AGENTES EXTERNOS - DTRL24

Sempre achei fascinantes as florestas tropicais. Tantos mistérios debaixo de suas copas, uma infinidade de vida ainda por descobrir. Desde criança, gostava de entrar na matinha que havia atrás de minha casa para pegar insetos e por toda minha vida esse lado naturalista e explorador esteve presente. Minha família achava que, formando em medicina, eu iria sossegar dentro de um consultório. No entanto, resolvi pesquisar doenças tropicais, o que me levou às minhas adoradas florestas úmidas.

Minha tese de doutorado sobre doenças emergentes me levou à Myanmar, no sudeste asiático, para investigar a possibilidade de alguma doença isolada em vilarejo no meio da floresta poder chegar aos grandes centros urbanos. Meu orientador, o Prof. Charles Truss, havia ajudado na contenção de um surto virótico num pequeno vilarejo e me sugeriu ir até lá verificar como estava a situação.

A pequena área formada por casebres de palha abrigava poucas dezenas de pessoas. Examinando o local, percebi que a doença não existia mais ali e os moradores mais velhos falavam que há 25 anos ela não se manifestava. Comuniquei isso a meu orientador que, embora achasse estranho, ficou satisfeito ao saber que o trabalho que tinha feito há tantos anos dera resultado.

Já que não tinha muito mais o que fazer, fui com meus amigos olhar as redondezas. Pesquisar se os animais da floresta podiam estar apresentando alguma doença. Confesso que estava eufórico, afinal ia explorar o local. Caminhamos até a entrada de uma caverna. Estava acompanhado, dos também brasileiros e médicos, Guilherme e Ronaldo. A caverna era uma grande fenda que se abria na rocha em meio a grandes bambuzeiros. Achamos estranho o silêncio naquele local da mata: nenhum canto de pássaro, grito de macaco ou zumbido de inseto.

- Então, gente, vamos entrar na caverna? – perguntei animado.

- Só me deixe colocar a roupa especial. – disse Ronaldo, sempre precavido.

Nunca entendi o porquê de tantas preocupações que o rapaz tinha, ele chegava a ser chato por isso. Hoje isso pode fazer sentido, mas ele continuava chato. Mesmo assim, colocamos roupas especiais e capacetes com oxigênio. Trouxemos esses trajes caso houvesse epidemias nos vilarejos e Ronaldo insistia em usar depois de saber que as doenças que fezes de morcego podem trazer. Ah, se o Dr. Charles visse isso, falaria demais por gastar uma roupa dessas para fazer um passeio por aí.

Sentindo-me um astronauta andando em outro planeta, entrei junto com eles na caverna e caminhamos até ficarmos na escuridão total, onde a luz do sol não podia mais iluminar. As paredes eram feitas de rocha escura, que não soube identificar. Ouvia muitas gotas que vinham da superfície e eram filtradas pelo solo e rocha acima de nós. Mas ao longe, parece que ouvia a água correndo. Ao ligarmos as lanternas, me surpreendi por não ver nada: nenhum morcego, nenhum inseto. Algo estava muito estranho.

- Devíamos trazer algum biólogo de Harvard, isso aqui merece ser estudado. – sugeri.

Guilherme trazia equipamentos que mediam a qualidade do ar e analisava as rochas. Ao entramos num túnel, onde havia uma corrente de ar, ele disse:

- Que estranho, as leituras mostram que a qualidade do ar aqui é ótima, melhor que na superfície. Vou até tirar esse capacete pesado.

- Está maluco? – Ronaldo gritou. – Eu calibrei esse equipamento e sei que ele não faz análise biológica do ar! Aqui pode haver as proporções ideais de oxigênio, mas não sabemos nada sobre micro-organismos. Paulo, fala com... – ele ficou mudo ao me ver sem o capacete. – E vocês ainda se dizem cientistas! Não tomam nenhuma precaução e ficam aí se arriscando. Atualmente não precisamos arriscar a própria vida para fazer descobertas, lembram-se? Vou embora daqui...

Ele foi em direção à entrada da caverna, quando eu e Guilherme o ouvimos nos chamando. Corremos e, onde deveria estar a grande abertura, só restava um pequeno buraco onde podia ser vista a luz do sol que já se punha. Chegando mais perto, podemos perceber que o aquilo que fechava a passagem era um enorme fungo que vivia na caverna. O mais estranho era que ele não estava ali quando entramos. Aproximei-me devagar e percebi que havia grandes estruturas, que mais pareciam bolhas, que pulsavam.

- Gente, vamos embora. – falou Ronaldo com a voz abafada por causa do capacete. – Corram, ele vai explodir!

Saímos correndo da caverna, passando pelo pequeno espaço que o fungo ainda não havia preenchido. Lembro que, enquanto retirava um pedaço dele que ficara preso em minha roupa, ouvimos um estouro lá dentro, seguido da saída de uma fina poeira.

- Esporos. – Ronaldo comentava. – Ele quer se reproduzir.

- E agora vamos pegar uma doença mortal e vamos morrer numa explosão que espalhará mais esporos. – Guilherme adorava ridicularizar as paranoias de Ronaldo. – Não estamos num seriado de ficção científica, está bem? Pessoal, preciso de um banho e de uma bebida forte. Alguém me acompanha?

Voltamos para Naypyidaw, onde encontramos um lugar para bebermos. Não era grande coisa, mas foi divertido.

- Não acham estranho a vila estar normal? O professor jurava que acharíamos doentes? – Guilherme comentou, entre um gole e outro.

- Estranho não. Ele mesmo disse que ajudou na contenção da doença. O que acho estranho mesmo é a falta de informação sobre ela. O cara ajudou a tratar das pessoas e não sabe nada. – essa era a dúvida que me perseguia desde que começara a pesquisar o caso da tal doença que meu orientador trabalhou.

- Você não leu o artigo dele? – Ronaldo disse em seguida. – Na época não conseguiram identificar. Não sei se porque ela estava muito isolada e os temores deles de se espalhar não aconteceram, nem devem ter dado muita importância. Isso sim é estranho, pois guardar material para analisar depois é fácil.

- Vocês vieram aqui para beber ou ficar falando nerdices. – Guilherme conseguia separar trabalho e estudo da bebedeira facilmente. – Vamos curtir nossa última noite aqui.

Embora ele quisesse, não demoramos muito no bar. Levamos três dias para conseguir um voo até Pequim. Meu trabalho em Myanmar estava terminado e eu podia dar continuidade na escrita de minha tese. De Pequim, pegamos outro avião que fez escala em Londres antes de rumar para São Paulo. Meus amigos pegaram outro voo para os Estados Unidos, enquanto eu ia rever minha família.

*

A recepção que tive não podia ser melhor. Toda minha família me esperava no aeroporto. Rosana estava linda com um vestido florido e as crianças vieram correndo me abraçar e perguntar se havia trazido presentes. Abracei os dois com força e disse que somente em casa entregaria os brinquedos para Pâmela e João.

Em casa, um delicioso jantar me esperava. Enquanto comíamos contei tudo o que aconteceu na viagem, inclusive a exploração da caverna e o fungo gigante. As crianças adoravam histórias assustadoras e aumentei o quanto pude só para ver seus olhinhos espantados.

Durante aquele mês que passei em São Paulo, deixei a tese um pouco de lado, mas nos últimos dias comecei a organizar os dados que havia coletado em minhas viagens. Logo retornaria para Harvard e queria deixar quase tudo pronto.

Num desses últimos dias, minha esposa chamou-me para mostrar uma notícia que estava passando no jornal. Segundo a reportagem, uma doença misteriosa estava fazendo vítimas pelo Sudeste Asiático.

- Que sorte a sua, hein? Se ficasse mais um pouco ali poderia pegar isso. O que será?

Eu não tinha ideia, embora a doença do professor Truss não saísse da minha cabeça. Nunca entendi o porquê de ele querer saber tanto daquele lugar ao mesmo tempo em que não sabia nada da doença.

Dias depois estava de volta à universidade para finalizar minha tese e defendê-la. Marquei um encontro como meu orientador para contar sobre a viagem e acertarmos os últimos detalhes de minha apresentação.

- Como foi em Myanmar, Paulo?

- Não achamos nada naquele vilarejo. Os mais antigos lembram-se da doença de que o senhor falou, porém não tem nenhum sinal dela ali. O trabalho que fez foi muito bom!

- Obrigado, mas não fiz muita coisa. Aquela epidemia foi uma situação muito estranha. Inicialmente, os doentes apresentavam uma leve febre sem explicação aparente, que ia ficando mais alta com poucos dias. Acompanhado a isso, os olhos ficavam vermelhos e saía muco sanguinolento pelas narinas. Depois de um tempo, linhas negras surgiam no corpo da pessoa, como se fossem raízes que se espalhavam sob sua pele. Acamados, eles faleciam depois de poucos dias.

- Após todos os doentes morreram, ninguém mais foi contaminado. – ele continuou. – Sobraram pouquíssimas pessoas sadias e em seu sangue não havia vestígio de nenhum agente patogênico. Acredito que os doentes devem ter se contaminado com algo daquela caverna.

- Nós fomos naquela caverna. Ronaldo estava com tanto medo que nos fez usar as roupas de proteção para entrar nela.

- Muito esperto ele. Nunca se sabe o que podemos encontrar em lugares isolados. Encontraram algo lá que possa ter relações com a doença? – até ele concordava com o Ronaldo. Queria que Guilherme tivesse ouvido isso.

- Aquela era uma caverna estranha. Não vi insetos e nem morcegos. Só tinha um fungo muito estranho que não estava lá quando entramos. – nunca esqueci o quanto aquela caverna era estranha.

- Como? – professor Truss ficou intrigado com o fungo.

- Quando entramos, o caminho estava livre. Quando estávamos saindo, um fungo gigante quase bloqueava toda a entrada. Ele tinha várias estruturas que pulsavam, parecendo monstro de ficção científica. – ele riu de meu comentário. – Ache que ele deve ter se despregado do teto da caverna, pois não tem como ele ter crescido tanto em tão pouco tempo. Ah, e pra terminar ele soltou uma nuvem de esporos, pelo menos foi o que Guilherme disse.

- Esporos... – o professor ficou pensativo. – Muitos fungos causam doenças. Pegou uma amostra deles?

- Desculpe. – nesse momento, estava tentando conseguir alguma justificativa, mas resolvi ser sincero. – Mas nem me passou pela cabeça que talvez eles pudessem causar a tal doença. Nas suas análises não indicou nada?

- Para falar a verdade, ninguém se preocupou com isso; estávamos apenas para tratar os doentes. Por isso, descobrir o que ela era virou meu objetivo de vida. Faço qualquer coisa por isso.

Os dias se passaram e minha apresentação fora um sucesso. Agora eu era doutor em doenças tropicais. Depois de conquistar isso, meu objetivo era voltar ao Brasil, mas o professor Truss me convocou para uma reunião urgente. Encontrei-o em sua sala, junto com Guilherme, Ronaldo e outras pessoas. Ele nos convocara ali para o auxiliarmos em pesquisas sobre a doença que avançava sobre a Ásia.

A correria com a tese fez com que não me preocupasse com ela, mas ela avançara por todo o continente asiático e já estava fazendo vítimas na Europa. As pessoas apresentavam febres intermitentes e hemorragias incomuns. Embora todos temêssemos, provavelmente não tardaria a chegar às Américas. O professor havia recebido vários materiais para ajudar no entendimento da doença: seu agente etiológico, ciclo e quem sabe uma cura. Fiquei muito empolgado em participar, prolongando um pouco minha estadia nos Estados Unidos. Na mesma noite liguei para minha família.

- Que coisa ótima querido! Vamos ficar com saudades. – Eu conhecia minha esposa muito bem para saber que ela escondia algo. O tom de voz dela era preocupante.

- Está tudo bem por aí?

- Sim, sim. As crianças estão gripadas, só isso. Você sabe que me preocupo demais.

De fato ela era muito preocupada, mas a epidemia no Velho Mundo não era algo para se deixar de lado. Mesmo assim, prometi a mim mesmo não pensar nela chegando a minha casa. Minha família estava a um oceano de distância dessa doença e eu não podia ficar paranoico.

*

Começamos a estudar as amostras imediatamente. A cada relato que lia de um paciente, ficava mais preocupado com meus filhos. Rezava para que eles não estivessem com o que estávamos chamando de febre asiática. Possivelmente transmitida apenas pelas vias orais, as amostras que analisávamos guardavam curiosas surpresas.

- Observem! – Professor Truss nos chamou para olhar em seu microscópio. – O que estão vendo?

- Um vírus. Mas o que tem isso? – Guilherme indagou.

- Depois que ouvi o relato sobre a explosão de esporos na caverna, achei que a causa podia ser um fungo e que usava as pessoas como dispersoras de esporos, espalhando a doença.

- Agindo da mesma forma que alguns fungos fazem com insetos. – completei.

- Exato! Mas não é o que acontece, já que não há esporos ou outra presença fúngica nas amostras. Apenas esse vírus desconhecido. Você, Ronaldo, faça uma análise de DNA. Quero-o sequenciado o mais rápido possível.

Sempre que podia, ligava para o Brasil. Eram várias vezes por dia. E essa tensão só piorou quando uma notícia chegou a nosso laboratório: em todas as Américas eram notificados casos da doença. Nos poucos dias seguintes, a paranoia tomou conta do país. As pessoas não saíam de casa, quando saíam iam de máscaras. Outras acusavam os grupos antivacinas de serem os causadores, da agora considerada, pandemia.

Em meio a essa tensão, Ronaldo finalmente sequenciou o DNA do vírus.

- Essas são as bases do DNA virótico. – disse ele apontando para uma imagem no computador. – Nada diferente do que esperávamos. A reprodução segue o mesmo processo de ocupar a célula hospedeira e usá-la para fazer várias cópias de si mesmo.

- O que me intriga são esses genes. – continuou. – Não seguem o mesmo padrão e nem tem relação com algum gene humano que possam ter incorporado durante a replicação. Vou continuar comparando com outros grupos de seres vivos.

Entretanto, as pesquisas de Ronaldo foram suspensas. No dia seguinte ele não fora trabalhar, pois ficara com febre. Todos nós temíamos pelo pior, até que no sétimo dia os sintomas ficaram mais acentuados e ele teve de ser internado. No dia seguinte, foi a vez de Guilherme. Temia por minha saúde, pensando que talvez eu fosse o próximo.

- Que coisa, não? Pesquisamos a doença e acabei doente. E sei que uma cura ainda está bem longe. Como está o Ronaldo?

- Nervoso, como sempre. – disse, por trás de um vidro que isolava Guilherme. – Falou que a culpa era nossa por termos entrado na caverna sem as máscaras. Aí passamos a doença pra ele.

- Ele realmente acha isso? – Ronaldo disse, em meio a tosses com muco vermelho.

- Diz ele que conseguiu identificar um pouco daqueles genes estranhos. Parecem que tem semelhanças com alguns presentes em certas espécies de fungos filamentosos. Mas ele não tá nada bem. Conversei com os médicos e ele terá que ser sedado.

- Coitado. Ele é nerd demais, mas é gente boa. Foi bom conhecê-lo. – Guilherme falava em tom de despedida, sabendo que não havia esperanças para ele. Você devia ir para...

Ele ficou mudo de repente. As manchas negras em sua pele pareciam pulsar. Provavelmente sua circulação estava muito agitada. Pensei em chamar algum médico do hospital, mas o que se seguiu prendeu minha atenção. Guilherme abria e fechava a boca e esse movimento fazia muita saliva caiu. Junto com ela vieram filetes de sangue, que saíam também do nariz. De súbito, ele levantou-se da cama e começou a correr pelo quarto. Gritava por ajuda, mas ninguém fazia nada. Disseram-me que a doença cria um estado de histeria nos doentes, fazendo com que eles se debatam até que não haja mais forças. Nesses casos, os doentes acabavam gravemente feridos.

Saía do hospital transtornado, não podia suportar a ideia de meus amigos sofrerem tanto. O surgimento de uma doença é algo muito estranho, simples e desesperador. Vírus que se recombinam, tornando-se mais patogênicos; bactérias que vivem isoladas acabam sendo levadas para grandes centros. Será que Ronaldo estava certo e nós que trouxemos a doença? Eles demoraram a apresentar os sintomas e eu não tinha nada. Aquilo não fazia sentido algum.

Enquanto caminhava, pensativo, recebi a ligação de minha esposa. Suava frio torcia para não ser nada.

- Amor, tudo bem? – percebi pela voz que ela havia chorado. – Os meninos pioraram. Estão internados em isolamento. Dizem os médicos que eles estão com a tal doença nova.

Perdi o rumo nesse momento. Rosana voltou a chorar, dizendo que não sabia o que fazer e que não a deixavam ficar perto das crianças. Nem falar com elas Rosana conseguia e aquilo estava acabando com minha esposa.

Desliguei o telefone e fui correndo ao laboratório do prof. Truss. Expliquei a situação para ele, que não gostou muito:

- Não pode fazer isso comigo! – a raiva do homem era clara. – Preciso descobrir sobre essa doença. Claramente é a mesma que tratei anos atrás.

- Minha família está doente, professor. Pesquisa alguma vai me impedir de ficar com eles. Quero, pelo menos, vê-los pela última vez. – nesse momento, meus olhos começaram a lacrimejar.

- Idiota! Fique aqui e busque uma cura. Lá você não poderá ajudar em nada!

- Tarde demais, professor. Estou indo...

*

Cheguei a São Paulo e fui direto para casa; encontrei-a vazia. Durante o voo, só pensava naquela doença. Não apenas eu, mas todos os passageiros. Ainda no aeroporto, o clima de medo era intenso. Todos usavam máscaras e só viajavam por extrema necessidade. Pensava por quanto tempo os voos ainda seriam possíveis. Um passageiro tossiu dentro do avião e pude sentir o pânico tomando conta de todos. Os comissários tiveram trabalho para acalmar as pessoas antes que tentassem fazer algo com aquele que tossia.

São Paulo não estava diferente. No aeroporto, equipes médicas faziam uma espécie de triagem de quem chegava. Aqueles vindos de regiões muito contaminadas eram orientados a ir a uma sala onde seriam feitos exames prévios. Outro pessoal orientava sobre os sinais e sintomas da doença, entregando panfletos sobre o assunto e o endereço dos hospitais de referência. O clima estava tenso e nem na pandemia de gripe A senti tanto medo.

Como minha esposa não atendia ao celular, fui em direção aos endereços que estavam no panfleto. O Hospital das Clínicas estava mais cheio que o seu normal. Perguntei de minha família e a atendente, que respondia três pessoas ao mesmo tempo além de ouvir xingos de uma quarta, disse-me que os pacientes em isolamento estavam em um hospital de campanha montado no Campo de Marte.

Era difícil acreditar que tiveram de montar tamanha estrutura para combater a doença. Nos Estados Unidos a situação ainda não estava tão grave. Talvez a proximidade com o Carnaval tenha trazido mais pessoas contaminadas. Foi difícil achar minha família. Além de eu ter que brigar e implorar, eram muitas pessoas que estavam internadas ali. Em meio a tantas barracas e profissionais perdidos entre tantos nomes, encontrei minha esposa. Infelizmente não da forma que gostaria. Dentro de uma sala de isolamento, Rosana apresentava o rosto com sujeira avermelhada, sinal que havia sangrado há pouco. Por que não a limparam direito?

- P-Paulo? – Ela estava lúcida e nós dois choramos ao nos falarmos. – O que está acontecendo? Quero ver nossos filhos, não sei como eles estão. Prometa-me que vai curá-los, Paulo. Prometa!

- Tudo bem, querida. Eu prometo. Fique calma, está bem? Diga-me como começou?

- Os meninos começaram com febre que vinha e voltava. Disseram que era uma virose. Mas eles não tinham diarreia nem nada parecido. Numa manhã, Pâmela começou a saltar feito louca, parecia perder o controle de seu corpo. Enquanto isso, João chorava sangue. Sangue Paulo! Você não sabe o quanto é traumatizante ver seus filhos fazendo isso.

- Fomos para o hospital e nos mandaram para cá urgentemente. As crianças tinham que ficar isoladas e nem pude ficar com elas. – ela chorava de soluçar. – Dias depois eu fui trazida para cá. Que doença é essa? Onde será que pegamos isso? Diga-me!

- Só sei que é a mesma doença que fui pesquisar na Ásia. Antes de vir embora, estava ajudando numa pesquisa sobre ela.

Rosana olhava fixamente enquanto falava quando, de repente, ela caiu. Se repuxava continuamente, como se tivesse uma convulsão. Uma equipe médica trajando roupas especiais entrou no quarto. Fiquei para espiar pelo vidro que me separava de minha esposa, mas a cortina fora abaixada. Por trás daquelas paredes, pude ouvir que ela se fora.

Quis sair quebrando tudo, entrar a todo custo naquele quarto para despedir-me uma última vez. A única mulher que amei na vida, aquela em que dividi todos os meus segredos, aquela que me apoiara em meus sonhos de pesquisa nas florestas não existia mais. Vítima de uma doença que cruzou a minha vida e não sabia nada sobre ela. Nesse momento, lembrei-me de suas últimas palavras: “Prometa-me que vai curá-los, Paulo. Prometa!”. Corri para encontrar Pâmela e João.

Invadia toda barraca que via, mesmo sob o protesto dos enfermeiros. Numa delas, deitados nas camas de um mesmo quarto, estavam meus meninos. Pâmela estava linda com seus cabelos ruivos caídos sobre a testa e João parecia dormir profundamente. Foi quando pensava que eles estavam bem que a equipe do necrotério chegou. O desespero tomou conta de mim, atropelando todos e indo de encontro às minhas crianças. Soldados foram chamados para levar-me dali. Fui tirado à força, enquanto chorava por ter chegado tarde demais. Senão tivesse entrado para aquela pesquisa, teria-os visto ainda vivos.

Era conduzido para fora do Campo de Marte, quando uma voz, em inglês perfeito, fez os soldados pararem. Pelo sotaque, notei que era um americano que me levaria para fora dali. Estranhei os soldados brasileiros obedecerem-no, mas antes que pudesse chegar a alguma conclusão, o tal soldado acertou-me com sua arma e tudo escureceu.

*

Acordei zonzo, sem reconhecer o lugar onde estava. Era uma sala metálica, onde me observam. Sei disso porque no canto da parede há uma luzinha vermelha que não para de piscar; com certeza é alguma câmera ou outro dispositivo de vigilância. Tiraram as roupas que usava para me colocar um daqueles aventais de hospital. Por muito tempo gritei, querendo saber onde estava e o que queriam de mim. A única resposta que tive, se é que posso chamar de resposta, foi quando, inesperadamente, uma figura humana apareceu na pequena janela que antes estava escura.

A pessoa trajava roupa especial, utilizada pelas equipes médicas em casos de epidemias. Gritei, pedindo explicações, mas só me trouxeram comida, passando a marmita por uma passagem pela parede. O rosto daquela mulher estava impassível, sem esboçar qualquer reação. Ela desapareceu e a fome levou-me a comer aquela comida insossa. Estava bonita, mas sem gosto. Provavelmente estavam restringindo meus nutrientes, pois não vi nenhuma fonte de proteína.

Acordei de um sono agitado, assustado por não haver nenhuma comida na salinha. Eu não podia estar alucinando, lembrava-me do sabor do alimento. Foi quando notei um curativo em meu braço. Injetaram algo em mim, foi o que pensei. Gritei com toda força pedindo uma explicação, mas em troca as luzes de onde estava foram apagadas. Quem quer que estivesse no comando não gostava de mim.

O que estava acontecendo comigo? Fui agredido sem motivo algum, jogado num lugar que não faço ideia do que seja, longe de minha família... Ah, minha família! Não poderei enterrá-los. Cheguei tarde demais. Por que fiquei fazendo aquela pesquisa? Por quê? Se tivesse voltado logo, poderia ter visto o sorriso de minha menina, brincando com meu moleque, ter me despedido melhor de Rosana...

- Papai? É você? Não chore!

- Pâmela, onde está você? Estou morrendo de saudades querida...

- Paulo, querido, estamos lhe esperando. O jantar já está pronto.

- Oh, meu amor! – a voz de Rosana nunca fora tão doce e buscava por ela. – Estou a caminho.

Minha família estava reunida novamente. Nunca mais os perderia, eles não haviam morrido pela doença. A doença... Esse lugar está me deixando maluco, eu os vi mortos, todos eles. Tudo começou com essa doença. Até parece coisa de filme: vou em busca dela e minha família morre logo depois. Será que eu...? Não, é impossível. Não estou doente. Pelo menos não estou com a tal doença.

Três dias passaram desde a última alucinação com minha falecia família. Sei que são três dias porque recebi seis refeições. Julgo que sejam almoço e jantar. Hoje ainda não me trouxeram nada. Mais cedo ouvi barulhos próximos daqui. Algo aconteceu nesse lugar. Chamo por alguém e, finalmente, parecem me ouvir. Abriram a porta, porém ninguém entrou. É minha oportunidade de escapar!

Percebo que o lugar onde fiquei preso ficava no fim de um grande corredor. O local é todo cinzento, cor das placas metálicas que formam as paredes. Aqui parece uma grande instalação militar, daqueles de filmes de alienígenas. Caído próximo de mim está um soldado morto. Ele tem aquelas marcas negras que vi no corpo de Guilherme. Será que a doença se espalhou por todo mundo, dizimando a humanidade? Por quanto tempo fiquei preso? Sigo em direção ao fim do corredor, onde uma luz chama minha atenção. Pego um revolver que estava preso na cintura do soldado, por precaução. Poucos passos depois, ouço um ruído próximo: uma pessoa vestida com roupas especiais tentava se esconder num canto.

- Quem é você e que lugar é esse? – tento manter-me ameaçador, mas minhas mãos trêmulas indicam a falta de experiência com armas de fogo.

- Por favor, não faça nada! Sou apenas um empregado daqui. – diz o jovem que estava dentro de toda aquela proteção.

- Então comece a falar. Que lugar é esse aqui? – mantenho a arma apontada para ele.

- Esta é uma instalação de pesquisas, coordenada por um médico da Universidade de Harvard, Charles Truss.

Prof. Truss? Então ele estava envolvido com isso. Mas por que eu? Não estava doente, não tinha sintomas.

- Eu conheço o prof. Truss muito bem. Ele não iria coordenar um lugar que mantivesse uma pessoa presa como eu estava.

- Você não é o único aqui. O Dr. Truss chefiava pesquisas de ponta sobre a febre asiática e você foi apenas um dos objetos de estudo. Infelizmente os trabalhos foram interrompidos com um surto aqui dentro. Perdemos muitas pessoas e grandes pesquisadores. Tive muita sorte de não ficar contaminado.

- Ele me fez de cobaia? Como assim? Não tenho nada.

- Não tem a doença, mas tem o vírus. Não acompanhei as pesquisas em torno de você, mas seu quadro deixou o cara muito feliz.

- E onde ele está? Ele me deve muitas explicações!

- Tarde demais. Professor Truss morreu há três dias, vítima da doença que tanto pesquisou. Cremamos seu corpo aqui mesmo.

Eu devo estar dormindo, vivendo um pesadelo desde que minha família adoeceu. O que eu tinha de diferente? A única pessoa que poderia me responder estava morta. Será que o mundo estava morto? Não sei quanto tempo passei preso e será que nesse tempo a humanidade foi dizimada?

- Sei como ele irá me explicar. Ele mantinha anotações de todas as suas pesquisas, mostre-me.

- Não sei, não. Por favor, vira essa arma para lá.

- Eu falei para me mostrar as anotações! – grito apontando a arma para o rapaz. – Deve estar em sua sala, isso você deve saber.

Sigo pelo corredor e viro à direita. A primeira porta abre para uma sala ampla, com um quadro branco enorme, cheio de anotações. Num canto, vejo tubos de ensaio e placas de Petri caídos no chão, próximos de um microscópio quebrado. Um computador também estava no chão, mas o que interessava devia estar numa das gavetas da mesa.

- Ele nunca confiou suas anotações num computador, deve ter algo aqui.

Com sorte, as gavetas estavam abertas. Talvez ele estivesse mexendo nelas quando ficou doente. Encontrei um caderno de anotações e comecei a ler as últimas páginas.

“A febre asiática que está se espalhando pelo planeta, pelo que sabemos no momento, possui os mesmos sintomas do surto que combati em Myanmar há 25 anos. Meu orientando voltou desse país sem relatar coisa alguma. É muito estranho isso.

[...]

As amostras chegaram e descobri que um vírus vem causando isso. Ele possui algumas sequencias genéticas incomuns ao seu grupo viral, necessitando de mais estudos. Meus alunos relataram uma explosão que dispersou esporos de um fungo na região onde a doença ressurgiu. Isso precisa ser averiguado.

[...]

Perdi minha equipe em Harvard. Dois mortos pela doença e um que voltou ao Brasil para ver a família que ficou doente. Enviei uma pessoa para monitorá-lo, pois se os amigos ficaram doentes, ele também pode. As análises do DNA viral mostram que as bases incomuns têm similaridades com DNA de fungos basidiomicetos. Terei de levar a pesquisa para o Domo.

[...]

Reuni objetos de estudo de todos os continentes, em vários estágios de infecção. Percebi que o vírus não se manifesta igualmente em cada pessoa. Algumas sucumbem mais rápido que outras. Esse fato é, possivelmente, importante para a disseminação da doença. Os sintomas também são variados, mas sempre se iniciam com os mesmos de uma gripe comum. Alguns relatam irritabilidade e perda de coordenação de movimentos, além de confusão mental. Foi testemunhado sangramento nas mucosas e epistaxe. Em todos, mesmo tardiamente, são evidentes linhas negras pelo corpo, formando desenhos semelhantes a raízes.

[...]

Tive sorte com meu enviado e a retenção de Paulo foi realizada com êxito. Nas primeiras análises de seu sangue, notei uma presença muito grande de vírus. No entanto, ele não apresenta nenhum sinal ou sintoma. Devo prosseguir com os testes.

[...]

Testes sem resultados satisfatórios. Ele simplesmente não contrai a doença, embora carregue o vírus. Não obtive relato de nenhum caso semelhante entre os pesquisadores parceiros. A pessoa que o trouxe para cá acaba de faleceu de febre asiática. Temo cogitar que Paulo consiga espalhar a doença de forma muito efetiva.

[...]

Por curiosidade, comparei o DNA dos vírus presentes em Paulo e os encontrados em diversas vítimas ao redor do mundo. A similaridade é muito grande, como se fossem descendentes. Preciso pensar nisso.

[...]

Mais funcionários do Domo estão doentes. Um surto ocorre aqui. Dizem que uma cura está sendo preparada, mas não acredito. Muitas pessoas morreram, mas outras tantas não se infectaram, como da outra vez. Acredito que a doença só seja contraída em padrões genéticos específicos.

[...]

Acredito ter chegado a uma conclusão sobre Paulo. Ele deve ter entrado em contato com esse vírus na caverna, durante a explosão de esporos. Durante a reprodução, o vírus, que antes parasitava um fungo, se tornou mais potente para infectar humanos dando início à pandemia desde que Paulo saiu de Myanmar. No entanto, ele não morreu por ser fonte do DNA que o vírus necessita. Ele se tronou o hospedeiro e o disseminador perfeito. Parece impossível, mas não consigo pensar em outra coisa.

Tive contato com ele, será que ficarei doente?”

Então isso aconteceu comigo. Sou a pessoa que está espalhando a doença por aí. Eu matei meus amigos, eu matei minha família. Devo estar num pesadelo mesmo, essa teoria não faz o menor sentido. Mas explica alguma coisa. Eu matei minha família. Eu matei minha família.

- Saia da sala. – falei para o rapaz que ainda estava ali. – Saia e feche a porta.

- Por quê? Deixa eu te levar para sua sala, você precisa descansar.

- Não preciso de coisa nenhuma. Saia agora e feche a porta. – disse apontando a arma para ele.

Ele saiu e fechou a porta. Permaneceu do lado de fora, ainda falando.

- Seu nome é Paulo, não é? Venha comigo, te levo para casa. Não foi legal o que aconteceu aqui, mas o mundo não acabou. A doença começou a regredir e logo descobrirão uma cura. Você, às vezes, nem está contaminado.

- Ouça-me. – falei alto para que ouvisse de trás da porta. – Quando ouvir um barulho leve-me ao incinerador.

- Não faça isso! – ele deve ter percebido minhas intenções. – Já lhe disse, você pode não estar doente. Pense nas pessoas que estão esperando lá fora. Não desista tão fácil!

- Não estou desistindo. Só que continuarei espalhando esse vírus até que eu morra. Não posso conviver com isso. Além do mais, perdi tudo que amava. Eu matei minha família.

Sei que ele ficou sem entender o que quis dizer. Nem eu mesmo estou entendendo. Não devo estar normal, claro que não. Finalmente devo estar ficando doente.

*

Do outro lado da porta, não demorará até que o rapaz ouça o tiro.

TEMA: Doenças

Túlio Lima Botelho
Enviado por Túlio Lima Botelho em 02/09/2015
Reeditado em 04/09/2015
Código do texto: T5368374
Classificação de conteúdo: seguro
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