Não se esqueça.

Você sabe quem eu sou. E conheço a sua história. Agora, vai conhecer a minha. E ela ira durar o tempo exato de um piscar de olhos. Quando abri-los novamente, terás me esquecido. E eu terei seguido em frente.

Porque é assim que é. Eu não faço as regras.

Abra os olhos e tente não deixar que a realidade o corrompa.

Respire fundo agora.

O céu em nada se distuinguia das rochas cinzentas que compunham os grandes edifícios. A vida, no geral, era tão monotônica quanto o que a cercava. O sol, tímido, surgia por detrás das grandes nuvens, carregadas.

Era inverno.

Naquelas terras, naqueles tempos, o inverno era rigoroso de verdade, diferente dos invernos de outrora. Aquele mundo dava passadas curtas, sofridas, com o pesar e a experiência de quem já vira tudo dar errado uma vez. Além das silhuetas que caminhavam rapidamente pelas calçadas, sem destino certo, haviam também aquelas atiradas ao chão, enroladas em trapos velhos e rasgados, que dormiam e sonhavam os mesmos sonhos de sempre, e desejavam que, um dia, parassem de sonhar.

Que parassem porque tiveram os sonhos realizados, ou simplesmente porque já não o podiam mais. E preferiam abraçar a morte ao invés de beber o esquecimento, diariamente, das garrafas que os mantinham aquecidos do frio e impossibilitava-os de que se lembrassem de quem eram.

E apesar de tudo isso, eram fortes. E lutavam com afinco para manter o pouco que tinham.

Um garotinho vagava pelas ruas, tremendo de frio. As lágrimas caiam de seus olhos, quentes e salgadas, e logo, logo, parariam de cair. Havia saído de casa há alguns meses. Tinha uma vida difícil, pesada. A mãe havia dado sua vida pela dele, confrontando o traste com o qual casara pela primeira e última vez. Como quase tudo naquele mundo, o menino não tinha nome. Se o chamassem de menino, ele responderia. E foi o que fez quando uma voz o chamou.

O menino o olhou, atordoado e cansado.

A voz pertencia à um homem barbudo e banguelo, que tinha os olhos totalmente brancos e a pele muito escura. O homem era cego. E enxergou o menino num nível tão profundo e inteiro como o céu das noites de verão. O velho fez sinal para que se aproximasse, e o menino o fez.

Sentou-se ao lado do senhor, que o ofereceu um cobertor e uma garrafa. Enrolou-se no cobertor, mas não aceitou a garrafa, que continha o líquido transperente que fizera de sua vida um inferno.

- Não bebo. - falou com a voz falhada. - Não gosto de bebida.

- Beba. Olhe em volta e me diga o que está vendo. - com um dos braços apontou em volta. - Nada que valha muito a pena, não é? Agora, se eu pedir o mesmo para outra pessoa, a resposta será diferente. É uma questão de ponto de vista. Sabe o que eu gosto nas canções?

Balançou a cabeça em negativa.

- Elas precisam ser escritas, ou faladas, ou cantadas, e então ganham o mundo. Sempre foi assim. As pessoas viviam, e cantavam contos sobre a vida, e sobre as expectativas para a próxima colheita, ou sobre um novo reinado ou algum ato de alguém que era visto como herói. Muitos cantavam sobre a morte, e ainda cantam. - Enquanto falava, fazia gestos com as mãos, e a voz ia minguando aos poucos, rouca. Até que tossiu por alguns segundos, antes de retomar. - Certa vez ouvi de uma raposa que uma família de coelhos encontrou uma adega. E por quarenta dias eles roeram a madeira de um dos barris e então beberam e beberam até que o vinho acabou, e repetiram o ato com todos os outros barris. E então encontraram, ao subir na cozinha, pães e peixes, e comeram, e ficaram saciados. Quando abandonaram a casa, o número de coelhos havia dobrado, e de quem vivia ali antes, ninguém jamais ouviu nada a respeito.

Gosto dessa história porque é tão extraordinária que chega a parecer mentira. Bem, raposas não são conhecidas por dizer a verdade...

Deu uma pausa e olhou em volta. Para o pequenino sentado na calçada, embalado num cobertor, os olhos vazios do velho causavam espanto. Não medo: espanto. Eram tão completamente vazios e ao mesmo tempo tão carregados de um sentimento que, até então, a vida não havia mostrado ao menino. Sentia falta da mãe pela primeira vez desde que se viu sozinho no mundo.

O medo o acompanhou desde cedo, a raiva chegou um pouco mais tarde, e o pesar de não poder fazer nada veio depois.

E, num turbilhão de pensamentos, decidiu que seu silêncio seria propício.

- A vida segue em frente, sabe. Seguiu em frente pra mim e vai seguir em frente pra você. O que importa é levantar. Aprenda a ouvir, e esperar. Faça o mundo ouvir sua história, de algum jeito. Eu apareci em várias ocasiões, aqui e ali, em vários períodos da existência e até mesmo em outros universos, dos quais você nunca ouviu falar e nem sequer cogitou existir. Universos dos quais ouvi falar graças à palavras soltas, pistas de uma charada, tecidas numa canção sem fim. E as vezes, palavras nem são necessárias. Desenhos, trechos de jazz ou feixes de luz já são suficientes. - O mundo parecia mais cinzento agora. E maior. E o menino sentia-se tão pequeno que já desconhecia quem era, e nem lembrava seu nome, ou o porquê estava ali e para onde iria. - Sempre estarei presente. Basta ouvir a si mesmo. Agora, levante.

Acordou atirado numa sarjeta, esfregou os olhos, e contemplou o silêncio da noite.

Miguel Bernardi
Enviado por Miguel Bernardi em 13/08/2015
Reeditado em 13/08/2015
Código do texto: T5345064
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