CORAÇÃO DE MÃE – DTRL 25

Os pés pequenos batiam a poeira do chão no caminho de volta da escola. A rua principal de Vila da Estrela era de terra batida e estava sempre empoeirada. A poeira das ruas era o denominador comum a todos os caminhos do paupérrimo bairro. Somando-se à poeira, havia a ventania. Surgia pontualmente às nove da manhã e às quatro e meia da tarde. O vento vespertino chegava na hora em que acabavam as aulas da escola elementar do bairro e as crianças voltavam para suas casas. Casas pobres que se espalhavam pela vila, alternando-se com faixas de matagal até bem perto da beira do rio. Na beira do rio só havia uma casa. Mas ninguém ia até lá.

Assim, o menino Isaque, o dono daqueles pés pequenos, voltava para casa divertindo-se ao bater os pés para espalhar a poeira na ventania. Batia os pés no chão para ver os volteios das nuvens de poeira levadas pelos ares, enquanto fazia barulhos com a boca, imitando as explosões dos filmes de guerra que assistia.

__ Fogo! Buuuummmm!!!! – gritava ele -- e espalhava a fumarola de terra.

As outras crianças riam e repetiam a brincadeira. O campo de batalha de mentirinha ia se espalhando da escola até a porta de cada casa onde os soldados iam se recolhendo, e fazendo os exércitos diminuírem até que o cessar fogo se tornava inevitável.

Isaque mal podia esperar amanhecer novamente e chegar uma nova hora de ir para a escola. Era seu momento de paz. Mas agora ia enfrentar de novo a tortura de todos os dias. O momento de chegar em casa e encontrar sua mãe.

Solange era uma alcoólatra incorrigível. Era uma mulher insuportável quando sóbria, e era enojante e depravada quando bêbada. Morava com o filho na pequena casa que falecido marido construiu. Como todo operário mal pago, gastou muitos anos na construção de seu palácio, como ele mesmo chamava. Mas Solange estava longe de ser uma princesa com seus palavrões, suas gritarias e suas bebedeiras. Sentindo que seu esforço foi vão, Antônio morreu arrependido do casamento que tinha, e antes de poder separar-se da megera, deixando Isaque sozinho com a mãe.

Nada de alegria havia naquela casa. Para o pequeno Isaque, cada canto guardava as lembranças do pai, de suas risadas e brincadeiras. Mas essas lembranças estavam se apagando e dando lugar às lembranças das surras constantes. Cada pedaço da casa lembrava-lhe apenas das quedas causadas pelos empurrões, dos puxões de cabelo, dos tapas no rosto e dos chutes desferidos pela mulher que ele chamava de mãe. Cada canto estava impregnado de dor e cheiro de álcool.

Chegar em casa após o dia de aula fazia tremer as mãozinhas do menino de sete anos. Sua respiração já se tornava ofegante ao passar pelo portão de madeira que dava acesso ao quintal. A visão da casa o assombrava. A iminência de entrar o emudecia.

Naquele dia não foi diferente. Ao empurrar a porta da cozinha para entrar em casa, a mãe já o esperava cambaleante, com o semblante fechado em uma máscara de ira, e o cinturão de couro na mão. O pequeno gritou e correu, mas como sempre, não adiantou. Foi alcançado e espancado covardemente com o grosso cinturão. Entre uma chibatada e outra, era empurrado contra as paredes, recebia pontapés, e era humilhado verbalmente.

__ Desgraçado! Não sei para quê você nasceu! Praga ruim! Sua peste... Desgraça da minha vida... Você não vale a comida que come... Põe pra fora! Põe! -- gritou Solange.

Assim, gritando, agarrou o filho pelo pescoço e enfiou os dedos na garganta da criança causando vômito.

__ Põe para fora! Você não vale o que come, desgraçado! – gritava.

Em desespero, Isaque sofria a mistura de choro e asfixia enquanto vomitava e seu corpo tremia. O hálito da mãe exalava os vapores do álcool que a encharcava, e dificultava a respiração da criança. Quando Solange foi finalmente derrubada pelo sono da embriaguez, e o largou, já era noite. Isaque estava encolhido no pé de sua cama abraçando as próprias pernas enquanto as lágrimas escorriam sem parar de seus olhos arregalados e fixos na mãe, que dormia como um animal cansado.

Isaque não dormiu. Apenas tremeu, encolhido no mesmo canto, por toda a noite. Por vezes, um calafrio o assaltava, e como um choque elétrico, fazia com que ele estremecesse a ponto de seu corpo todo balançar. Olhava para a mãe inerte no chão e perguntava-se o que fez para merecer aquilo. Perguntava-se por que seu pai o deixou. Por que seu pai não estava ali para protegê-lo? Olhava para o crucifixo na parede e perguntava-se por que Jesus permitia que aquilo acontecesse com ele. Mas ninguém respondia. Como resposta, apenas o canto do vento e os sons da noite.

O dia amanheceu e Solange acordou. Levantou-se do chão sentindo a boca amarga e o corpo dolorido. Era o efeito da bebedeira do dia anterior. Como se não fosse a mesma pessoa da noite passada, olhou para o filho sentado ao pé da cama:

__ Vai ficar sentado aí me olhando igual a um pateta? – disse ela – Vai tirar essa roupa de escola e vem tomar café.

Como muitas crianças que sofrem dentro de casa, Isaque encontrava na rua e na escola a ternura que não recebia no lar. Era também sua hora de ser terno e carinhoso com alguém, já que por sua mãe era-lhe impossível qualquer sentimento que não o medo. Todas as crianças e adultos da vila gostavam dele. Uma criança doce que despertava a afeição até da moradora mais estranha do lugar. Dona Iara, a mulher que morava na beira do rio. Era conhecida e respeitada por suas habilidades de curandeira, por sua grande capacidade de usar as plantas para curar muitas enfermidades.

Era uma senhora amigável, mas também despertava neles um certo temor. Tinha uma história de vida triste. Ficou viúva ainda jovem, pouco antes de descobrir que estava grávida. Não tinha parentes e ficou assustada com o futuro que a aguardava. Uma jovem sozinha e com uma criança para chegar. Enquanto sua barriga crescia, ela amenizou a solidão sentada em sua cadeira de balanço, cantando para o filho que ia nascer e que era seu companheiro naquele momento.

Entretanto, tudo acabou numa noite em que sua casa foi invadida por ladrões que a surraram barbaramente deixando-a sangrando caída no chão de casa. Arrastou-se para fora e foi socorrida por um vizinho que passava de manhã indo para a roça. No hospital, descobriu que tinha perdido tudo. Tinha perdido seu bebê e estava sozinha na vida.

Todas as noites do mundo não seriam suficientes para conter as suas lágrimas.

O que os outros moradores não sabiam é que a dor cedeu lugar à indignação e ela fez um acordo, um pacto com uma alma muito antiga que lhe prometeu alívio de sua dor. Ela não procurou a vingança, mas pediu para aprender a curar as dores alheias. Assim ia sufocando a própria dor.

Ainda assim a ignorância dos moradores fazia com que evitassem a beira do rio, perto de onde ela morava. Mesmo quando precisavam de seus serviços de curandeira ou parteira chamavam-na de longe. E ela sempre os atendia.

Naquela manhã após a última surra noturna uma novidade surgiu.

Solange bebeu mais, com o dia claro, e foi procurar o filho na rua. Ele brincava com as outras crianças. Ao vê-la se aproximando, trôpega e com a expressão diabólica de ódio na face, o menino correu, mas caiu e foi alcançado. __ Mamãe, não... – pediu ele – mas não teve tempo de continuar. A surra brutal começou ali mesmo. Envergonhado por estar apanhando na frente das outras crianças, ele tentava se desvencilhar sem sucesso. As mãos de sua mãe pareciam duas tenazes a segurar-lhe com raiva e força.

Foi nesta hora que passou Dona Iara. A velha senhora puxou Solange pela gola do vestido, atirando-a no chão, livrando Isaque do enlouquecido ataque. As outras crianças ficaram surpresas com a força demonstrada pela curandeira, e exclamaram em uníssono diante da cena. Ainda no chão, Solange despejou sua cachoeira de desaforos.

__ Sua vaca seca que não conseguiu parir um filho na vida... Desgraçada que morre de inveja dos partos que faz... Você quer se meter na minha vida com meu filho? Tem esse bucho vazio que não segura uma vida, e quer me ensinar a ser mãe? Volta pra sua beira de rio, sua bruxa oca! Tá se achando melhor do que eu? Pois eu pari – disse, batendo no próprio abdômen, e com os olhos esbugalhados – Eu pari!

A raiva faiscava no olhar de Iara. Seus lábios tremeram de indignação. Suas mãos gelaram. Há muito que não sentia emoções como aquelas que invadiam seu espírito naquele momento. Sabia que era mais poderosa do que as palavras duras de Solange. Mas aquelas palavras acharam uma rachadura em sua fortaleza. Iara chorou uma lágrima única, mesclada de ódio e tristeza. Era como se estivesse novamente diante dos ladrões que a espancaram e mataram seu bebê.

Depois de tantos anos de uma vida longa, depois de tantas transformações por que passou, depois de tanto conhecimento sobre as coisas invisíveis, ela chorou por aquela velha dor. Em silêncio, como se choram as dores mais doídas.

Solange, agora tentando ficar de pé sem tropicar, ria e zombava de seu choro. Iara voltou-se para Isaque e acariciou-lhe a cabeça. O menino ainda resfolegava pelo choro recente e pelo medo. Iara, entretanto, no instante em que o tocou teve a mente tomada pelas lembranças do garoto. As surras noturnas quase diárias, a constante embriaguez da mãe, a indiferença de Solange quando estava sóbria, a saudade do pai, a humilhação, e um sentimento muito perigoso que estava começando a surgir: a confusão por tanta injustiça estava se tornado uma falta de vontade de viver. Isaque estava desistindo da vida.

A ternura que encontrou no olhar da criança deu-lhe uma resolução. Iria acabar com o sofrimento dele naquela noite. Não deixaria passar daquela noite.

A ventania pontual soprou sobre a vila levantando poeira naquela manhã.

Tudo parecia igual, mas nada continuaria como sempre foi. A curandeira deixou-os ali.

Naquela noite, a embriagada Solange não estava conseguindo achar seu saco de pancadas. Isaque não estava em casa. Ela o havia procurado por toda a casa e pelo quintal entre as árvores, sem encontrá-lo. Então gritou, xingou, praguejou, e nada do menino. Só ouvia aquele maldito barulho de água do lado fora. O barulho começou ao fim da tarde e se mantinha insistente. Solange esteve no quintal procurando pelo filho, mas não viu nada que pudesse produzir aquele som.

Umas duas horas antes, quando Solange ainda estava iniciando a bebedeira daquela noite, Isaque começou a ouvir uma música que o encantou. Parecia vir de todos os lados. Parecia estar apenas dentro de sua cabeça. Mas era uma música maravilhosa, como ele nunca tinha ouvido antes. Quando a música diminuiu em sua cabeça, ele percebeu que ela estava vindo da rua, mas ao chegar em frente de sua casa, a música afastou-se dele novamente. Sentiu que não podia deixar de ouví-la. Era muito bonita.

Naquele estado de encantamento, o menino não ouvia as outras crianças que o chamavam para brincar, ou os adultos que perguntavam o que estava acontecendo. Ele apenas seguia a música enquanto ela se afastava dele.

A música o conduzia para a beira do rio.

Dentro de casa, Solange estava cansada, sofrendo da exaustão da embriaguez e se deitou. O barulho de água não a deixava adormecer. Imaginou que o filho poderia estar escondido na casa de algum vizinho e que no dia seguinte iria procurá-lo.

Estava deitada pensando na surra que daria em Isaque ao encontra-lo quando sentiu um toque gelado em sua perna esquerda. _Meu Deus!-- pensou ela – Uma cobra subiu na minha cama.

Mas o filamento gelado subiu por sua perna enrolando-se nela, fazendo com que ela se arrepiasse toda. Tamanho susto fez com que sua embriaguez desaparecesse quase que por completo. Ela sentiu uma movimentação embaixo de sua cama. Sabia que não era Isaque, pois tinha verificado toda a casa, e obviamente, seu filho não tinha tentáculos gelados. Com o coração disparado e a respiração pesada, esperou para ver o que sairia de debaixo de sua cama. Com uma careta no rosto, aguardava, sentindo os toques no estrado, embaixo do colchão.

Qual não foi o seu horror quando viu sair de debaixo da cama, uma mão que lembrava uma mão humana, mas coberta com uma película viscosa e um pouco esverdeada, como os corpos de alguns répteis. Logo em seguida, surgiu uma cabeça de mulher. Ou de algo parecido com uma mulher.

Os dedos da estranha mão começaram a se alongar, formando finos tentáculos que enrolaram em seu pescoço, levantando sua cabeça. Os tentáculos que envolviam sua perna, agora já haviam imobilizado seu corpo. Os dedos da outra mão alongaram-se também e entraram na sua boca.

Ela estava apavorada, mas não conseguia gritar. Conseguiu apenas emitir sons abafados, antes que a ânsia de vômito se instalasse. Mas ela não conseguiu vomitar, pois os dedos daquela visagem entupiam-lhe a faringe. Os tentáculos desceram-lhe garganta abaixo e perfuraram rapidamente a parte interna de seu tórax causando-lhe dores enlouquecedoras. Tentava em vão se debater, pois estava imobilizada pelo primeiro tentáculo que surgiu.

Antes que começasse a sufocar, os tentáculos dentro de seu peito enrolaram-se ao redor de seu coração apertando-o. Ainda pode reconhecer naquela cabeça, as feições da curandeira.

Iara sorriu enquanto apertava aquele cruel coração de mãe, extraindo dele a vida que não soube merecer sua sagrada continuação.

A lua brilhava forte no céu daquela noite, e o vento fazia ondular a superfície tranquila das águas do rio.

Quem olhasse atrás da casa da velha curandeira, veria uma estranha mulher mergulhando nas águas do rio, levando o menino Isaque em seus braços.

Veria, sob a intensa luz da lua cheia, que o menino adormecido abraçava docemente sua mãe adotiva.

Quem olhasse o rio naquela noite, veria o pequeno Isaque desaparecendo nas profundezas escuras, levado nos braços de sua mãe d’água. Indo para longe de toda a crueldade e de toda a dor.

FIM

TEMA: CRIATURAS FANTÁSTICAS.

Agnaldo Souza
Enviado por Agnaldo Souza em 09/11/2015
Reeditado em 13/11/2015
Código do texto: T5442510
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