A Lenda de Beg, a Cria da Floresta

Seus pensamentos eram meio confusos mas ele sabia o que queria através de seus instintos.

Há três anos atrás fora encontrado perambulando nu numa floresta de proteção ambiental por um guarda-florestal que não sabia bem o que estava procurando - alguns dias antes, uma família de turistas havia ido acampar na região e uma criança, filha do casal de turistas fora encontrada despedaçada e com um imenso buraco aberto em sua barriga, cujos alguns órgãos foram dados como desaparecidos - e assim o guarda Myke fora convocado a procurar por algum animal que pudesse ser o algoz da morte da criança.

Mas em sua andança pela floresta se deparou com ele, e, ao vê-lo a primeira vez, um pouco de longe, pensou que se tratava de um macaco, dada a sua estrutura óssea que era bastante similar a de um chimpanzé e seus pelos numerosos e espessos.

O guarda se aproximou um pouco mais, ainda em dúvida, mas chegou a conclusão de que era um humano, e viu que havia sangue grudado nos pelos do peito dele.

Seu caso fora bastante divulgado pela mídia, pois, dentre outras particularidades, o homem não sabia seu nome e também, não sabia se comunicar direito - nem sequer possuía documentos. Também não sabia informar se tinha uma família ou algum conhecido. Era como se tivesse vivido toda sua vida isolado na floresta.

O juiz do caso resolveu perguntar a ele que nome ele gostaria de ter. Ele respondeu com um resmungo prolongado, "Baeeeg", e seu nome ficou de acordo com o que o juiz entendera: Beg.

Fora julgado - e preso, e assim permaneceu até hoje, quando poderia gozar da saída temporária para o Natal (o que alguns chamam equivocadamente de indulto de Natal) oferecido aos presos.

Durante o tempo em que passou na cadeia melhorou sua habilidade de comunicação e de como se portar. Tudo isso ele aprendeu apenas observando como os outros presos agiam e imitando eles.

No entanto sua mente não funcionava com a das outras pessoas. Era meio difusa. Um ato estranho que Beg costumava fazer e que deixava as outras pessoas impressionadas era escalar e se pendurar em qualquer coisa que pudesse. Costumava escalar as grades da área de banho de sol dos presos, e, como a área era fechada com grades até na parte de cima, ele escalava até o teto e se locomovia no alto, com o corpo pendendo para baixo e as mãos e pés grudados na grade acima.

Alguns agentes e até presos acreditavam que ele era um macaco e não um humano, por sua habilidade em se pendurar e pela sua aparência simiesca, com a mandíbula projetada exageradamente para a frente, o crânio um pouco menor que o das outras pessoas, além de não possuir cabelos e barbas normais, mas o que brotava na sua cabeça era pelo, similar ao pelo dos braços, do peito e das pernas, mas médicos que o examinaram garantiram que se tratava de um humano. Pois seu nariz era definitivamente humano, assim como sua pele por baixo dos pelos e não possuía rabos nem nada do gênero.

Mas a verdade é que nem ele mesmo sabia o que era. Uma cientista chamada Regina viu os casos nos jornais e se interessou em estudá-lo, o que a princípio não foi permitido, mas dada a sua insistência, liberaram uma única consulta a ela. Desde então, ela deu entrevistas garantindo que se tratava de um ser híbrido - metade homem, metade macaco, mas outras pessoas (leitores, críticos, médicos e até outros cientistas) a desacreditavam e diziam que ela só estava querendo aparecer e que tais discursos eram puramente sensacionalistas, pois afinal era impossível um ser desses existir.

O fato era que agora Beg estava solto nas ruas, com a instrução de retornar à penitenciária no dia vinte e cinco de dezembro antes das seis da tarde.

Na sua cabeça porém, se passava apenas uma coisa. A parte instintiva falava mais alto, no entanto, usaria sua parte racional para conseguir o que queria.

Saiu no dia vinte e quatro de manhã, e como não havia ninguém para buscá-lo na penitenciária que ficava afastada da cidade, ele ficou vagando sozinho. Só sabia que tinha que andar para cada vez mais longe da penitenciária.

Caminhou até chegar, já de noite, a uma vila habitada, que apesar de vinte e cinco quilômetros distante era a mais próxima da penitenciária. Estava exaurido.

Passou a observar as casas do lugar, muitas, com diversos carros estacionados na frente. Se aproximou de algumas janelas abertas ou sem cortinas, para espiar o interior das casas, tomando cuidado para não ser notado, e em muitas podia-se ver famílias reunidas e árvores de Natal enfeitadas.

Espiou várias casas, até chegar a uma casa simplória de madeira e que ficava um pouco afastada dos vizinhos. A casa continha um grande quintal com várias plantas e um cercadinho fechado cheio de galinhas.

Do lado de fora, Beg avistava apenas uma luz fraca iluminando um único comodo da casa e ele resolveu ir conferir.

Logo na primeira pisada dentro do terreno, as galinhas notaram sua presença e começaram a se agitar e cacarejar dentro do cercadinho, fazendo com que Beg parasse por um momento, para ver se alguém sairia de dentro da casa para por ventura ver o motivo pelo qual as galinhas se agitavam. Ficou imóvel prestando atenção com os olhos e os ouvidos, mas não houve movimentação de dentro da casa para fora. Continuou seu caminhar lento, e aos poucos, finalmente chegou a pequena janela donde saía luz.

Vagarosamente, foi levantando a cabeça até que seus olhos conseguissem ver lá dentro. Como estava escuro e a parte de cima da cabeça de Beg não era muito grande, ele nunca era notado e dessa vez não foi diferente. Quando observou o interior da casa, um sorriso brotou em sua gigantesca boca.

Havia apenas uma velhinha, provavelmente quase na casa dos setenta anos, sentada num sofá comendo um pedaço de frango assado. Beg procurou por sinais de que houvesse mais alguém na casa, mas tudo indicava que a senhorinha estava passando o Natal sozinha.

Ela tinha cabelos brancos, possivelmente uns cinquenta quilos e vestia um vestido confortável juntamente com pantufas. Levava pedaços de frango vagarosamente a boca, numa mastigação que parecia levar décadas enquanto assistia um programa na TV. Beg logo passou a língua pelos dentes, e resolveu agir.

Com uma movimentação parecida com a de um macaco, rapidamente e facilmente entrou pela janela, quando a idosa o viu, abriu a boca para gritar, mas não tinha forças para dar um grito muito estardalhoso, saindo algo mais parecido com um gemido.

- Quem... é... você? - ela disse, ainda sem ter terminado de mastigar uma coxinha de frango.

Sem sequer cogitar respondê-la, Beg foi pra cima dela com sua imensa mão dando-lhe um soco que a fez cuspir pra fora os restos de frango que estavam dentro de sua boca, e sua dentadura saiu fora do lugar. Em seguida pegou o prato que estava ao lado dela no sofá e que continha o frango e o arremessou para longe, quebrando o prato na parede e o frango caindo no chão.

A senhora não teve a menor chance de defesa perante o animalesco ataque recebido. Beg segurou sem muito esforço os braços frágeis da idosa e a arrastou para fora do sofá a jogando no chão, após afastar uma mesinha que atrapalhava o caminho com um chute. Ela dava gritos baixos parecidos com gemidos e Beg utilizou-se das unhas enormes que tinha para rasgar o vestido da idosa na parte da barriga, em seguida, usando ainda as mesmas unhas, afundou a mão na barriga dela, porém a pele não estava cedendo fácil.

Beg então usou a arcada dentária para ajudar a abrir a barriga da velha, até avistar diversos órgãos, quando então começou a falar repetidamente, para ninguém em específico:

- Tripas, tripas, tripas, tripastripastripas, tripaaaas - começou a mexer nos intestinos da velha, que ainda se debatia e lacrimejava. Ele continuava dizendo: - Trrrrrripassss, tripas, tripas-tripas-tripas, tri-pas, triiiiipaaaaaaaaaaaas.

Após puxar a ponta dos dois intestinos pra fora, ele finalmente saciou sua vontade, pegando primeiro o intestino delgado e o colocando estrategicamente na boca. Enquanto ia mastigando e engolindo, chupava mais para dentro de sua boca e assim o intestino foi sendo consumido. Nesse ponto, a senhora já havia dado seu último suspiro, mas Beg não estava nem perto de terminar seu banquete.

Ele chupava o intestino pra dentro com grande alegria e emoção. Ele esperou por esse momento há três anos, desde que comera as tripas da criança na floresta e seu apetite estava mais voraz do que nunca.

Terminou e partiu para o intestino grosso, se animando quando descobriu que nele havia um tempero de frango, procurando conter-se e não mandar tudo para dentro sem antes mastigar para sentir bem o toque especial de frango em suas papilas gustativas.

Quarenta minutos depois, não haviam mais intestinos na mulher - estava tudo a caminho do estômago de Beg. Desajeitadamente, ele arrastou o que restou do cadáver da velha para atrás da casa, onde abriu um buraco superficial no quintal e jogou o corpo lá dentro, depois colocou terra em cima (aprendeu isso por meio de um relato de um detento da prisão).

Agora Beg tinha outra coisa em mente. Queria voltar pra floresta de onde o tiraram, mas aceitaria qualquer floresta que fosse. Não pretendia jamais voltar pra cadeia - não se podia dizer o mesmo de suas intenções em relação a comer tripas. Saiu da casa e voltou a vagar, procurando agora um local para viver em paz que contivesse árvores e mata fechada, onde não precisasse usar roupas.

E assim, Beg sumiu do mapa, mas não da história. De boca em boca, o pouco que se sabia sobre ele foi contado e assim criou-se uma lenda que rapidamente se espalhou, sobre um homem-macaco que atacava pessoas para comer suas tripas e poderia aparecer a qualquer momento em qualquer floresta que existisse, amedrontando assim diversas pessoas que se arriscavam a fazer trilhas, piqueniques e acampamentos em florestas. Era conhecido como "A Cria da Floresta". Alguns não acreditavam que ele existisse de verdade... mas nem todos que iam em busca de aventuras na natureza silvestre voltavam pra contar história.

Temas: criaturas fantásticas, comida