Nove dias - DTRL 24

- Droga, que barulho é esse? Soa como um veículo muito grande se movendo. - Preciso me levantar, só que não consigo me lembrar de nada, sequer meu nome. Minha cabeça dói, e nem imagino como vim parar nesta cama de solteiro decrépita, com lençóis sujos amarelados. Sinto um enjoo, mas ainda assim me levanto e vou até a janela. Apesar das grades que a protege, é possível ver um trem se movendo bem distante, passeando lentamente pelo vale. Não acredito que o barulho tenha vindo dele, está longe demais. Fora o veículo longínquo, não consigo avistar ninguém nas ruas, e até mesmo os imóveis vizinhos parecem abandonados. – Mas afinal, que apartamento é esse?

O quarto é pequeno, e além da cama em que despertei, há também um guarda-roupa marrom de solteiro faltando uma das portas. Prefiro verifica-lo mais tarde. Vou caminhar paulatinamente para o outro cômodo, talvez eu tenha sido sequestrado, preciso me precaver. Gostaria de usar algum objeto como arma, mas aparentemente não há quaisquer que me possa ser útil. Tacitamente caminho em direção à porta, que se encontra aberta. E o que vejo me deixa feliz, a sala está vazia. Após breve verificação, concluo que não só a sala como todo lugar está abandonado.

O apartamento possui três cômodos simples, um quarto, uma sala, e uma cozinha que também serve como lavanderia. Além dos três, o imóvel comporta um banheiro pequeno de azulejos brancos. Para minha surpresa, não só a janela do quarto, como a porta que dá para o corredor estão protegidas com grades. – Socorro! Alguém me ouve?! Preciso de ajuda! – Grito para alguma pessoa que possa me ouvir do outro lado. Porém após alguns minutos, desisto. – Pelo jeito estou sozinho. – Não há cadeados nas grades, é como se a porta tivesse sido presa por dentro. – Será que estou mesmo sozinho?

- A energia elétrica não funciona, e como aparentemente a noite está chegando, em poucos minutos tudo ficará sombrio. Preciso verificar se há água saindo das torneiras, ou comida em algum dos armários. – Viro a manivela da torneira esperançoso, e para minha alegria o líquido cristalino jorra. Encho minhas mão, cheiro um pouco desconfiado, mas logo bebo sem me preocupar. Após a hidratação, volto minha atenção para a busca por alimentos. Infelizmente não obtive sucesso, todos armários estavam vazios. – A penumbra já toma conta do ambiente, melhor voltar para o quarto.

- A porta do quarto possui chave, isso é bom. Vou me trancar e dormir, logo cedo terei mais chances de descobrir onde estou, e o que está acontecendo. – Apesar do cuidado para se mover na escuridão, antes de chegar na cama bati fortemente meu pé esquerdo na quina do guarda-roupa, e uma dor lancinante tomou conta de todo o meu corpo. – Era só essa que faltava para o dia ficar perfeito.

- Meus Deus, o que é isso! – Levanto apavorado com o mesmo barulho que me acordará na noite anterior. Dessa vez mais forte e aterrorizante. Olho assustado à minha volta, e nada vejo de diferente, apenas que é de manhã e preciso dar um jeito de sair desse lugar.

Com a claridade é mais fácil procurar evidências que me indiquem como cheguei nesse lugar. Ao vasculhar os armários do banheiro, através do espelho de vidro na parede pude notar pela primeira vez meu rosto, e as roupas que vestia. Uma calça jeans larga desbotada adjunto de uma camiseta branca sem estampa, as peças cobriam um corpo magro de uns 20 anos de idade. Deu para notar também o tom de cor negro dos meus cabelos, apesar de estarem quase totalmente raspados. No banheiro, apenas uma banheira e uma armarinho vazio em baixo da pia. – Espero ter melhor sorte na sala.

Dois sofás velhos, uma Televisão que parecia ter saído dos anos 80, uma estante de livros e um tapete empoeirado. É evidente que observando a sujeira acumulada nos móveis, talvez ninguém usufruísse daquele lugar há anos. Tento ligar o aparelho, mas a energia elétrica está ausente em todo o ambiente. Volto minha atenção mais uma vez para a porta de entrada. Na noite anterior não havia me atentado para o olho mágico preso a ela. Tento enxergar o corredor do outro lado, mas está vazio. Grito mais um pouco, mas como anteriormente, de nada adianta.

Na cozinha tinha um fogão, uma geladeira vazia desligada, e armários repletos de louças antigas. Nada de interessante. Terminada as buscas, o restante do meu dia pôde ser resumido em chutes na parede, gritos ressoantes, e lágrimas, muitas lágrimas. – Sinto fome, e em meio a solidão, a única voz que escuto é a do meu estômago pedindo comida. O dia tardou a passar, mas enfim a noite chegou, vou me trancar novamente no quarto para dormir. Talvez o sono espante esse vazio no estômago.

- Droga! – Outra vez o barulho, e dessa vez mais alto e forte que no dia anterior. – Meu coração está disparado. Acredite, levantar dessa maneira é muito pior que uma mãe acordando o filho para ir à escola. - Olho para a janela e vejo o mesmo vazio de sempre. – Hoje pretendo criar algum meio para serrar as grades, mesmo que tenha que quebrar os móveis para isso. – Na cozinha pego um prato, quebro, e como se fosse uma faca, tento serrar o metal que me separa do outro lado. Só que após muito tempo tentando, percebo que é impossível, espesso demais.

Num momento de fúria e desespero, me lanço contra os móveis e começo a golpeá-los intensamente. E com toda a minha força, viro o armário da cozinha. – Espera, o que é isso? – Atrás do armário há um buraco um pouco menor que a circunferência de um copo americano. Nele é possível ver o apartamento vizinho. – Parece que há uma sala idêntica à desse lugar. Está vazia. – Fico observando por vários minutos, mas logo percebo que minha euforia foi frustrada. Está abandonada. – Este é o terceiro dia que estou nesse lugar, acho que um banho poderia dar uma renovada em minhas esperanças.

- Espera um pouco, onde está o banheiro? – Fito incrédulo o local que outrora havia uma banheira e um espelho. No local há agora apenas uma parede. – Será que estou ficando louco? – Passo minhas mãos sob a vedação, e noto que é como se nunca tivesse existido um banheiro. Estaria minha fome me deixando louco e sob efeito de alucinações? Não, definitivamente havia um banheiro ali e não há mais! – Droga! Não aguento mais essa merda! – Outro dia se foi, e como nos dois anteriores, de muita gritaria e desespero.

- Não pretendo mais ser acordado com aquele barulho, vou ficar acordado. – Porém, quando se está sozinho há tanto tempo, e sem um relógio para verificar as horas, o tempo parece ficar estático. Resolvi caminhar pela casa na escuridão, e ao chegar na cozinha, verifiquei que havia algo diferente, do buraco para o apartamento vizinho saia uma luz. Era bem opaca, mas definitivamente era uma luz. Me aproximei e comecei a espiar. A sala do outro lado estava escura, mas ao fundo era visível que no quarto tinha uma luz acesa. E mais, por um segundo jurei ver a sombra de alguém passando. – Socorro! Por favor, tem alguém aí? – Busquei mais uma vez chamar atenção, mas não obtive resposta. Depois de muito tentar, voltei para o quarto e acabei pegando no sono.

O barulho retornou, mas em vez de assustar, dessa vez saltei rápido da cama e corri pelo apartamento para tentar identifica-lo. Não fui rápido o bastante. Ao contrário dos dias anteriores, hoje tinha um plano, iria dormir na sala. Arrastei um dos sofás e deixei-o bem de frente para o buraco da cozinha. Ficaria observando aquele rasgo na parede até aparecer alguém, pois tinha certeza que uma pessoa morava naquele lugar.

Era quase noite quando uma mulher de uns 40 anos, cabelos negros e corpo esguio entrou na sala do outro lado. – Socorro, por favor! Estou preso nesse lugar, me ajude! – Além da gritaria, ainda bati com os dois braços na parede. De nada adiantou. Ao fitar o rosto da mulher, percebi que a conhecia. E como não poderia a conhecer, ela era a pessoa que mais esteve ao meu lado durante a vida. – Mãe?

Chorando desesperadamente, e tentando me comunicar de todas as formas, ao perceber que não obtinha resultado, acabei desistindo e me encolhendo em posição fetal no sofá. – Gostaria de entender o que está acontecendo, tudo parece tão confuso. Que fome, uma pizza agora cairia bem. – Acabei adormecendo.

O quinto dia se iniciou de modo assustador, com o sofá que eu estava deitado virando de maneira brusca, e me jogando ao chão. Foi dessa maneira que descobri de onde vinha o barulho assustador. – Caralho, as paredes estão se arrastando na minha direção! Então era isso que acontecera com o banheiro. Toda as noite as paredes vão se fechando mais e mais, e o apartamento diminuindo. – Isso era loucura demais para tentar entender. – Preciso sair desse lugar urgente!

Ao chegar na porta da frente assustado, percebo que há uma carta debaixo dela. Pego rapidamente, abro o envelope e nele tem um cartão escrito: “VOCÊ FOI REJEITADO”, com letras de forma vermelhas. – Que porra é essa? – Volto para a cozinha e fico olhando para o buraco. E o que vejo é estarrecedor. Um jovem de cabelos negros e corpo esguio sai do quarto do apartamento vizinho, ele está rindo. Caminha até o sofá e pega o controle remoto para ligar a TV. – Eu também conheço esse rapaz, ele se chama Mason Story, tem 20 anos, e possui sérios problemas com álcool e drogas... ele sou eu.

Fico observando assustado, pois essa versão minha não parece estar com os problemas que outrora enfrentava. Com o advento da minha memória, lembro-me que eram raras as vezes que não chegava em casa em estado deplorável, obrigando minha mãe me dar dinheiro para suprir os meus vícios. Mas este Mason não, ele tem a aparência de quem só come salada no almoço, e entrega ovo de páscoa para as criancinhas. – Droga, o que está acontecendo, preciso sair dessa merda de lugar logo. – O dia todo passei inquieto de um lado para o outro, não poderia perder tempo, resolvi que não iria dormir essa noite.

Divagando pelo apartamento já escuro, sem conseguir ver cinco centímetros à minha frente, a televisão ligou sozinha atrás de mim. Meu corpo todo estremeceu, e virei rápido para ver. Na tela, em meio a chiados, um rosto deformado estava rindo. O volume da sua risada aumentava gradualmente, até o momento em que parecia que ia estourar meus tímpanos. Fui me afastando lentamente, apavorado, até que a televisão desligou. Novamente o ambiente virou escuridão e silêncio. Caminhei devagar em direção ao quarto com o coração acelerado. Mas nesse momento uma risada grave e rouca veio na direção da minha cama. Corri no sentido oposto, em direção a porta com grades da saída. A risada parou.

- Psiuuu... ei... psiuuu... – Soou atrás da porta.

- Quem é? – Respondi ao som.

- (...)

Nesse momento levanto devagar e espio no olho mágico. O rosto deformado me fitava sorrindo em silêncio, com sua boca grande de dentes amarelados e olhos vermelhos brilhantes como fogo. Tirei a face do olho mágico assustado. Respirei fundo e voltei a olhar. Ele ainda estava lá, parado, sem piscar, olhando fixamente para mim. Com muito medo tirei novamente a visão do seu alcance. Minha respiração estava ofegante. Pela terceira vez fui olhar, e dessa vez não tinha ninguém. Só que ao me virar, ele estava de pé, atrás de mim.

- "Haaaaaaaaaaa!.... hahahahaha!" – Ele gritou alto e com voz grossa, emendando um sorriso assustador. Caí no chão desmaiado.

Acordei no sexto dia estirado em frente a porta da entrada, e bastante perturbado pela noite anterior. Pude ver claramente que as paredes se apertaram mais. Praticamente toda a sala foi devorada pelos tijolos e concreto. Sem ter muito o que fazer, aproveitei esse dia para observar mais minha mãe e meu clone. Todavia, uma cena assombrosa chamou minha atenção e me embrulhou o estômago. Daiane Story, minha mãe, estava orando na sala em voz alta. – Obrigado Deus por ter feito meu filho nascer de novo, uma nova pessoa, sempre te pedi isso e sou verdadeiramente grata por ter me concedido esse desejo. Que meu velho filho, o dos vícios, nunca retorne, pois esse novo é um presente do senhor. Amém.

– Não mãe, não faça isso...

Já não sabia mais se era a solidão, ou a fome que mais me maltratava. Pelos meus cálculos, na próxima manhã, a parede com o buraco para o outro lado seria devorada, e perderia para sempre meu contato com minha mãe. Assim, decidi que ficaria ali o máximo possível vendo ela lavar louça, passar andando de um lado para o outro, escutar sua voz cantando músicas, que em outros tempos acharia chatas, assistindo TV, entre outras atividades que agora pareciam tão especiais por serem únicas. Quando a noite foi se aproximando, por não ter intenção de ter outro contado com aquele monstro feio do dia anterior, mandei um beijo em direção a minha mãe, agradeci por tudo que ela tentou fazer para me livrar dos vícios, e pedi desculpas por nunca ter lhe dado o valor que merecia. Fui para o quarto, e logo dormi. Nessa noite sequer lembrei da fome.

No sétimo dia, como previsto, a parede com o buraco não mais existia. O que me restava era o quarto, e um pedaço pequeno da sala e da cozinha. Ainda era possível chegar até a porta da frente. Percebi nessa manhã olhando pela janela, que lá longe, perto de onde o trem passa, há uma torre com um relógio. E que as paredes se moveram exatamente as seis horas da manhã. – Amanhã vou verificar se é uma hora padrão. – Meu hálito estava péssimo, e meu corpo fétido por não me higienizar há dias. Não tinha mais contato sequer com a água na cozinha, está foi devorada também.

Durante a tarde ouvi passos pelos corredores, e pelo olho mágico observei pessoas esfumaçadas, como fantasmas. Elas andavam de um lado para o outro com as cabeças baixas e semblantes tristes. Contei pelo menos umas vinte, inclusive umas crianças. E foi uma menininha a única a olhar para a porta quando bati. Apenas de soslaio, e logo voltou a andar, mas foi o suficiente para me sentir um pouco menos sozinho. Aquelas pessoas eu não sei, mas eu sabia que não estava morto, sentia dor e fome. Fui tirado vivo do mundo real, como se fosse um projeto que deu errado, e talvez realmente o fosse.

Minha cabeça me pregava peças, conversava sozinho sobre coisas idiotas. Lembrava dos amigos, tudo era muito triste. Voltei para o quarto, e me deitei. Quando acordei, apesar de já ser noite, um clarão tomava conta do quarto. Ao me virar vi diversas pessoas segurando velas em torno da minha cama, eram os esfumaçados. Quando me viram, um grito alto soou pelo apartamento, e todos começaram a sair assustados do quarto, um a um. Por último foi a menininha, que apressada deixou cair um papel do bolso do vestido. Esperei até que todos saíssem para ler, e o texto me era familiar: “VOCÊ FOI REJEITADA”.

Todos aqueles eram rejeitados como eu, e talvez queriam me dizer algo. Corri em direção por onde saíram, e vi que a porta para o corredor estava aberta. A menininha ainda caminhava para fora quando avistei o monstro surgir a sua frente. Assustado e cambaleando, pude ver o pior, a boca do monstro cresceu de maneira grotesca, o suficiente para devorar a menininha pela cabeça. Em poucos segundos vi aquele demônio engolir a pobre, que gritava apavorada de medo e dor. Apavorado e impotente voltei para o quarto, e não tardou muito para que as paredes voltassem a se mexer. Eram seis horas, e dessa vez eu estava preso num único cômodo, o quarto.

Sabia que se algo novo não acontecesse, teria mais dois dias de vida antes das paredes me esmagarem. – Mas o que fazer apenas nesse quarto? – Comecei a revirar o guarda-roupa, as paredes, tentei encontrar brechas na janela, mas fui surpreendido quando, no fundo do bolso da calça, achei um terço. E não era qualquer objeto religioso, mas o terço valioso de prata da minha mãe. – Realmente, lembro-me agora, coloquei ele no bolso para trocar por drogas e acabou vindo comigo nessa jornada. – Além dele também estava um pequeno relógio de bolso antigo, feito de ouro, que pertencera ao meu falecido pai. – Como queria que tudo tivesse sido diferente.

Passei a manhã e tarde rezando, refletindo, chorando, blasfemando e depois reconsiderando as blasfêmias. Tive todos os tipos de emoções que a solidão pode trazer antes da loucura. A boca seca de sede, e o estômago vazio nem doíam mais. Eram os menores problemas naquele momento. Queria apenas alguém para conversar, para desabafar, para ter uma segunda chance. Mas de forma silenciosa e feroz, a noite chegou, e nada mais tinha a fazer, se não esperar. Afinal era impossível dormir com aquela tensão. Me mantive sentado na cama até o nascer do sol, e este surgiu acompanhado do mover das paredes, o que me fez ficar somente com a cama como espaço.

Não conseguia sequer mais abrir meus braços em direções opostas, as paredes estavam exatamente no formato da pequena cama de solteiro. A janela também fora devorada. Mesmo de dia, parecia noite. Sentei com as pernas cruzadas, e a minha frente abri o pequeno relógio virado com os ponteiros para mim. Ele acendia, e era possível ver as horas. Fiquei nessa posição refletindo sobre tudo que vivera, numa miscelânea de sentimentos e loucura. Por várias vezes ri e chorei sem saber bem porquê. O tempo passou até que rápido, e quando olhei para o relógio, faltava um minuto para as seis horas.

“Sinto tanta fome e sede...”

...50 segundos

“Queria tanto uma segunda chance, faria tudo tão diferente...”

...40 segundos

“Sinto frio, será que vou morrer? ...”

...30 segundos

“Nove dias, isso me lembra as novenas de minha mãe...” – agarro o terço com força.

...20 segundos

“Estou com medo...” – Começo a chorar. As paredes tremem.

...10 segundos

“Adeus mamãe...”

(...)

TEMA: Solidão