845-O FANTASMA DE MARIA ENGOMADA

Dizem que “preto, quando pinta, tem mais de cento e trinta”. Quando um trágico acontecimento levou Zé Negrinho à desmemória, a carapinha era ainda bem negra. Agora, muitos anos depois, estava com a cabeça completamente branca, uma lã alva encaracolada, num branco sujo, encardido. Tanto tempo passara que o povo de São Roque da Serra já tinha esquecida sua malfadada história. Zé Negrinho perdeu até o nome. Sem memória e sem destino, ficou sendo a triste figura do Preto Véio.

A criançada o achacava, pessoas piedosas lhe davam esmolas. Arrastando-se pela cidade, Preto Véio virou lenda. Algumas histórias corriam, de mais puro terror, associando Preto Véio a almas do outro mundo, ao velho-errante que jamais morria (confundido, sem dúvida, ao eterno Judeu Errante), e até ao fantasma de Maria Engomada, que habitava o Jardim Novo, onde, outrora, fora cemitério.

— Foi ele que judiou de Mariazinha, a santinha que morreu de tanta pancada, lá na curva do Jequitibá.

O fantasma da menina morta a cacetadas aparecia, segundo testemunhas confiáveis, toda primeira sexta-feira do mês, no Jardim Novo. Trajando brancas vestes, era uma aparição silenciosa, que rondava somente a imensa praça ajardinada.

Após muito anos do assassinato da menina, surgiu um boato que ajuntava as aparições fantasmagóricas de Maria Engomada à figura bem real de Preto Véio.

— Pois isso é sina de alma danada. O Preto Véio tá destinado a perambular pelo mundo por toda a vida. Por conta das maldades que praticou em vida.

E para dar mais fé à má crença popular, para adicionar uma pitada a mais de terror, Preto Véio passou a dormir no cemitério. Cercado de grades na parte da frente, por muros de alvenaria pelos três lados, com algumas partes destruídas pelo tempo e talvez por outros elementos, tinha fácil acesso a quem quisesse entrar pelos vãos abertos. Pois foi o que aconteceu com Preto Véio. Entrou e se aboletou num mausoléu antigo, de família tradicional.

— É mentira dessa gente. Num tem ninguém dormindo aqui dentro, não senhor! — O zelador do cemitério negava com veemência. Periga eu perder o emprego, se encontrarem o Preto Véio aqui dentro. — Sabia, sim, que o desmemoriado passava as noites no cemitério. Mas, cadê coragem para enfrentar a situação, ir ao mausoléu à noite, escorraçar o pobre coitado que talvez tivesse partes com a Maria Engomada?

Alguns maus elementos da cidade (rapazes e homens-feitos, ociosos por devoção e bandidos por vocação) deram em implicar com o Preto Véio e com as histórias que circulavam a seu respeito. Formaram um grupo, uma quadrilha, para esclarecer de vez a relação de velho molambo ambulante com Maria Engomada. Marcaram uma noite na qual seria certa a aparição do fantasma da virgemenina.

— Vamos ao cemitério pegar o Preto Véio, levamos ele pro Jardim Novo e esperamos a Maria Engomada. Vamos ver a reação do negro. — Foi o plano proposto por Romão, o chefe da quadrilha.

— Vou trazer uma garrafa de pinga. Vamos dar pinga pra ele, assim ele fica mais animado. — Prometeu outro do bando.

A primeira sexta-feira de outubro decorreu em sombras. As primeiras chuvas se anunciavam mas as nuvens, prenhes de chuva, se arrastaram durante o dia todo, por um céu turvo, escuro. Ao anoitecer, prenunciava-se uma noite tormentosa, com o vento levantando poeira das ruas e tirando das amendoeiras as últimas folhas, que subiam aos céus em redemoinhos constantes.

— Vamos deixar pra outra ocasião? — Temeroso, sugeriu um dos quadrilheiros.

— Não, tá tudo preparado pra hoje. Não pode passar desta noite. — A ordem veio de Romão. De fato, tudo estava preparado para aquela noite. Inclusive uma aparição real, uma armação da qual apenas Romão e seu primo Diogo Gadelha sabiam. Haviam combinado que, quando chegassem ao Jardim Novo, trazendo o Preto Véio, Gadelha, escondido na figueira, faria sua aparição: enrolado em lençóis, gemendo e uivando, iria abraçar o velho. Romão era um cético, não acreditava em fantasmas e queria ter a certeza da confrontação do Preto Véio com a lenda criada a seu respeito.

A noite cresceu em vendavais, nuvens pesadas ameaçavam desaguar a qualquer instante. Escuridão de breu, só clareada por raios e relâmpagos. As ruas ficaram desertas logo ao escurecer, ninguém se atrevia a perambular ao léu, ante a iminência de formidável tempestade. O Bar do Centro fechou as portas antes das nove, tão logo o bando de Romão (eram cinco) saiu, após os últimos tragos de conhaque e cachaça.

Foram direto ao cemitério. Na frente, tudo escuro, as luzes apagadas. Deram a volta pelos fundos, entraram por uma brecha no muro e se encaminharam, com determinação, ao mausoléu onde, sabia-se, dormia Preto Véio. Pelo campo santo podia-se ver, aqui e ali, claridades fantasmagóricas, fogos-fátuos emanados das sepulturas; ouvia-se os tilinlins das plaquetas metálicas numeradas, fincadas sobre sepulturas recentes. Nada disso atemorizou os cinco homens, que, pisando sobre covas e sepulturas, arrastaram o pobre negro para fora do campo santo. Uma garrafa de cachaça apareceu nas mãos dos homens, que misturaram suas bicadas aos goles forçados goela abaixo do arrestado. O homem não piou nem tugiu. Não ofereceu qualquer resistência. Foi conduzido como eram levados, em priscas eras, os animais ao altar dos sacrifícios.

Ao se aproximarem do Jardim Novo, começou a respingar chuva: grossos pingos, patacões de água que batiam nos chapéus e capotes com força.

— Diacho. A chuva vai estragar tudo. — Romão preocupava-se com o êxito da empreitada.

Relâmpagos amiudavam-se. Trovões contínuos enchiam a noite de sons cavos, profundos, terríveis. Os raios caíam por perto, estalando como chicotadas de um açoite gigantesco. O preto não ajudava, teve de ser arrastado, com esforço de seus seqüestradores, embriagados pelo álcool e pela sandice. Chegaram a uns dez metros da figueira. Estacaram, sob o comando de Romão.

— Parem aí. Vamos esperar que apareça a Maria Engomada. — Falou aos gritos, a fim de ser ouvido, acima dos ribombos, pelo comparsa Diogo. Ouvindo a sentença que era a senha, esse saltou de chofre de um galho da árvore, ao mesmo tempo em que emitia um gemido pavoroso. O gemido, entretanto, foi superado pelo troar da tempestade e pelo chicotear de um raio numa alta palmeira imperial, a poucos metros da pavorosa encenação.

O clarão iluminou a cena de horror: o fantasma ergueu-se e agitando os braços, disparou numa carreira veloz, na direção do grupo, não se sabe se para atemorizá-los ou para fugir do pavor telúrico instalado na praça. Os homens do bando fugiram, cada qual por si, deixando o preto ajoelhado. Nele tropeçou o “fantasma”, embolando-se numa confusão de lençóis, braços, pernas, corpos que se abraçavam. O preto agarrou-se fortemente ao fantasma, talvez já na vasca da morte, segurando Diogo pelas pernas, impedindo-o de escapar. A cena (quem tivesse coragem, poderia ver com clareza) era iluminada pelo tronco em chamas da grossa palmeira: o preto e o branco agarrados, estendidos no chão, que se transformava num lodaçal.

Os amigos fanfarrões sumiram da cena. Romão ainda tentou reunir forças com Tonin Bigode.

— Vamos voltar lá, ver o que aconteceu.

— Tá louco, Romão? Cê num viu a Maria engomada agarrar o Preto Véio?

A chuva desanimou o bando.O temporal os dispersou. Cada qual voltou para sua casa.

A noite prosseguiu sob o temporal feroz. O Rio Liso encheu, transbordou, arrastou casebres da margem. Telhados foram desfeitos, roupas esquecidas em varais sumiram nos redemoinhos. Noite de pavor, de gemidos, soluços, clamores. Ribombos e estalos fantásticos, inexplicáveis. Os habitantes, trêmulos de medo, ouviam e sentiam o pavor da noite. Queimavam palmas bentas, com invocações:

— Santa Bárbara nos proteja! São Jerônimo, valei-nos!

O dia seguinte amanheceu límpido como nunca: céu lavado, de um o azul jamais visto, o sol claro ferindo a vista de quem se atrevesse a olhá-lo de frente. O chão ensopado, as ruas enlameadas. As árvores pingando por todas as folhas e rebentos. Os habitantes madrugadores que atravessaram o Jardim Novo, na direção da Padaria Boa Quitanda, depararam-se com algo estranho, tétrico e inexplicável. Além do tronco negro da palmeira imperial, atingida pelo raio, debaixo da grande figueira, dois corpos emaranhavam-se no barro. Preto Véio (que todos conheciam) agarrado ao corpo de um homem (que alguns identificaram como Diogo Gadelha), no meio de um lençol. Sinais de luta: os corpos haviam, com certeza, se engalfinhado... numa briga?

Detalhes se revelavam aos que se aproximavam para examinar com cuidado a cena : Diogo estava carbonizado, mais preto do que o Preto Véio, cuja carapinha, molhada e aplastada ao crânio, parecia algodão-doce se derretendo. Sua pele apresentava inexplicáveis tons cinza-pálido, estrias claras, quase brancas. .

— Virgem Nossa! Cruz Credo, Avemaria !— exclamou alguém. — O branco virou preto e o Preto Véio virou branco!

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 10.07.2014.

Conto # 845 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 22/07/2015
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