TRILHOS DE SANGUE (PARTE 04) - FINAL

“- Onde estou, e por que não sinto o meu braço esquerdo?” – Pensou Marcos, que deitado ia aos poucos abrindo os olhos.

- Ele acordou doutor, venha ver, ele está abrindo os olhos! – Sibilou uma voz feminina ao seu lado.

Ao descerrar os olhos, uma brancura onipresente lancinou-lhe a cabeça. Tentou levar as mãos até seus olhos, mas algo o fez parar.

- Minha mão esquerda, onde ela está? Meu braço, vocês arrancaram meu braço! Socorro, alguém me ajude! – O menino saltou da cama desesperado. O suporte de soro foi ao chão causando grande barulho.

- Calma! Se acalme, por favor, você está em um hospital, estamos aqui somente para te ajudar! – A moça tentou detê-lo, mas em vão. Outras duas garotas, seguidas de um senhor alto e obeso entraram no quarto, e só então conseguiram fazê-lo parar de se mexer.

Sua visão estava voltando, e tudo começava a fazer sentido. Apesar de ainda muito confuso, Marcos agora tinha uma certeza, acabara de ser contido por três enfermeiras e um médico. “– Que médico gordo.” – Pensou.

Um menino aleijado em uma cama até poderia ser uma cena triste em uma ocasião comum, mas após tudo que passara, Marcos estava feliz. Sentia-se confortável com a hospitalidade e segurança do hospital. O menino loiro, sentado no leito, tomava uma sopa quente quando dois policiais entraram no aposento. Ambos de porte mirrado, que se não fosse pela farda, provavelmente passariam despercebidos por qualquer transeunte. O da esquerda parecia mais velho, ele tinha um bigode bem escuro à face, enquanto o seu companheiro, era visivelmente o inexperiente aprendiz.

- Menino, desculpe incomodá-lo, mas precisamos de algumas respostas. Conte-nos sobre sua família, e como foi parar naquele lugar tão longínquo, no meio do nada. – Indagou um dos policiais. Porém, Marcos não estava preocupado com seus pais, afinal sempre foi um garoto independente, mas sentiu uma fisgada em seu coração ao lembrar-se de Jhonatan, o menino de pele escura e cabelo crespo que voara do trem, e poderia estar caído em algum canto inconsciente.

- Jhonatan! Meu amigo, ele ainda está lá! Vocês precisam ajudá-lo, há um casal de velhos loucos, eles tentaram me matar, e se encontrarem meu amigo, vão assassiná-lo! Por favor, ajude-o! - Assim que finalizou o pedido, o policial veterano acionou seu rádio, mandando que viaturas fossem verificar o local.

- Não se preocupe criança, vamos achar seu amigo. Eram apenas vocês dois? Por favor, conte tudo, precisamos saber o máximo. – Disse o jovem fardado tentando ajudar.

“- Criança?” – Pensou. Marcos contou tudo para eles, não escondeu nenhum detalhe. Relatou sobre o modo como viajavam em cima dos vagões, falou de João todo costurado, ensanguentado e amarrado a uma cadeira, e não se esqueceu dos velhos, principalmente como rasgou a jugular de um dos malditos.

Algumas horas se passaram após a conversa. Marcos continuava deitado na cama do hospital, mas dessa vez, conversando com seus pais que já estavam ao seu lado. A mãe do menino era de perfil faladeira e preocupada, típica protetora. Já o pai, um alemão alto de poucas palavras, e que por qualquer razão emocional se tornava rubro como um filé de salmão. A conversa da família foi interrompida pelo médico gordo que o segurara horas atrás. Ele chamou seus pais para conversarem fora do quarto, que obedeceram. Marcos olhava inquieto o médico e seus familiares pelo vidro da porta que os separavam. O policial de bigode também estava lá.

- Ei! Vocês, por favor, me contem! Acharam meus amigos? – Gritou Marcos. Porém os quatro nem deram bola.

Nesse momento, o conforto do hospital já não era suficiente. Ele precisava saber o que estava acontecendo. As feições dos quatro, enquanto falavam, eram horríveis. Marcos não fazia ideia, mas os policiais não haviam encontrado vestígio dos velhos no local. Apenas um trem tombado por troncos, que na visão deles, algum engraçadinho haveria de ter colocado. Além disso, os agentes encontraram um casarão abandonado, que aparentemente estava desocupado há anos.

- Mas meu filho não costuma mentir. Se ele disse, é porque viu algo. – Disse a mãe desesperada sob o olhar sereno do pai.

- Senhora. – interrompeu o médico – Não estamos dizendo que ele está mentindo, mas o menino pode ter distorcido um pouco a realidade, é muito normal nesses casos. Até porque, ele perdeu muito sangue.

- Mas como ele pode ter inventado... E os amigos dele? – Disse olhando para o homem fardado.

- Só vamos saber a história verdadeira quando os encontrarmos, e nós estamos trabalhando nisso – afirmou.

- E agora, o que devemos fazer? – Perguntou o pai.

- Tirem umas férias. Faça-o esquecer de tudo que passou. Verdade ou não, ele não merece sofrer mais por isso. – Disse o policial olhando para o médico, que consentiu com a cabeça.

Marcos e sua família resolveram se mudar para uma cidade distante da que viviam, onde ficariam mais próximos de outros familiares. O menino continuava tendo pesadelos durante as noites, e precisou frequentar uma terapeuta todos os finais de semana. Entretanto, aos poucos sua vida estava voltando ao normal. Já sorria normalmente, e não tinha mais ataques de choro quando alguém comentava o assunto. Certa manhã, Marcos estava tomando café sozinho na cozinha, quando sua mãe desceu as escadas correndo e foi até ele com uma faceta transbordando alegria.

- Marcozinho da mamãe, eu tenho uma surpresa, se prepare! – Disse eufórica, como se estivesse falando com um bebezinho, ou um filhotinho de cachorro.

“- Será que acharam Jhonatan?” – Pensou, mas não disse.

- Você vai ganhar um irmãozinho! – explodiu a mãe, que viu Marcos arregalar os olhos.

- Que bom, mas isso é ótimo! Obrigado mãe! Puxa vida, e o pai já sabe?

- Não, e por que você não vai lá em cima contar para ele? – o menino deu um largo sorriso e correu em direção as escadas, e enquanto subia, pensou:

“- Finalmente as coisas estão voltando ao lugar”.

Alguns anos se passaram, e Mirna, irmãzinha de Marcos, com um chapéu pontiagudo batia as mãozinhas minúsculas. A menininha estava completando dois anos de vida.

- Palabéns pla Mina... – Todos riam enquanto ela cantava, ou ao menos tentava.

- Trrrrrimmm. – Marcos olhou ansioso para a porta. O jovem esperava que o carteiro aparecesse logo com o presente que comprara na internet para a irmã.

- Pessoal, eu atendo! Um minuto Maninha, guarde o “viva” pra que eu possa ouvir também. – Disse Marcos rindo.

Ao abrir a porta, o carteiro irrompeu um largo sorriso, mas de alguma forma, uma pouco assustador.

- Dê os parabéns à pequena Mirna por mim! – Disse, entregando-lhe a correspondência, e o pacote que esperava.

- Obrigado... senhor. – Se assustou um pouco pelo carteiro fazer tal pedido. – Cidade pequena é difícil de esconder as coisas, até mesmo o dia do aniversário. – Pensou.

Antes de voltar para a festa, subiu as escadas e colocou o pacote em cima da cama da irmã.

- Pessoal, não comam todo o bolo! – Gritou enquanto descia, mas percebeu a mãe aflita no telefone.

- Marcos, os policiais acharam o corpo do João. – Antes que ela terminasse de falar, o adolescente paralisou.

O corpo, ou pelo menos o que restara dele, foi achado jogado em uma árvore, próxima a sua antiga casa. A cabeça, com os olhos e boca costurados, suplantados rente ao tronco. Seu corpo mutilado encontrava-se dependurado. A barriga estava aberta, e suas tripas passavam pelos galhos como se fosse um enfeite natalino. Já a gordura amarelada, misturada com sangue, estava seca, e não mais respingava ao chão. Marcos e sua família, com exceção de Mirna que ficara no carro, observaram a cena horrenda através de fotos na delegacia.

- Sinto muito Marcos. – Disse o policial, o mesmo inexperiente que o acompanhou no hospital após a tragédia. Ele parecia bem mais maduro dessa vez.

- Tudo bem. – Respondeu.

Ao retornarem para casa, o clima fúnebre parecia ter voltado.

- Gente, tudo bem, sabíamos que era difícil encontrarem ele com vida. – Disse o jovem.

- Sim querido, tenho certeza que teremos notícias melhores com o Jhonatan. – Marcos fez que sim com a cabeça.

Mirna olhava para ambos, ela estava curiosa sobre o que conversavam, e para não gerar pânico na menina, o irmão tratou de reanimar as coisas.

- Maninha, por acaso você não quer saber o que eu comprei para você de aniversário?

- Quelooo!

- Então corre pro seu quarto que coloquei a caixa surpresa em cima da ca... – A menininha nem esperou que Marcos terminasse de falar e subiu correndo as escadas, a cada dois degraus, tropeçava em um.

- Acho que ela vai gostar – Disse o adolescente olhando para mãe. – É a boneca que ela queria do comercial.

- Então ela não vai gostar, ela vai amar!

- Haaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!! – Um grito de Mirna partiu do andar de cima.

Marcos e seus pais subiram correndo desesperados as escadas, e foram até o quarto onde ela se encontrava. A menininha chorava e soluçava, ela estava visivelmente em pânico, encostada num dos cantos da parede.

- O que foi querida? – perguntou a mãe.

Enquanto os pais a consolavam, o adolescente se aproximou da caixa. Lá estava a cabeça putrefata e gélida de Jhonatan, com a boca aberta e duas fendas negras no lugar dos olhos.

Marcos saltou para trás, e quase caiu por não ter o braço esquerdo para se equilibrar. Porém, voltou para perto ao perceber que havia um bilhete no local onde seria a língua. Com sua mão direita trêmula, pegou delicadamente o bilhete, que estava escrito em sangue, e leu:

“- Resta mais um porquinho”.

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Do outro lado da rua um carteiro magro, e aparentando uns 40 anos, encarava com semblante doentio a residência do menino aleijado. Ele segurava firme uma foto em preto e branco dos seus pais, um lindo casal de velhinhos simpáticos.

Fim?