A Tempestade Parte III

Capítulo III

O aroma do cigarro e as pequenas nuvens de fumaça. A nicotina. Os dedos e os dentes amarelados. Quase busca um beijo em outra boca estragada. Morder a língua é sempre uma tragédia dolorosa. Aquele gosto ferruginoso, de sangue.

— Por que está cortando as pontas dos dedos?

— Assisti em um filme que isso faz não deixar digitais.

— Mas e quanto ao sangue?

— Que os vampiros decidam! Hahahaha!

A máquina lhe concede outro bicho de pelúcia. Pensando em todos os espirros que isso irá desencadear, deve valer a pena. Cada ano as crianças nascem com mais problemas. Deve ser por que antes tinham mais imunidade. Mas o discurso higienista não favorece muito a sujeira. Todos feito cobaias. Presos em algum cubículo e exposto a efeitos que desconhece. A vida é essa experiência. Cobaias que vão substituindo outras cobaias... que vão substituindo outras cobaias...

— Já visitou aquele loja de LP's?

— Eu pego o que quero na internet, cara.

— Mas a qualidade sonora...

— Prefiro gastar a grana fazendo outras coisas.

— Você é um pervertido.

— Cada um com seus vícios.

Os bancos cobertos de uma fina camada de poeira.

— Olha aquelas cães trepando.

— Vamos jogar um balde de água neles.

— Deixe os coitados se divertirem.

— Mas na frente de todo mundo?

— Que bom que eles não precisam se preocupar com esse moralismo.

Abriram as portas da casa de espetáculo e todos sabem que é o dia e o horário da limpeza. Na noite anterior, estava povoada de gente extravagante, com copos de bebidas. A acústica nunca abafa totalmente o som. Essa noite foi mais refinada, com um concerto de Jazz. O funcionário ainda tenta tirar a mancha de sangue que restara como herança da briga. Dois homens e uma mulher, foi o que disseram. Garrafa espatifada na cabeça do sujeito e a guria saiu com suas pernas de fora a procura de uma terceira companhia. Os eventos parecem se repetir, como uma apresentação rotineira em que os atores são modificados, embora muitos tenham aqueles mesmo trejeitos característicos, que fazem com os que já se acostumaram com a cena, sentir aquele tédio comum que a experiência proporciona.

— Precisa de um pouco de adrenalina.

— Não vai ser você que irá me proporcionar isso.

— Não sabe do que está falando.

— E quem sabe?

— Vamos beber e sair dirigindo por aí.

— Essa é a sua noção de fortes emoções?

— Você fala como se tivesse feito algum esporta radical ou matado alguém.

— Vai saber.

— Assistiu ontem no noticiário aquele lance de terrorismo?

— Fui saber disso hoje cedo.

— Imagina se fosse aqui.

— Já temos merda suficiente.

— Faz tempo que não vou a igreja.

— Nunca me fez falta.

— Você me inspira.

— Vamos sair logo daqui antes que eu desista de beber.

Chuveiro ligado e a água caindo sobre o corpo. Tiros disparados próximo a um bar. No parque de diversões, a menina escuta o som da engrenagem enferrujada do brinquedo e aquilo a deixa com um frio maior na barriga. A missa segue e a senhora da segunda fila pensa que essa noite com toda a certeza o padre está sem nada por baixo. Diversas vezes foi embora pra casa e imaginou como era o pau do padre. Meninos se divertem na chuva, sentados dentro de uma valeta para que a força da água os empurre ladeira abaixo.

— Onde está o Juízo?

— Deve estar na chuva de novo.

— Canso de lhe pedir para não fazer essas coisas.

— Ele nunca obedece.

— Fico imaginando no dia que isso vai resultar em uma tragédia e ficaremos sem o Juízo.

— Relaxa e vem terminar de assistir o jogo comigo.

Dr. Petros está sendo solicitado na ala de cardiologia. Um senhor idosos tentar arrancar a sonda, espalhando urina pelo quarto, com enfermeiras em volta dele, dando broncas. No andar inferior uma garotinha segue no seu 54º dia de internação. Enfermeiras dividem o lanche próximas a mesa de operação, conversando sobre o novo residente.

— Você viu a bunda dele?

— Não vi apenas a bunda.

— Você é mesmo uma piranha.

— Sou ligeira.

— Meninas, preciso de vocês aqui.

— Sim, doutor. — As três falam em sincronia.

A cirurgia segue. Outro acidente automobilístico com condutor alcoolizado. Os casos aumentam a a cada dia.

— Essa legislação é brincadeira.

— Sempre mandam carne nova pra gente.

— Dá vontade de nem operar esse filho da puta.

— Mas o dinheiro por cada cirurgia.

— Isso sim me motiva.

— Vai viajar de novo ao exterior?

— Sempre que posso... esse país de terceiro mundo me enoja.

— E eu que pensava que nem terminaria a graduação.

— E hoje está com esse puta BMW parado aí na frente.

— Acho que também vou pro exterior esse ano.

— Vamos acabar logo aqui e tomar um café.

Em algum banheiro público próximo a rodoviária, uma pia transborda por estar entupida com papel toalha.

— Você viu essa notícia?

— Me passa logo esse jornal que o papel aqui acabou.

— Caba logo com isso aí que o ônibus não demora sair.

— Nunca mais como esses salgados de rua.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 15/11/2015
Código do texto: T5449399
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