível de álcool no sangue não lhe deixaram divisar seu salvador. Mas poderia jurar que tinha pelos marrom avermelhados e num relance quando a luz lhe iluminou num décimo de segundo de forma conveniente pode ter visto imensos olhos castanhos, dóceis e gentis.

Mas no dia seguinte a ressaca apagou tudo.

Cresceu, namorou, transou, magoou, foi magoado. Encontrou a pessoa certa, que descobriu a duras penas não ser a pessoa certa. Sofreu, chorou, foi consolado, consolou. E um dia encontrou outra pessoa certa, se casou, teve filhos.

Trabalhou, viveu pelos filhos. E como a lei do retorno é implacável, também sentiu o amargo sabor de dar tudo por amor e nada receber em troca. Fazia tudo pelos filhos e pela esposa. Mas nada nunca era bom o bastante. Uma palavra na hora errada, um sorriso torto, um respirar diferente. Tudo era motivo para ser magoado. Mas com o velho cão aprendera a se alegrar com as migalhas de carinho que ganhava.

Velho e cansado, numa reunião de família na velha casa de seus velhos pais, já idos deste para o plano superior, enquanto todos riam e bebiam caminhou sozinho até a beira do velho lago. Mais sujo e cheio de lixo do que se lembrava. Garrafas pet, camisinhas usadas, um velho sofá apodrecendo e muito m ais lixo.

Apanhou pensativo um graveto no chão e com a pouca força de seus velhos braços o lançou o mais longe que pode. Espantou-se com a distancia que conseguiu. Olhou para o sol se pondo, pintando o ocaso de vermelho naquele fim de junho anormalmente frio e entro no lago para pegar o graveto.

Encontraram-no ao cair da noite a beira do lago com o graveto entre os dentes, e uma expressão de paz que nunca tivera em vida.

Durante seu enterro, enquanto seu caixão descia a cova, muitos disseram ver no morro em frente um menino e um cão de pelo marrom avermelhado brincando alegres contra o sol.

E quem viu jurou nunca ter visto dupla tão feliz.

Longshot
Enviado por Longshot em 17/07/2015
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