O PÁSSARO

Aquela noite parecia que não ia chover, desci para passear um pouco com Camila no parquinho, que ficava a cem metros do meu apartamento, já passavam das dezenove horas, a temperatura baixa estava propícia para uma brincadeira no balanço e um pouco de ar puro, faria bem para a minha doença.
Eu senti que havia subestimado o tempo, principalmente para uma criança, o vento estava um pouco mais forte que o habitual e a temperatura mais baixa, o frio estava saindo do suportável.
O parquinho tinha três crianças e nenhum adulto, o que era estranho. A luz baixa do poste o deixou sombrio.
As crianças estavam muito silenciosas, paradas e me olhando, desviei o olhar.
Camila largou a minha mão e saiu correndo para o balanço, com apenas cinco anos, sabia que alguma coisa de errado acontecia comigo, minha respiração estava ruidosa e meus passos muito devagar.
Claro que já sabia, pois era doença no coração, sem cura, estava na fila de transplantes.
Com Camila no balanço eu logo me sentei, as outras duas crianças continuavam paradas me olhando, eu fiquei cismado e gritei.
—Parem de me olhar e vão brincar!
A chuva começou a cair fina, os dois saíram correndo do parquinho depois que eu gritei.
Camila ficou no balanço, a chuva aumentou de fina para forte e em segundos era uma tempestade, então eu tentei levantar para chamar Camila, uma chuva assim pode causar pneumonia, porém uma pressão no meu peito me fez cair, fiquei ofegante vendo tudo de cabeça para baixo, tentei gritar por Camila, a voz não saía e da minha boca no seu lugar engasgo, baba e sussurro.
Uma mão fina passou no meu rosto e disse.
—Quer dormir Paulinho? Você é danado, sabe que vai se sujar todo de areia, e nessa chuva vai se emporcalhar, menino sujo costuma apanhar em casa – disse Camila.
Engasguei as palavras, respirava rápido e profundo, nada de conseguir mexer um músculo, cada vez o ar ficava mais raro no meu pulmão, minhas palavras não saíam, queria pedir ajuda, mas não conseguia.
—Eu gosto da chuva, olhe o que eu achei no chão do parquinho, um amiguinho que vai ajudar a acertar as coisas — disse Camila me mostrando um pássaro preto em sua mão — ele está machucado, com a asa quebrada, vou dar um jeito nisso também.
Minha respiração ruidosa ficou pior e senti uma espuma em minha boca.
—Paulinho você está cuspindo, vou pegar o seu lenço no bolso, tá todo molhado, vou retirar essa baba — depois que pegou o lenço no meu bolso ela passou na minha boca, colocou o pássaro do meu lado, aquele bicho molhado mexia apenas os olhos, senti a mão pequena de Camila na minha, ela conseguiu, levou a minha mão até o celular.
Tentei discar, mas os meus dedos ainda estavam muito duros.
Depois ouvi uma voz respondendo uma chamada de emergência.
Tudo ficou escuro.
Quando acordei estava no hospital, minha cabeça doía, havia um tubo em minha uretra e outro na minha boca, alguém disse:
—Ele acordou.
Os dias que se seguiram foram difíceis, fiquei na UTI incomunicável, enfrentei infecções e tive certeza que iria morrer, que com tudo que tinha feito talvez o inferno me esperasse, ou tudo que sofria já era o meu inferno.
Um ciclista atropelado me salvou da morte, herdei o coração dele.
O fato foi parar nos jornais. O dono da caminhonete que atropelou o ciclista disse que um pássaro preto desviou a sua atenção, ninguém acreditou e o indivíduo acabou preso.
Acordei com o coração novo.
De alta, fui para a minha casa acompanhado de minha mãe, quando subia as escadas da entrada do meu prédio com auxilio dela, perguntei:
—Onde está a menina?
Ela ficou em silencio.
— Camila, onde se meteu?
—Ou você ficou doido — disse minha mãe com a sua maquiagem forte e as mãos de manicure — ou isso é o trauma de ter ficado naqueles tubos, o médico me disse que teria alucinações.
—Foi a menina que me salvou— fiz uma pausa para respirar e continuei — ela deve ter ligado para emergência.
—Ainda vou ter uma filha — ela me olhou surpresa sem parar de mastigar o chiclete — fiquei sabendo essa semana que estou grávida, não sei quem é o pai, quem se importa? Não quis falar com você porque estava nessa de morre ou não morre — ela sorriu e eu não entendia nada, será que todo desespero da morte teria pregado uma peça na minha cabeça? De braços dados e me ajudando a caminhar ela complementou o que estava dizendo.
Olhei na direção do parquinho e vi uma menina de cinco anos, ela me deu um adeus com a mão e mandou um beijo.
Quando fui abrir a porta, olhei a esquerda onde ficava uma mangueira bonita, ouvi um canto de pássaro, olhei na direção do som, o que vi me estremeceu, aquele pássaro, o que Camila havia colocado ao meu lado com a asa quebrada, ele parecia me observar.
Quando chequei a minha varanda do pequeno sobrado, uma construção ainda inacabada cheia de umidade, olhei para o parquinho e senti um aperto no coração no e um dor nas costas, a minha mulher havia deitado para dormir, o parquinho estava escuro, a lampada fraca iluminava de forma displicente, mas dava para ver as três crianças paradas lá, Camila no meio.
Ouvi uma voz na minha cabeça.
-Foi ela Paulinho. Ela tem que pagar, ela faz coisas horríveis com você, a criança não deve nascer, mande a criança para brincar com a gente.
O suor na minha testa escorreu, as três crianças se fundiram em uma nuvem negra e a nuvem se precipitou em minha direção, ergui o pescoço e tudo aquilo entrou pela minha boca.
Fui buscar a faca na cozinha, já não dominava os meus atos.
Só então entendi o que havia acontecido.


 
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 24/09/2015
Reeditado em 24/09/2015
Código do texto: T5393484
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