O tormento da dívida

O senhor Antônio Sousa abrira cedo a sua bodega. Às 7h30min daquele sábado, já estava na labuta, como em todos outros dias. Apesar da estatura baixa para os padrões de hoje, 1,60, era robusto, quase gordo, pesando 90 kg. Tinha pele parda e feições sérias o que o ajudava a impor respeito. Do alto dos seus 40 anos, era disposto e trabalhador, como quase todos no município rural de São Pedro, aonde a renda familiar vinha principalmente da agricultura e de acanhados comércios. A loja era pequena, mas bem sortida. Lá se encontrava de tudo: xampus, sabonetes, arroz, feijão, doces. As donas de casa e os chefes de família iam ao pequeno mercado com frequência. E, por serem de confiança, compravam fiado, mas sempre pagavam, ou quase sempre.

O dia correu normal, sem sobressaltos, apenas a ira do senhor Antônio Sousa que aumentava. O motivo? Uma dívida que não era quitada. O agricultor Clemente Firmino já havia comprado R$ 60,00 em miudezas, e não pagava, apesar da cobrança constante por parte do comerciante. Naquela tarde, quando fechou o mercadinho, bem localizado, em frente à pracinha repleta de árvores, avistou o devedor com os amigos, em volta de uma mesa de bar, tomando cachaça.

Sem hesitar o senhor Antônio foi até lá. Aproximando-se rapidamente, demonstrando muita fúria, chegou perto de Clemente Firmino e disse em voz alta:

- Tu vai morrer e não vai me pagar essa dívida, desgraçado?!

Clemente Firmino nada respondeu, demonstrando temor, perceptível através do olhar. O seu aspecto castigado, magro, de pele queimada pelo sol, mãos e pés rachados e cabelo grisalho o faziam parecer ter bem mais do que os 51 anos que realmente possuía. Além do trabalho aparência de sofrimento também era acentuada pelo consumo exagerado de bebidas alcoólicas, o que eventualmente o deixava sem dinheiro para necessidades de primeira hora.

- Vai me pagar ou não, vagabundo?! – Gritou o comerciante.

Ninguém se mexeu nem interveio, o assunto era entre os dois. Mas Clemente Firmino permanecia calado.

Ao perceber que não receberia ali Antônio simplesmente virou as costas com uma exclamação e foi embora.

- Ah!

Dois dias depois, já no final da tarde quando o sol começava a se por, Antônio Sousa conversava com dois amigos na calçada de sua bodega, sentados nas cadeiras de madeira revestidas com couro de bode. Muito comuns nas feiras livres nordestinas. O assunto girava em torno de amenidades, quando um terceiro amigo chegou correndo e disse:

- Vocês sabiam que Clementino acabou de morrer?

- De quê? Perguntaram.

- Parece que foi do coração – Respondeu.

Todos exclamaram surpresa e admiração.

- Mas rapaz, como é que pode?!

- Ainda hoje conversava com ele...Tava bonzinho!

Todos, menos o senhor Antônio, que de braços cruzados sobre a barriga proeminente, uma mão no queixo, cabisbaixo, pensativo, lembrava-se da discussão anterior.

A partir daquele momento, até o dia seguinte, o velório na casa acanhada de Clemente Francisco, construída com tijolos de barro e pintura amarela gasta, atraiu um grande número de pessoas. Parentes, amigos, conhecidos prestavam seus sentimentos a viúva e sentavam-se em bancos de madeira ou cadeiras deixadas na calçada, e conversavam sobre tudo. Alguns até sorriam.

Era um encontro social. O senhor Antônio também esteve por lá e prestou condolências. Mas durante a maior parte do dia permaneceu no comércio. Ao final do expediente fechou-o, como sempre, e foi para sua pequena casa, onde morava só. Tinha se “apartado” da esposa fazia alguns meses e não havia sinal de reconciliação.

Chegou em casa, preparou a janta e foi dormir no quarto dos fundos, onde havia um guarda roupa velho de solteiro, uma cama, também de solteiro e a rede, muito utilizada quando estava calor, como naquela noite.

Ao se deitar, vestindo apenas uma velha calça de linho, pegou-se a se lembrar do velho Clementino e de como tinha agido com ele. Deitava de barriga para cima, olhando para as telhas manchadas. Repentinamente a rede começou a balançar, sozinha, sem que Antônio fizesse força. Balançava levemente. Quando ele cerrou os olhos para tentar enxergar melhor na penumbra do cômodo, achou ter visto um vulto conhecido, junto ao punho da rede. Ergueu-se sobressaltado. Não havia nada. Pensou por um segundo e tornou a se deitar. Novamente a rede começou a ser balançada. Antônio se ergueu tentando identificar o vulto que jurava ter visto. Nada.

Levantou-se, desarmou a rede de um dos punhos, enrolando-a e deixando pendurada. Decidiu por dormir na cama de solteiro. Alguns segundos após, quando tentava relaxar, olhou para a direita e reconheceu de quem era o vulto que o olhava pesarosamente do canto oposto do quarto. Clemente Firmino estava parado, de pé, expressão triste. A ausência de paz lhe era evidente. As marcas produzidas pela vida pareciam ter se acentuado na morte. Era uma alma atormentada.

Antônio Sousa sentou-se na cama e encarou o fantasma. Trêmulo, ficou de pé e caminhou em direção ao interruptor que acendia a lâmpada pendurada no teto. A fraca luz tomou o quarto e nada mais havia nele além dos móveis.

Por um segundo, o senhor Antônio, a personificação da coragem, ficou de pé, cabisbaixo. No entanto, logo soube o que fazer. Vestiu-se e saiu de casa segurando uma lanterninha de pilhas. Não havia mais ninguém nas calçadas da cidade interiorana. Todos já haviam ido dormir. Foi rápido e resoluto até a bodega. Abriu-a, entrou e ascendeu a luz. Sentou-se atrás da escrivaninha gasta, de madeira, abriu a primeira das duas gavetas e puxou uma caixa de plástico de seu interior. Lá estavam as notas promissórias dos devedores. Procurou a que tinha o nome de Clemente Firmino, encontrando-a rapidamente. Olhou para o papel em formato retangular e o rasgou, jogando os pedaços no cesto de lixo.

Foi tomado por uma grande sensação de paz quando assim o fez. Desaparecendo a angústia que sentia em seu coração desde que Clemente morrera. Voltou para casa e dormiu muito bem por toda àquela noite.

É muito comum entre as pessoas do interior que a alma de um devedor não encontre paz quando este morre. Apenas o perdão da dívida pode garantir-lhe o sossego necessário no outro plano. O senhor Clemente o encontrou.