Pretendente missionária
Tema: Solidão
 
    “Me avise se precisar de alguma coisa”.
 
    
Nada nesse mundo é tão amargo quanto o sabor do luto referente à perda de uma pessoa dona dos nossos afetos, como um familiar, um amigo ou um amor. Em momentos como esse, a frase que destaquei no primeiro paragrafo é fartamente semeada aos que ficam para trás, observando o baixar das cordas. Porém, o que realmente significa? Ao analisar de forma imparcial, chegaremos à seguinte conclusão: “Certamente não há nada que eu possa fazer para diminuir essa dor. Logo, deixo que você decida se há algo ao meu alcance, ou não, capaz de lhe confortar”.
 
     Uma vez, diante de uma situação traumática de morte, fui dominada por essa ausência de “abraços, ombros e palavras de consolo”, para serem oferecidos à pessoa que chorava. Inevitavelmente, meu último recurso foi expressar a frase genérica que encabeça essa narrativa, e que para fins literários está sendo um fio condutor até o momento. Qual foi a consequência? Algo que, não me restam dúvidas, trata-se do episódio mais fantástico que eu já vivenciei em toda a minha vida. Documentar esse acontecimento, através dessas linhas, é o meu objetivo.
 
     Confesso que quando uso apenas minha boca para contar os fatos relacionados a tal episódio, costumo subtrair a carga obscura e misteriosa, para evitar o constrangimento do inevitável soslaio por parte dos ouvintes. Mas, de forma apropriada, usarei esse arquivo para fazer justamente o contrário. O motivo que me fez decidir materializar tal relato não vem ao caso. Resumo minha atitude em uma palavra: desabafo! Mas, por que não o fazer ao meu noivo ou à minha mãe? Simples, tenho medo de obter justificativas rasas, como as que geralmente são imputadas aos efeitos colaterais, psíquicos, dos imunossupressores que ingiro diariamente.
 
     Sem mais delongas, vou começar.
 
     Eu me chamo Elaine. Há três anos, exatamente no dia 14 de março de 1999 (eu na idade dos vinte), recebi uma segunda chance para essa vida: um coração novo! Sim, o órgão que hoje pulsa no interior do meu tórax - verticalmente cicatrizado – antes trabalhava em outra pessoa, uma moça do interior Paulista, cuja morte ocorrera por motivos de obsolescência do tronco cerebral, decorrente de um acidente na estrada. O histórico detalhado sobre as minhas dramáticas variações de saúde, no que tange o período anterior e posterior à cirurgia, não será matéria para essa narrativa. Porém, acho justo que o leitor tome notas sucintas dos motivos que me levaram à fila de transplantes de órgãos do Hospital das Clínicas.
 
     Escreverei essa passagem de forma miúda.
 
     Lembro que era uma tarde de domingo. Estava com uma prima e, a pés descalços, banhávamos o meu cachorro (vira-lata) com uma mangueira. O calor formigava nossas costas, a molecada empinava papagaio na rua e a adolescência ainda possuía os resquícios inocentes do cheiro de giz de ceira, largado pela infância que teimava em ir embora. Tenho a imagem guardada como se fosse uma fotografia embolorada: levei o bico da mangueira ao meu rosto e, mesmo sem ter sede, apaziguei o calor tomando generosas porções de água. Até que um eclipse roubou-me a felicidade daquela tarde. A luz do sol foi bloqueada pelo preto e branco do desmaio, decorrente de falta de ar. Momentos depois, acordei no hospital.
 
     Após a realização de exames de sangue; urina e fezes; eletrocardiogramas; idas e vindas; internações e altas, recebi o diagnóstico de Cardiopatia grave. Apesar do choque, o problema foi assimilado por todos. Destaco que esperei dois anos até um doador surgir. Mas, antes de prosseguir, deixo registrado que não ocorreram eventos relevantes, dignos de nota, referentes à minha operação. O transplante foi feito de forma satisfatória. Um mês depois tive alta e em seis meses já estava trabalhando. Foi nessa época que o episódio fantástico, ao qual me referi no início, aconteceu.  Tal evento possui relação direta com a falecida, cujo coração foi doado a mim. O nome dela era Stephanie, e tinha 24 anos quando morreu.
 
     Até então, eu não havia conhecido os familiares dela. O único contato ocorreu por telefone. Na ocasião, conversei com a mãe da moça. Ainda de luto, pois as cerimonias fúnebres haviam ocorrido há poucos dias, chorava e dizia que sentia orgulho pelo fato da filha, mesmo morta, ter cooperado com o meu problema de saúde. Outro fato que me deixou extremamente comovida foi saber que aquela senhora, agora, morava sozinha, pois havia se divorciado do pai de Stephanie há mais de dez anos. Foi nesse momento que eu falei a frase que destaquei nos primeiros parágrafos: “se precisar de alguma coisa... me avise”. Mal sabia que, pouco tempo depois, tal ajuda seria requisitada!

     Eu já me encontrava trabalhando, livre das lembranças da cirurgia, quando recebi uma ligação. Ao atender, descobri que se tratava da mãe de Stephanie, a senhora Miralva. Nem de longe minha reação foi semelhante à que tive no primeiro contato com aquela senhora. Pelo contrário, a ligação inesperada despertou-me um sentimento peculiar. Achei estranho. Envergonho-me em dizer isso, mas foi o que senti. Ela, por sua vez, mostrou possuir curiosidades sobre minha recuperação e aparentou ficar estupefata quando eu disse que tudo corria bem. Em seguida, a conversa mudou de tom.
 
     - Elaine, você lembra o que falou naquela primeira vez que conversamos? Disse que se eu precisasse de alguma coisa era só pedir?
     - Claro! Pode falar... – Nessa hora, senti vontade de roer unhas!
     - Eu gostaria que você viesse me visitar!
 
     As pessoas me disseram que seria uma experiência marcante. Cada um possuía argumentos quase poéticos sobre a minha futura estadia na casa da mãe de Stephanie: a moça que salvara minha vida! Diziam que eu iria me emocionar. Outros falavam que, ao chegar na casa, iria perceber sensações de Déjà vu a todo instante. Meu tio Gilberto foi mais romântico, afirmando que a viagem era uma imperdível chance para desvendar os “mistérios que se escondiam no meu coração transplantado”. Esta última me fez rir alto!
 
     Contrariando a todos, o que eu efetivamente sentia era um misto de ternura, solidariedade e medo. Os leitores mais atentos irão se recordar quando, em alguns parágrafos acima, registrei que geralmente omito certas partes dessa estória quando estou batendo papo nas rodas de curiosos. Esses sentimentos contraditórios, relacionados à minha ida à antiga casa de Stephanie, estão inclusos neste pacote de omissões. Não só esses sentimentos, como vários outros fatos que também farei questão de documentar adiante.
 
     Por fim, marquei de ir ao interior naquele fim de semana. Em razão de ser uma experiência particular, resolvi ir sozinha.

     Chegando na rodoviária de Piracicaba, por volta das quatro da tarde do dia combinado, entrei em um táxi e fui conduzida ao endereço. Quando apareci na frente da residência, a senhora Miralva veio ter comigo, sorridente. Não vou relatar os acontecimentos que se sucederam quando o inevitável abraço aconteceu. Não saberei descrever a cena de forma adequada: o momento em que ela passou a mão no meu rosto; colocou o ouvido no meu tórax; e etc... Só digo que realmente foi uma experiência emocionante. Porém, as coisas mudaram quando eu entrei na pequena e humilde residência. Esses sim são os fatos que quero ressaltar!
 
     Leitor, alguma vez você já esteve em um velório? Caso a resposta seja positiva, pare por alguns segundos e consulte o âmago de suas lembranças a respeito de tal cerimonia.
 
     Feito?
 
     Bom... Agora eu lhe convido para, comigo, retornar à casa de Stephanie.
 
     Imaginar que de alguma maneira você será minha companhia nessa jornada me dá forças e coragem para vencer os próximos parágrafos. Pois tenho certeza de que se chegou neste ponto é porque confia em mim. Acreditou quando eu disse que nada do que narrei – e que vou narrar – jamais saiu da minha boca.  Consequentemente, não vai duvidar agora, e não vai achar que estou querendo impressionar se eu disser que, por um segundo, ao cruzar a porta de entrada, tive a impressão de ter visto um caixão sobre a mesa de centro da sala.
 
     Quando digo sobre a impressão de ter visto um caixão, refiro-me ao clima existente nos velórios: ambientes ruins, pesados e carregados pelo cheiro de velas e flores molhadas. A casa era simples. As paredes brancas insistiam em esconder o amarelo encardido da passagem do tempo, enquanto que cortinas vermelhas balançavam em razão do vento. Mesmo o dia estando claro, havia penumbra em todos os cantos daquela sala. Fora isso, o silêncio era inconveniente. Absolutamente nada podia ser escutado, além das nossas vozes e do som pontuado do relógio de parede, que ficava ao lado de um quadro de aparência antiga, que ostentava a figura da cabeça de um cavalo. Os olhos do animal, na fotografia, teimavam em perseguir os meus.
 
     Trec... trec... trec... O som do relógio.
 
     Confesso, e digo isso com muita tristeza, que aquele momento, a entrada na residência, foi uma grande decepção para mim. Eu sabia que a senhora Miralva estaria severamente enlutada e solitária. No entanto, eu realmente não havia me preparado psicologicamente para uma imersão em um local tão soturno e melancólico. O silêncio, a escuridão e o vermelho predominante no rosto da mãe de Stephanie, apenas colaboravam com o clima pesado e carregado do ar. Se alguém me dissesse que o enterro da moça havia acontecido naquela mesma manhã eu iria acreditar!
 
     Lembro-me que, de imediato, fui acomodada no sofá de couro velho. Miralva sentou-se ao meu lado e conversamos por longos minutos. Era uma mulher magra e alta, já beirando os cinquenta, mas que notoriamente procurava esconder a idade utilizando-se de artifícios cosméticos. Apesar disso, era bela e se esforçava com louvor para prolongar os sorrisos que raramente vinham ao rosto. No entanto, tais esforços não foram suficientes para minimizar os sentimentos relacionados à morte precoce da única filha. Pois fez questão de deixar claro que, até então, não havia aceitado o acidente trágico e lutava diariamente para tentar superar aquela perda.
 
     Outro detalhe que me deixou triste foi ter que mentir a ela, no momento em que fui questionada sobre o que eu senti quando entrei na casa. Com certeza, Miralva esperava escutar algo do tipo: “nossa, tenho a sensação de que já estive aqui antes”; ou então: “meu coração está batendo como nunca”. Lembro que a resposta que saiu pela minha boca, quase como um vômito, foi: “fiquei muito feliz”. Mas, na verdade eu estava sentindo angustia, e ao mesmo tempo lutava para não alimentar um medo que teimava em nascer dentro de mim. Eu sentia no ar que algo estava muito errado dentro daquela casa. Nunca havia experimentado tal sensação antes.
 
     Tentei relaxar e não consegui. As horas foram passando e as coisas apenas aparentaram sinais de melhora quando Miralva resgatou um álbum de fotografias, nas quais eu pude conferir a aparência da minha doadora. Esse momento eu ressalto com orgulho. Chorei quando olhei os olhos de Stephanie naquela foto, sentada na calçada em frente à casa; os cabelos formando uma longa trança castanha, caída sobre o ombro. Lembro que meu corpo se arrepiou e senti uma sensação doce na boca, misturada a uma vontade imensa de poder abraçar aquela menina. Pela primeira vez na vida eu senti sabor de chocolate em minhas lagrimas, e não tenho vergonha em dizer que também estou chorando agora enquanto escrevo esse paragrafo.
 
     Desculpe, mas não vou tentar descrever a aparência, o aspecto, de Stephanie. Guardo essa impressão no fundo do “nosso” coração, e espero que o leitor dessas notas entenda e respeite meus sentimentos.
 
     Logo em seguida, infelizmente, as fotografias do álbum perderam o ineditismo, e o peso daquela casa voltou a cair sobre meus ombros. Miralva fechou o caderno de recordações e se levantou para ir à cozinha, buscar café. O relógio pontuava os segundos (trec... trec... trec), os olhos do cavalo continuavam me observando e, ao olhar pela janela da sala, percebi que o dia já havia dado licença para a noite. E a luta que eu travava contra o medo, inexplicável, aumentava cada vez mais. Foi quando notei que, sobre a última prateleira da estante havia um estranho pote preto, de tamanho médio, cercado por duas velas de sete dias, apagadas.
 
     A senhora retornou, trazendo duas xicaras de café e uns biscoitos. Continuamos conversando (havia intermináveis assuntos) e lembro que um detalhe passou a me incomodar extremamente a partir de então: onde eu iria passar a noite, ou seja, dormir? Como um trabalhador tentando postergar os cinco minutos de sono faltantes, que o separam do início da labuta, eu tentava me desvencilhar daqueles pensamentos. Ou melhor, tentava me iludir e me convencer de que não havia motivos plausíveis, ou justificáveis, para ter medo de dormir em qualquer que fosse o lugar. Até mesmo no antigo quarto de Stephanie, que naquela altura deveria estar trancado à chave.
 
     Acho que nunca experimentei vários sentimentos distintos em um espaço de tempo tão curto. Era irônico, pois naquele momento eu estava praticamente terminando de enxugar as lágrimas de emoção, por ter visto a fotografia da pessoa cuja morte “salvara a minha vida”, e ao mesmo tempo a ideia de ter que passar uma noite no quarto dela me causava repulsa. Confesso que é incompreensivo, tanto que essa é uma das partes que, até hoje, não tive coragem de contar para ninguém, por vergonha. Mas digo que foi algo natural, sobre o qual não tive poder de controle. E as coisas pioraram na sequencia, quando fui abruptamente interrompida por uma indagação singular de Miralva.
 
     - Elaine, se não for incomodar, eu queria te pedir um grande favor.
 
        Trec... trec... trec...
 
     Levei segundos para esboçar uma reação. Nesse ínterim, o som do relógio ecoou pela casa, destacando o enigma que havia por trás da solicitação que a mãe da falecida se preparava para fazer. Consequentemente, rangi os dentes e pensei “meu Deus”. Porém, ao analisar a condição na qual me encontrava na frente de Miralva – estando eu, literalmente, usando o coração da filha morta dela – algo me dizia que qualquer que fosse o pedido, não importasse as consequências, eu deveria atendê-lo sem questionar. Era como se, junto ao órgão transplantado, eu houvesse contraído um passivo de longo prazo com aquela senhora.
 
     - Claro que sim! Pode falar! – Respondi em seguida.
     - Que bom! Amanhã no almoço vou fazer um prato que era o favorito da Stephanie. Eu gostaria que você vestisse as roupas dela e almoçasse comigo. De certo modo, minha filha ainda está viva dentro de você. Será a oportunidade perfeita de fazer uma espécie de despedida, entende?
 
     Trec... trec... trec...
 
     Leitor... Quero que nesse momento você seja sincero e responda as seguintes perguntas: será um exagero, da minha parte, se eu disser que fiquei petrificada de medo, dos pés à cabeça, quando escutei o pedido da mãe de Stephanie? Poderei ser classificada como fria, egoísta, fraca, se eu confessar esse medo às pessoas? Será que você, leitor, também passaria pelas mesmas reações se vivenciasse uma situação semelhante?
 
     Como estou ressaltando desde o início, este relato trata-se de um desabafo, pois até hoje eu não tive coragem de contar essas experiências a ninguém! Boa parte desse receio se dá ao fato de eu ter vergonha em assumir que senti medo quando Miralva pediu para eu vestir as roupas da filha falecida. Entretanto, naquele momento a consciência razoável me fez crer que eu deveria agir como uma pessoa prestativa e caridosa, ciente de que nada nesse mundo é tão amargo quanto o sabor do luto referente à perda de uma pessoa dona dos nossos afetos. Dessa forma, eu não deveria me furtar, nem medir esforços, em “adoçar” os sentimentos daquela mãe enlutada e solitária.
 
     Mesmo contra minha vontade, concordei em colaborar com aquilo – que aparentava ser uma cerimonia, ou um culto - que Miralva pretendia realizar no dia seguinte. A noite já estava alta naquele ponto da conversa e a casa ficava cada vez mais escura. Pouco tempo depois, jantamos e permanecemos na sala por mais alguns minutos, conversando (a televisão ficou desligada durante toda a minha estadia). Lembro que imediatamente após a refeição, Miralva apanhou uma caixa de fósforos e acendeu as velas de sete dias, que cercavam o pote preto, sobre o qual eu já chamei a atenção. Mas, naquele momento, nada foi relevado acerca do conteúdo do objeto. Apesar de ter achado muito estranho, eu não tive coragem de perguntar o que era.
 
     O tempo passou rápido e já era quase dez horas da noite, pelo que me lembro, quando fui questionada sobre onde eu gostaria de passar a noite.
 
     - A senhora que sabe. Eu consigo dormir em qualquer lugar!
     - Vou te deixar no quarto que era da minha filha então... Vai ser mais confortável para você!
 
     A sensação que queimou meu estomago foi semelhante a que senti ao ser questionada sobre a possibilidade de me vestir de Stephanie, para o almoço do dia seguinte. O que seria o mais sensato? Deveria ser sincera, correndo o risco de magoar aquela mãe e aparentar estar com medo, dizendo: “prefiro dormir aqui na sala mesmo”? Lembro que minhas mãos ficaram trêmulas e ao mesmo tempo, internamente, eu ministrava inúteis lições de moral a mim mesma, tais como: “pelo amor de Deus Elaine, o que tem de ruim em dormir lá?”. Mas não adiantou, pois não consegui ficar calma. Observei a cabeça do cavalo e tive a sensação de que ele ria e zombava do meu medo!
 
     Então, mais tarde, Miralva apanhou a chave e me acompanhou à porta do quarto, que ficava após o corredor da cozinha. Em seguida, destrancou e abriu.
 
     - Como eu sabia que você viria, limpei e tirei a poeira. Pode ficar a vontade!
     - Obrigada!
 
     Era um quarto de tamanho médio. A cama de solteiro ficava no centro e havia, também, um guarda-roupas na parede dos fundos. Miralva entregou a chave na minha mão e me desejou boa noite, deixando-me sozinha. Então, após entrar e trancar a porta, retirei minhas sandálias e caminhei descalça sobre o tapete felpudo até alcançar a beirada da cama, para me sentar em seguida. De forma resumida, digo que o local aparentava estar sendo utilizado normalmente. Mesmo já sabendo que as coisas de Stephanie estariam do mesmo jeito, conforme Miralva havia falado, fiquei surpresa com a normalidade que havia naquele aposento.
 
     No canto, próximo ao guarda-roupas, havia uma mesinha com um aparelho de som sobre ela. Ao lado, estava uma cadeira com dois cobertores, dobrados, em cima do assento. Levantei e fui até a janela, abri e me deparei com grades de ferro. Através das grades eu pude observar a rua e diversas casas, todas com as luzes já apagadas em decorrência do horário tardio. Fiquei analisando aquela paisagem e, mesmo sendo uma pessoa desprovida de fé, tentei de alguma maneira fazer o que para mim seria uma “oração”, direcionada à alma ou ao espirito de Stephanie. Basicamente, disse que sentia muita tristeza pela morte dela e que estaria disposta a fazer qualquer coisa que fosse necessária, para apaziguar a notória dor que a mãe dela estava sentindo.
 
     Nesse momento, escutei um ruído. Supostamente oriundo do guarda-roupas. Um rangido.
 
     Fechei as janelas e retornei para a mesma posição na qual eu estava antes, sentada sobre a cama. O coração aflito pulsava em meu peito. Eu tentava me convencer de que o pequeno som, como o de madeiras se chocando, não era nada além dos costumeiros barulhos que todas as casas possuem. Então, em um impulso isolado de coragem, levantei e fui em direção ao móvel. Abri as portas delicadamente, para Miralva não descobrir minha inspeção inconveniente. Diversas roupas, lavadas e passadas, emanavam um aroma agradável de amaciante, sabonete e naftalina. Havia dois recipientes com perfumes e algumas sandálias. Tudo limpo, organizado e pronto para ser usado, como se a qualquer momento Stephanie fosse destrancar a porta e entrar no quarto, se arrumar e sair bela e perfumada, para ir passear com os amigos.
 
     Anteriormente, o trágico falecimento daquela moça estava distante de mim. Mas, quando entrei no quarto, sentei na cama e toquei naquelas peças de roupas, a tristeza e o peso da morte – propriamente dita - me afetaram. Daquele momento em diante, Stephanie não era apenas a doadora de anteriormente. Percebi que o contexto da vida de uma pessoa real e normal estava diante de meus olhos: o cheiro agradável que havia no ar; anotações de próprio punho, que ela havia deixado em uma folha de papel sobre a escrivaninha, contendo o que parecia ser o endereço e o telefone de uma empresa (lindas letras de forma, anotadas por caneta preta); e chinelos devidamente dispostos ao lado da cama. Sem saber dos acontecimentos de outrora, ninguém falaria que se tratava do quarto pertencente a uma pessoa que já estava morta e enterrada.
 
     Continuei abrindo, conferindo e analisando os conteúdos. Roupas íntimas, blusas, cadernos e livros. Por fim, verifiquei a última gaveta e me arrependi de tê-lo feito. Todo o encantamento, mágico até certo ponto, se desmanchou quando eu contemplei o que havia naquele compartimento. Dobradas e enroladas, estavam cerca de três ou quatro faixas de pano branco – ceda na verdade - com os seguintes dizeres: “Com os sinceros pêsames, dos colegas de trabalho de Stephanie, vá com Deus”; “Saudades eternas, das amigas inseparáveis: Agatha; e Cristine”; “Saudades, saudades e mais saudades: Vagner; Lucas; Vanessa; e Marina. Stephanie, que os anjos te acompanhem!”.
 
     Desde quando Miralva me levou àquele aposento, até o momento em que comecei a investigar aquelas gavetas, eu estava realmente tendo uma experiência triste, porém, bem diferente do tom mórbido que eu esperava sobre o fato de dormir naquele quarto. No entanto, quando li as frases e imaginei as respectivas faixas pregadas sobre as coroas de flores, ao lado do caixão de Stephanie, novamente a repulsa incontrolável, e o medo inexplicável, voltaram a me fazer companhia. Por que, afinal de contas, aquelas lembranças funerárias estavam guardadas? Pelo que me recordo, imediatamente abri minha mala e coloquei uma roupa mais simples, para dormir. Apaguei a luz, deitei na cama e clamei para que o sono me abraçasse.
 
     Não demorei para adormecer. No entanto, minha mente custou para se desvencilhar do assombro causado pela leitura das faixas de despedida.
 
     Que eu tenha visto, ou que eu me lembre, não ocorreram fatos extraordinários durante a noite. Dormi um sono profundo, que veio rápido e gostoso. Porém, na manha seguinte uma coisa extremamente estranha me incomodou. Até hoje, (juro) tento buscar respostas racionais e lógicas para o que vou escrever adiante, e até chego a esboçar boas teorias a esse respeito. Dessa forma, minha intenção ao narrar essa passagem não é fazer o leitor acreditar em um evento sobrenatural que, possivelmente, tenha ocorrido comigo. Vou apenas elencar os fatos e não farei esforços para convencer o juízo de ninguém, sobre absolutamente nada!
 
     Tenho o costume de sempre dormir descoberta, e não foi diferente naquela noite. Só uso lençóis ou edredons quando realmente está muito frio. No entanto, ao acordar pela manhã, percebi que sobre mim havia um daqueles cobertores que no início da noite estavam depositados sobre a cadeira, ao lado da mesinha! Como narrei de forma detalhada os fatos que se sucederam, desde o momento em que eu entrei no quarto até quando me assustei com as faixas funerárias, então, está registrado que fui deitar sem pegar nada para cobrir meu corpo! Também, cabe ressaltar mais uma vez que a porta do quarto foi trancada por mim, pelo lado de dentro!
 
     Qualquer pessoa que estiver lendo esse relato nesse momento está imaginando o mesmo que eu pensei quando acordei, e me vi deitada sob aquele cobertor: Miralva possuía uma segunda chave do quarto, logo, entrou durante a madrugada para ver se tudo estava bem comigo e resolveu me cobrir, para me proteger do frio. Essa também foi a explicação que veio à minha mente. Mas, o que você – leitor - vai pensar se eu te disser que, quando me levantei da cama, observei que em meu corpo havia roupas diferentes daquelas que eu colocara para dormir? Meu traje estava composto justamente por uma daquelas blusinhas e calças jeans perfumadas que, anteriormente, estavam dentro do guarda-roupas de Stephanie!
 
     Para esse último fato, explicações razoáveis já são mais complexas de se obter. Quanto mais para os próximos eventos que documentarei a seguir!
 
     Consultei meu relógio de pulso e me assustei com o horário: dez e vinte da manhã. Estava com uma sensação de leveza no corpo, sem dores ou aquelas fadigas costumeiras que sentimos ao “dormir” por longas horas. Caminhei até a mesinha (a blusinha amarela que eu vestia estava com um bom caimento, mas a calça jeans apertava um pouco nas coxas), e verifiquei que as minhas roupas legítimas, aquelas que eu coloquei antes de me deitar, estavam cuidadosamente dobradas sobre o móvel, e logo notei que havia uma espécie de bilhete sobre elas. Sem tardar, apanhei o pedaço de papel e não consegui acreditar naquilo que eu li! Neste momento, enquanto escrevo, meu corpo está arrepiado, pois o bilhete de que me refiro está aqui comigo!
 
     A minha caligrafia é executada com “letras de mão”. No entanto, o conteúdo deste bilhete fora escrito por letra de forma, exatamente a mesma que eu havia visto quando entrei no quarto na noite anterior, naquela folha que estava sobre a mesinha e que possuía o endereço e o telefone de uma empresa.
 
     Eis a transcrição na íntegra:

     Querida Elaine, minha amiga...
 
     Estou muito feliz por você ter melhorado a saúde após receber o meu coração. Também te agradeço por ter viajado até aqui, na casa da minha mãe, para visitá-la. Como você percebeu, a solidão a castigava, pois não havia aceitado a minha morte. Dessa forma, os sentimentos dela haviam prejudicado a minha partida dessa vida terrena. Ontem, quando você entrou neste quarto, eu já estava aqui dentro te esperando e fiquei muito feliz em te ver. Infelizmente, até então, não havia como me comunicar. Porém, você se lembra de que, ao olhar pela janela, tentou falar comigo? Dizendo que queria ajudar a aliviar a dor da minha mãe?
 
     Pois bem, enquanto você dormia, o seu corpo ajudou a concretizar esse desejo! Pela manhã, minha mãe deverá estar melhor e, consequentemente, eu já terei partido quando você acordar. Desejo que você tenha toda a felicidade e a sorte que uma pessoa pode conseguir na terra. Gostaria de te dar o seguinte conselho: não deposite a esperança de obter felicidade em realizações que estão por vir! Sinta a vida a cada segundo e não espere chegar o amanhã para você viver a plenitude da felicidade! Faça isso hoje, enquanto há tempo!
     Stephanie.
     Fiquei paralisada! Como sou uma pessoa pacífica, de imediato me preocupei em organizar o ambiente, escondendo a carta e vestindo minhas “próprias” roupas. Ressalto que não passou por minha cabeça a ideia de que aquilo pudesse ser resultado de obra trabalhada por Miralva. Ao contrário, ocultei tais evidências por temer que minha sanidade fosse posta em xeque logo no momento em que eu destrancasse a porta do quarto e me metesse à mesa do café da manhã. Dessa forma, disfarcei e agi como se nada houvesse acontecido. Queria sentir o ar da casa, conversar com Miralva e somente depois tentar colher frutos maduros de elucidação, os quais tão cedo não iriam cair do cacho se eu me desesperasse!
 
     Respirei fundo, e mantive a calma. Em seguida, destranquei a porta e fui ao banheiro.
 
     Ao sair, já com a face mais apresentável, cumprimentei Miralva, que se preocupava em fartar a mesa com pães frescos. De imediato, percebi que a situação realmente estava melhor em relação ao dia anterior. Todas as janelas e portas estavam abertas e o som desesperador do relógio estava abafado pelos latidos dos cães e cantos dos pássaros; os pardais e as rolas, da vizinhança. Não havia mais o cheiro de velas, nem o de flores molhadas, e o mais importante: Miralva estava feliz! A felicidade dela me contagiou, e juntas tomamos café da manhã... Como se nada, absolutamente nada, tivesse acontecido.
 
     Pelo que me recordo, parte de mim se ocupava em manter um nível de conversa social e natural, enquanto que a outra parte lutava para encontrar as peças faltantes daquele “quebra cabeças” que fora a minha noite no quarto de Stephanie. Obviamente, não obtive sucesso, e somente minutos depois – quando os pães já estavam comidos – que Miralva segurou minha mão e, me olhando com um sorriso de criança traquina, perguntou se eu havia dormido bem! Eu entendi a mensagem: ela queria me puxar para fora do labirinto. Estava me mostrando a ponta do “novelo da lã de Teseu!”.
 
     - Dormi bem. Mas... Uma coisa estranha aconteceu comigo pela manhã! – Eu disse, não aguentando segurar o sorriso que, também, preenchia minha face.
 
     Em seguida, Miralva respondeu:
 
     -
Não precisa mais fazer aquilo que eu havia lhe pedido, a respeito das roupas e do almoço de hoje. Já está feito! Nessa madrugada, minha filha me visitou e me abraçou pela última vez. Finalmente eu pude me despedir dela!
 
     Maiores detalhes não foram revelados. Por outro lado, eu também não fiquei totalmente à vontade para questioná-los. Após o café, Miralva destacou que a partir daquele dia ela iria desfazer todas as lembranças ruins que a cercavam, no que dizia respeito à morte da filha. Dessa forma, as tristes faixas funerárias foram descartadas, bem como as roupas, as quais eu mesma ajudei a embrulhar para que, posteriormente, fossem entregues à doação. Uma autentica libertação acontecia diante de meus olhos. A solidão, a tristeza e a amargura, que antes dominavam àquela mulher e aquela casa, haviam dado lugar à luz, paz e conforto.
 
     A manhã já havia se passado, e Miralva não me contou sobre o que de fato acontecera na madrugada. Logo, entendi que ela não iria fazê-lo. Coragem para perguntar eu também não tive.
Nunca me disseram que, alguma vez, eu já levantei de noite e fiquei caminhando, sonolenta, pela casa. Ou seja, jamais tive problemas com sonambulismo. Como está escrito, o que senti foi o peso prazeroso proporcionado por uma profunda noite de sono. Não me convém criar e gerar – aqui - especulações e desenvolver teorias. A mente de cada um, que apanhar esse texto, trabalhará e encontrará as soluções necessárias e confortáveis para esse enigma.
 
     Mais tarde, quando eu me despedia, para retornar à São Paulo, a senhora Miralva me entregou o pote que costumava ficar na última prateleira da sala, cercado de velas de sete dias. Ela disse que, anteriormente, aquilo representava uma espécie de “altar”, onde repousava a lembrança mais próxima que possuía em relação à Stephanie. Em razão dos fatos que se sucederam naquela madrugada, Miralva alegou que não precisava mais de tal objeto que, assim como as mensagens das faixas e as roupas antigas, só iria servir para materializar o luto e a solidão decorrente da morte que antes dominava aquela casa.
 
     O pote foi entregue a mim e eu o levei comigo. Em respeito à memória de Stephanie, não vou escrever e revelar o conteúdo do respectivo objeto.
 
     Dessa forma, satisfeita e aliviada, finalizo meu relato!
 
     Os eventos que vivenciei naquele fim de semana vão estar para sempre em meu coração. Naquela tarde, deixei a casa de Miralva com a sensação de ter aprendido duas valiosas lições de vida. A primeira delas está diretamente ligada à minha frágil condição de saúde, decorrente do procedimento cirúrgico que passei, e também àquela mensagem que encontrei no bilhete sobre minhas roupas. Aconteça o que acontecer, eu vivo e vou continuar vivendo de forma intensa, como se o amanhã não existisse. Não vou deixar de dizer – todos os dias - que eu amo as pessoas que amo, de sorrir e de chorar quando eu sentir vontade, de fazer todas as coisas que eu gosto e procurar sempre estar cercada de pessoas que me agradam.
 
     A segunda lição está relacionada à minha crença espiritual. Como eu disse nos parágrafos iniciais, eu sempre fui descrente das fantasias e milagres que ocorrem diariamente com as pessoas ao redor desse mundo. Mas, não posso fechar meus olhos e negar as coisas que vivenciei. Então, independente de religião e crença, viverei acreditando que existem coisas que os homens e a ciência não podem explicar. Forças poderosas e inesperadas que, de alguma forma, regem e cuidam desse universo maravilhoso e infinito.
 
     Stephanie, onde quer que você esteja, nunca vou me esquecer de você.
 
Ass: Elaine Nogueira - São Paulo – 07/04/2001
 
Dois anos após a data mencionada neste último rodapé, Elaine faleceu em decorrência de complicações relacionadas ao transplante do coração. As folhas contendo os relatos descritos acima foram encontradas em um pote preto, escondido no fundo do guarda-roupas. Curiosamente, nunca havia sido notado por ninguém, nem mesmo pelo marido de Elaine. No interior do objeto, adicionalmente, havia a ponta de uma velha trança de cor castanha, feita a partir de cabelos humanos.
Fim
Velho Gonçalves
Enviado por Velho Gonçalves em 15/09/2015
Reeditado em 17/09/2015
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