Cabeça De Vaca

Paramos logo depois que saímos daquela estrada trepidante, a van que estávamos era confortável, mas agora estava se tornando uma péssima ferramenta de tortura. Eramos em cinco: Eu, Elise, Thomás, Yasmim e o gordo do Jonas que roncava nos bancos vagos atrás de nós. Thomás estava ao volante e Yasmim a seu lado, e no miolo da van estava eu e Elise enlaçados no curto banco.

- Ótimo lugar para se morar esse tal de "Bruno"! - Dizia Thomás no banco da frente enquanto se apoiava no vidro de sua janela.

- Ninguém mandou você se oferecer para dar carona. Grande senhor caridoso! - Disse, ironizando, enquanto atrapalhava o sono da doce Elise em meu colo, pois o cinto estava amassando minha bunda.

- Ahh... Nem vem! Você também daria Lucas. Depois que você se aquietou, você virou o "senhor bons atos". Tudo para encantar sua doce mulher...

- Tá ok. Acalme-se Thomás, não precisa descontar na gente. - Tentei amenizar mas não foi muito efetivo. Thomás estava estressado.

- Sim. Precisa relaxar. Afinal estamos indo para uma festa. - Dizia Yasmim levando a mão na face do namorado, que a rejeitou em um gesto rude.

Elise agora parecia despertar de seu longo cochilo, ela estava empoleirada em meu peito, na qual havia babado pequenas gotículas de saliva. Ela gemia enquanto levantava sua cabeça.

- Lucas...

- Que?...

- Já chegamos...?

- Não... Estamos aqui na encruzilhada. Aonde o tal do Bruno mora.

- Vamos demorar...?

- Olha... Depende. Se esse tal de Bruno chegar rápido, o estressado aí do Thomás, também virará o acelerado Thomás.

Ela riu enquanto se ajeitava no pequeno banco ao meu lado. Seus cabelos ruivos escuros que agora eram negros davam pequenos lampejos na rarefeita luz da apertada van. Tínhamos a doce trilha sonora do ronco do Jonas para nos relaxar.

- Lucas! Lucas! Acorda esse gordo! - Rosnou Thomás virando-se.

Apenas virei-me e dei um soco, que reproduziu um baque surdo nas gorduras saturadas de sua barriga flácida, e que logo pode-se ouvir as dúvidas de um acordado repentinamente, e também sua retomada de consciência.

- Aonde este eu...?...!?... Cadê..? ... Onde estou? - Murmurava ele, já sentado no banco. Procurava seus óculos. Encontrei-os debaixo do banco de Elise e o alcancei.

- Te acalme Jonas. Estamos aqui na encruzilhada esperando o Bruno, que mora aqui perto.

- Ahh... - Dizia ele concluindo que havia entendido. Desde o canto vago de sua boca até a sua papada era possível ver um rastro de umidade, ele realmente havia caído de boca na cama, quer dizer, no banco.

- Mas que merda! - Resmungava Thomás no banco da frente. - Desse jeito vamos nos atrasar! - Deu um grande murro no volante.

- Ei amor. Relaxa. Ele logo estará aqui. Ele não deve demorar. - Falava Yasmim acalmando-o.

- E eu aqui pensando que ele já estaria aqui quando nós chegássemos, mas que bosta ele ter de morar aqui! Não sabia que era tão longe! - Continuou o irritado.

- Você não sabia? Ué. Como viemos parar aqui então? Você se guiou pelo que? - Indaguei.

- Pelo bilhete que ele me deu. Com ele fui seguindo as placas que ele mencionou, mas não pensei que fosse tão longe. Ele mesmo disse que era perto da rodovia.

- É. Mas pelo jeito não era tão perto assim. - Manifestava-se Jonas ao fundo do carro. Agora com os cabelos ajeitados e boca limpa.

- Ele não deve demorar. Só temos que ter paciência e ser otimistas - Disse Elise enquanto abria um vago sorriso. Pelo jeito ela era a única ali que não estava tensa. Pois Thomás estava tenso por estar se atrasando para festa, Yasmim estava tensa por que Thomás estava tenso, eu estava tenso porque estava sendo chateado por Thomás e Jonas estava tenso apenas por estar tenso.

Realmente, ali era um bom lugar para nos deixar mais tensos, pois a encruzilhada estava sombria, e nada podia ser visto através do manto da escuridão; o único ponto no qual podíamos nos ligar era no canteiro existente no centro da encruzilhada, que era iluminado vagamente pela lua que se escondia em meio a nuvens nubladas. O lugar vertia medo e desconfiança...

Thomás agora um tanto mais calmo, ligou o rádio da van. Estava tocando "Rock Me Baby" de B.B King na estação 106, e que com sua guitarra conseguia harmonizar um pouco o ambiente. Senti a mão de Elise entrar no mesmo ritmo que a música, ela era a única que estava gostando, pois nem o medo podia afetar sua inocência. Longos tempos se passam.

Fazia mais de meia hora que estávamos ali. E só conseguíamos aguentar a impaciência por causa do rádio.

Mas agora o sinal estava falhando, e começou a desparecer aos poucos, até que sumiu.

Sem rádio.

- Mas que merda!... – Dizia Thomás.

De repente um baque forte.

- O que... foi isso? - Disse Yasmim, parecendo nervosa através da voz pois mal se movia.

Esse som pareceu vir de uma distância longínqua, pareceu ser forte como uma explosão, o chão vibrou.

- Meu deus. O que pode ser!? - Falou Jonas olhando através da janela.

- Olha! - Exclamou Thomás que estava com a cara cravada no vidro da janela. - Uma claridade mais ao fundo! Deve ser o lugar da onde o som veio!

Rapidamente todos olharam através da janela, e viram bem ao fundo, entre algumas árvores que uma construção estava pegando fogo.

- Acho que alguma coisa deve ter explodido lá. - Disse.

- Possivelmente. E também a alta possibilidade de ser aonde o Bruno mora. - Continuou Thomás.

- Sim.

- Tenho que ir lá verificar.

- O que!!?? Você ta maluco Thomás!? Sair por aí nessa noite. Sendo que uma casa acabou de explodir em um lugar isolado que nem esse? Você ta é louco! - Bradou Yasmim contra Thomás. - Pode ser até um assassino!

- Hahahahaa!! Vê se para de ver esses filmes Yasmim! - Riu Thomás.

- Mas é verdade Thomás. Pode ser perigoso. Uma explosão não é algo tão comum assim. - Falei tentando derrubar o egocentrismo pseudo-másculo de Thomás.

- Olha em vários pontos é muito comum sim. Muitas vezes o pessoal de fora deixa o botijão de gás perto do fogão a lenha, e isso gera muitas das vezes as explosões que geram o incêndio.

- Isso é verdade... - Concordou Jonas, que de nada opinava, mas só alimentava a vontade de Thomás de se matar.

- Mesmo que seja, não é sempre que acontece isso Thomás. - Respondeu Elise, tentando fazer sua parte na resistência contra Thomás. - Não vá.

- Obrigado pela preocupação de vocês, mas aqui esta um tédio e eu estou querendo catar o merda do Bruno para nós irmos logo para essa festa. Então eu já estou decidido que eu vou sair e ver o que diabos aconteceu com aquela casa. Bruno deve estar lá. E também - Dizia ele enquanto levava a mão em direção ao porta luvas - Estou preparado para assassinos também.

De lá ele retirou uma pistola 9mm. Todos se assustaram.

- Thomás... Porque você guarda isso aí?... - Falava Yasmim olhando assustada para a arma, enquanto ele conferia o pente.

- Defesa pessoal. Não esquenta. Tenho licença. - Ele sorria.

- Então pelo jeito não tem como te impedir Thomás? - Perguntei.

- Não.

- Então faça o que quiser.

- Ta bem. Já volto. Vou lá conferir. - Engatilhou.

Abriu a porta e partiu em meio a escuridão, Yasmim gaguejou, estava preocupada com Thomás e sua audácia, nós também estávamos, mas nada podíamos fazer. Ficamos o observando até ele desaparecer. Ele usava a lanterna do celular, e seguia em direção ao lampejo aos fundos.

Elise pressionou-me, estava nervosa.

- O que houve? - Disse.

- Tenho medo...

- Medo do que? Ele tem um 9mm. Um homem com uma 9mm não precisa ter medo

- Estou com maus pressentimentos...

- Não se preocupe... Tudo vai ficar bem... - Acariciei seus cabelos para acalma-la, o que pareceu dar certo.

Um longo silencio se seguiu depois que Thomás saiu. Yasmim estava muito tensa, não sabia o que fazer.

Os minutos passavam-se e nada de Thomás retornar, o lampejo ainda era visto ao fundo na campina. Yasmim abre sua bolsa, era possível ver seu nervosismo pois sua mão tremia, de lá retirou seu celular.

- Esta sem sinal... – Concluiu ela tristemente. – Será que ele vai demorar...?

- Não se preocupe Yasmim. Logo ele estará aqui. – Falava Elise, que também estava com o celular em mãos.

- Elise. Seu celular tem sinal? – Perguntou Jonas ao fundo, fazendo luz com seu aparelho.

- Não.

- E o seu Lucas?

Retirei-o de meu bolso e conferi, estava sem sinal.

- Também não... Ei! Ouçam! Fiquem Quietos!

Leves sons de passos podiam ser ouvidos em alguma direção.

- Será que é o Thomás? – Perguntou Yasmim.

Os passos se aproximavam, e agora podíamos notar em que direção eles vinham; vinham da dianteira da van. Então de repente batidas do lado esquerdo, a da grande porta rolante. As batidas se seguiram, nós exitamos, estávamos com medo, mas Jonas tomou coragem e se levantou para abrir.

- Não... abra... – Sussurrou Yasmim.

E em um impulso Jonas a abre. E lá estava Bruno.

- Bruno!? – Indagou Yasmim.

- Sim! Eu! – Falou Bruno em um sorriso.

- Como assim você!? Cruzou caminho com Thomás?? – Perguntou Yasmim ansiosa.

- Não. – Ele continuava com o sorriso...

- Ele saiu para ver o incêndio naquela casa aqui perto. – Continuei.

- Que casa? E que incêndio? – Perguntou Bruno, ainda sorridente, estava escuro e mal podíamos ver sua face.

- Aquela... – Apontei para fora, e não havia nenhuma claridade pra aqueles lados, nenhum lampejo, nada.

- Mas... Até a pouco... Ainda tinha... – Disse Yasmim começando a ficar assustada.

- Vocês é que estão loucos! Ou será que não... – Falou ele rindo – Mas emfim... Deixe-me entrar... Ops... o degrau é muito alto...

- Deixa que eu te ajudo... – Disse Jonas se levantando para ajuda-lo.

A escuridão era densa, e mal podíamos ver a fisionomia de Bruno, mas quando Jonas segurou sua mão e o puxou dando assistência em sua subida, a luz da van encontrou seu corpo, e todo o lado esquerdo de sua roupa estava manchada de sangue, pingos por toda a parte, o vermelho da morte havia espirrado nele. Jonas só percebeu depois que ele já estava com os dois pés dentro da van; Bruno ainda estava sorrindo; e com sua mão livre revelou uma faca, a qual golpeou duas vezes Jonas, as duas na barriga, sendo que a segunda ele a enterrou em seu estomago. Elise gritou, Yasmim gritou. Jonas caiu para trás em seu banco traseiro, e eu empurrei Bruno com toda força que pude para fora do veiculo, podendo ouvir o baque de seu corpo ao encontro do chão de pedra. Bruno ainda sorria. Fechei rapidamente a porta e a tranquei.

- Jonas!!!!!!!! – Berrou Elise.

Virei-me rapidamente para trás do banco e vi Jonas gorfando sangue para o lado oposto do nosso banco. Bruno batia com os braços na porta da van, ele ria, ou melhor, gargalhava ao lado de fora, tudo enquanto Jonas chorava no lado de dentro.

- Aguente aí amigo. Yasmim! Vê se no porta luvas tem um Kit de primeiros socorros! – Gritei, enquanto segurava a mão de Jonas.

- Não tem nada Lucas... – Falava ela enquanto se debulhava em lágrimas.

- Então me vê se tem um canivete!! – Berrei, meus olhos lacrimejavam.

Jonas gemia, e chorava ao mesmo tempo. Elise já estava com a mão na face, toda molhada de lágrimas. A boca dele escorria sangue, eu estava com medo de retirar a faca pois o sangue podia sair.

- Encontrou!!?

- Sim!... – Isso Thomás tinha naquela merda de van. Ela me alcançou. Peguei e rasguei o paletó de Jonas e a camisa. Pude ver o ferimento. A faca estava enterrada, e sangue saia pelos lados da ferida.

- Jonas! Terei que retirar a faca de sua barriga... Ok? – Tentei falar calmamente.

- Lu... Lucas... Não dá... Você sabe!... – Ele lacrimejava, mas estava tentando evitar o choro.

- É claro que dá! Seu gordo! – Pingos caiam em seu peito, pendendo de minhas pálpebras.

- Lembre-se... Da nossa promessa... Seu magrelo... Estou louco para ser enterrado de branco... Haha!... – Gorfou sangue para fora.

- Não fale porra!...

- É claro que falo...! Não se esqueça de sua parte..... Até mais amigo... Espero que tenha virgens no céu... – E então dando um vago sorriso seus olhos perdem a vida.

Ambas choraram. Eu obviamente também chorei. Elise me abraçou com toda força que tinha. Eu estava sem ação, elas também. Jonas estava morto... Morto! No banco atrás de nós. E ainda o psicopata do Bruno estava lá fora, e Thomás também estava lá, não sabíamos se estava vivo ou não. Ficamos longos minutos ouvindo os murmúrios do outro, nenhum de nós ousava olhar para trás, para o corpo de Jonas.

Ficamos eternidades em silêncio, com medo.

Yasmim após cessar bruscamente seu choro, vai para o banco de Thomás, e tenta dar a partida na van. Quando ela gira a chave da ignição, e aciona a parte elétrica do carro, os faróis dianteiros se ligam. E lá estava Bruno. Parado. Olhos mortos. Coração morto. Mente corrompida. E nervos estáveis. Ele estava a mais de cinco metros do carro, parado em meio ao canteiro da encruzilhada. Yasmim tentou novamente a ignição, ela estava tensa, o carro ameaçou, mas não ligou; novamente ela tenta, e novamente falha.

- Mas que merda!... Ele não quer ligar – Falava Yasmim em um tom melancólico.

Bruno estava agora agachado parecia emitir um curioso som, ele chamava algo; algo que nós temíamos ver. E do meio do manto da escuridão que nos cercava, apareceu um animal que nenhum de nós previra, uma vaca surgiu do breu, caminhando lentamente em direção a Bruno. Nunca ninguém saberá o que Bruno proferiu e nem como atraiu a vaca, mas só sabemos que ela ficou ao seu lado a esperar, talvez ela sabia, ou não, que Bruno tinha uma adaga do tamanho de um antebraço na suas costas, e que em um exímio movimento acerta a garganta da vaca. Yasmim engasga um grito e tenta ligar desesperadamente a van, que bruscamente se desliga, se apagando totalmente.

Ela caí para o lado e começa a chorar. Elise estava tão tensa que nenhuma lágrima de tensão a escorria. Eu estava com medo, medo do que a gente poderia ver, e medo do que ele poderia fazer. Depois de minutos, Yasmim lentamente se poê sentada no banco de Thomás, e dá a partida no veiculo, que não liga, mas os faróis acendem, revelando a mais perturbadora coisa que já havíamos visto. As nossas vagas noções de insanidade se converteram em um riso pequeno perto da imensa piada doentia que víamos, uma besta grotesca antropozoomórfica se apresentava em metades disformas. Bruno, ali, não parecia estar ali, pois sua face não era a mesma, mas sim a da vaca; ele estava vestindo a cabeça da vaca como se fosse uma máscara. O sangue da mesma, ainda escorria-se quente em sua camiseta que um dia havia sido branca, mas agora, havia tomado a cor escarlate de mais um soldado da loucura.

Em um curioso movimento leve, Yasmim desliga os faróis. Ela estava lenta, estranha, e vagarosamente se vira para trás. Eu e Elise, estávamos pasmos, mas Yasmim estava branca, não parcialmente branca, mas sim completamente; suas pupilas estavam dilatadas, seus olhos não eram mais verdes, mas sim negros; da mais estranha escuridão que ela já vira. E de repente eles se fecham.

- Yasmim!! – Gritou Elise. Yasmim havia caído para o lado no banco da frente, possivelmente, desmaiada.

Elise rapidamente pulou para os bancos da frente, e segurou Yasmim nos braços, sacudiu levemente.

- Ela desmaiou!?

- Sim... Eu acho... – Respondeu Elise, ela tremia, e balançava Yasmim para ver se ela acordava.

- Olhe a respiração. – Mandei, e logo Elise colocou seu ouvido perto das narinas de Yasmim.

- Sim. Ela respira. – Disse Elise olhando-me diretamente nos olhos, podia ver a angustia em sua expressão; angustia que me contraía.

Elise ficou segurando-a por alguns minutos, até que os olhos de Yasmim, tilintam vagamente.

- Yasmim...?... – Murmurou Elise em um tom melancólico.

Lágrimas correram dos olhos de Yasmim.

- Thomás... Thomás!... Aonde você foi!...? – Falava enquanto começava a chorar.

- Calme Yasmim... Calme. – Dizia Elise. Yasmim a abraçou com muita força, e chorava em seus braços.

Depois de uma hora Yasmim pareceu adormecer no colo de Elise, que acariciava seus cabelos. Estávamos aflitos, e Elise se demonstrou a mais forte de nós. A qualquer momento Bruno poderia fazer alguma coisa, como arrombar a porta da nossa van e nos matar, pois bem sabemos que um homem que tem força para serrar a cabeça de uma vaca em poucos segundos pode muito bem arrancar uma porta de um carro, e isso nós sabíamos.

Peguei o celular de meu bolso. Eram 1:39 da madrugada, eu tinha apenas 27% de bateria, e obviamente não tinha sinal. Estávamos ali naquele pesadelo fazia duas horas, mas que pareciam eternidades. Elise levemente colocou Yasmim no banco, que agora dormia profundamente, e voltou para os bancos de trás. Ela não disse uma palavra, apenas me abraçou, e chorou.

Elise adormeceu. Já haviam se passado horas. As duas dormiam, e eu não queria dormir, e nem conseguiria se tentasse, meus olhos estavam arregalados, e já estavam adaptados a escuridão. E a lua lá fora, parecia um sol fraco de cor azulada. Apesar da luminosidade da lua, eu mal podia ver, pois a escuridão ainda reinava na maioria. Novamente peguei meu celular, eram 3:50, e um toque de esperança se acende e minha alma, havia um ponto de sinal, apenas um, e eu rapidamente disquei o número da emergência, o qual nem sequer chamou, pois o sinal havia sumido novamente. Tive vontade de atirar o telefone contra a porta daquela merda de van, aquilo parecia uma brincadeira, ou uma piada, das mais perturbadas.

Yasmim por fim acordou, deve ter despertado por causa da luz de meu celular, ela levantou a mão e acendeu a luz da van. Seus olhos estavam inchados e seu cabelo um pouco revirado, sua expressão era triste, e convinha com o momento. Ela abriu o porta luvas e pegou uma garrafa d’agua, tomou vários goles, e me ofereceu, aceitei, e bebi até a metade, pude sentir a mesclagem de seu batom marfim escuro com sua saliva.

- Será que tem alguma coisa para comer? – Perguntou ela.

- Deve ter. Não tem aí na frente? No porta luvas?

- Não. Aqui não tem nada. – Respondeu virando a cabeça para ver.

- Então deve ter lá no porta malas... Lembro que peguei alguns sacos de salgadinhos. – Olhei para trás, eu sabia que teria que ir pegar, e para isso passar por cima do corpo de Jonas. – Deixa que eu pego.

Encostei Elise que dormia profundamente no banco dela, e me levantei. E vi o defunto Jonas, na mesma posição que eu havia deixado, ele estava do mesmo jeito, como se tivesse morrido momentos antes, e não a duas horas atrás. Fui rápido, apenas me apoiei no canto do banco perto dos pés de Jonas, e consegui alcançar os sacos de salgadinhos. Não foi tão difícil quanto preconizei, pois tentei evitar por completo minha visão de Jonas.

Peguei três sacos. Sentei-me, e dei um para Yasmim. Elise despertava, pelo jeito estava difícil dormir, alcancei um dos sacos para ela.

- Esta melhor Yasmim? – Perguntou Elise que olhava para o saco.

- De algum modo estou. – Respondeu ela enquanto olhava para baixo.

- Tente ficar calma. – Falei, tentando parecer calmo. Abri um dos sacos, reproduzindo um som estridente de papel amassado. – Thomas esta armado, e pelo que vimos Bruno só tem facas, e não armas, se ele tentar alguma coisa, Thomas já vai ter acabado com ele.

Ela me respondeu com um vago sorriso. Elise agora pedia para mim água, peguei a garrafa que eu e Yasmim havíamos bebido e alcancei para ela; seu semblante estava abatido, mas pude ver uma pequena centelha de esperança em seus olhos quando ela sorriu momentaneamente enquanto me devolvia a garrafa.

Em um calafrio gélido nós ficamos alertas. Novamente ouvimos passos. Isso queria dizer que Bruno estava de volta. Paramos repentinamente de comer, e aguçamos os ouvidos; eles vinham da direita da van, o lado do banco de Thomás, eram rápidos. Em um baque lembrei-me que em nenhum momento Yasmim havia trancado a porta de Thomás.

- Yasmim! A porta esta destrancada! – Disse tentando manter a calma para não falar alto.

Ela rapidamente soltou o saco, que caiu sobre seu banco e foi em direção a tranca, que em um brusco movimento a porta se abre, e quem entra é Thomás, parecendo afoito e cansado.

- Thomás!!!! – Grita Yasmim e o abraça.

Thomás não retribui o abraço, e seus olhos estavam com uma expressão vazia.

- Thomás! Você esta bem!? Aconteceu alguma coisa!? – Falava Elise ansiosa.

Ele simplesmente não respondia, continuou a olhar para frente, sem nenhuma expressão, até que Yasmim o solta; lágrimas escorriam dos olhos dela.

- Afinal o que houve Thomás? – Perguntei, depois de um silêncio estranho.

Ele não estava reagindo, parecia hipnotizado, ou em outro lugar. A pistola ainda estava em sua mão, e eu estava temendo algum ato involuntário. Depois de algum tempo ele pareceu literalmente despertar; em um baque pareceu voltar a si, e pegou e logo fechou a porta, estava aflito e muito assustado, ele tremia e olhava para nós como se a gente não fosse nós mesmos. De repente ele se põe em posição parcialmente ereta e olha hesitante para Yasmim. Olhava no fundo dos olhos dela, e disse em uma voz fina, em um tom baixo:

- Nunca... Nunca!... Ouça a história! Nunca!!

Berrou ele na direção dela. E vira para trás.

- Isso é pelo bem de vocês.

Disse ele em uma voz tranquila, e pega a pistola e coloca na boca, e atira.

Sangue de um vermelho beirando ao negro espirraram contra a janela e a porta do banco do motorista, pedaços esbranquiçados de neurônios ficaram grudados e lentamente escorrendo. Thomás caiu para o lado do vidro da frente, com as costas na porta. Sua expressão era ainda viva enquanto sangue jorrava de seu nariz e boca, seus olhos estavam cravados em Yasmim, que gritou de um modo que nunca esquecerei; ela não esperou nenhum segundo e abriu a porta do seu lado e correu em meio a escuridão, emitindo curiosos e insanos murmúrios.

- Yasmim!!! - Grita Elise se levantando em um pulo e tentando pular para o banco da frente, mas eu a segurava, pois eu sabia que Bruno estava a espreita.

- Me solta!!... Me solta!!! Não podemos deixa-lá ir!!!

- Não podemos fazer nada Elise!!! Não podemos fazer nada... - Dizia enquanto a segurava, ela resistia.

- Mas!... Mas... A Yasmim... - E por fim cede, e caí no banco, seus olhos arregalados e úmidos, ainda muito atordoada para começar a chorar. Ela olha para os meus olhos, no fundo deles. E pendem duas lágrimas de ambos os olhos. Ela chora, eu a abraço, tentando manter os olhos longe daquela visão horrível.

Eu sentia um estranho aperto em meu peito, uma mesclagem de sentimentos, como se uma pedra gélida estivesse sendo pressionada contra ele. Nenhuma lágrima eu derrubei, tudo aconteceu tão rápido, Thomás também esta morto, e Jonas já esfriou, e agora, Yasmim talvez também estivesse morta. E nós também seriamos se não saíssemos dali.

Rapidamente eu pulo para o banco da frente, ignorando a imundície. Abri o porta luvas e encontrei o que queria, uma lanterna. Peguei-a e voltei para trás.

- Temos que sair daqui. Vamos tentar voltar para aquelas fazendas nas quais cruzamos, e pedir ajuda.

- E Yasmim...?

- Yasmim é esperta então se ela estiver viva ela fará isso também.

Elise pareceu consentir, e juntou forças para engolir suas lágrimas. Rapidamente abri a porta do lado esquerdo da van e saí, logo depois Elise. Segurei sua mão com força.

- Fique sempre atrás. Não soltarei sua mão. Se ouvir algo me avise. - Disse, sem olhar para ela.

Caminhei ligeiramente, a lanterna iluminava a frente. Procurei seguir a estrada donde tínhamos vindo. Nossos passos emitiam um som semelhante ao mascar de um biscoito, havia muitas pedras no caminho e Elise tropeçava em algumas, mas em nenhum momento soltei sua mão.

Depois de um longo trote rápido, desacelerei. Vi que Elise estava um pouco cansada, eu também estava, mas precisávamos continuar. Surpreendi-me depois de uma certa caminhada, Elise cutucou-me. E virei para trás.

- O que foi?? - Disse, enquanto apontava o facho da lanterna para o chão.

- Sinto que nós estamos sendo perseguidos...

Senti um calafrio, daqueles gélidos que começa na perna e desliza até a nuca, e vagarosamente viro para trás, e com o foco da lanterna aponto para frente. E lá estava. A vaca! Ou aquilo que Bruno se tornou!

E ele sem emitir um único som, começa a correr em nossa direção. Em minha vida inteira nunca corri tão rápido. Segurei a mão de Elise tão forte que achei que a machucava, mas ela nem sequer pode reclamar pois tinha que aguentar o meu ritmo.

Eu ouvia os passos de Bruno, ele parecia caminhar enquanto corríamos, mas sempre estava no encalço. Corremos para a floresta que ficava perto da estrada. Eu ainda estava com a lanterna clareando nossa fronte, mas apenas até aquele ponto, pois quase esbarramos numa árvore, e eu acabei por derrubar a lanterna que quebrou em um estalido.

Seguimos as cegas o caminho, mesmo assim correndo, pois Elise ainda sentia a presença de Bruno. De repente no meio da escuridão surge uma voz serena, parecia um velho, que calmamente fala, parcialmente em um sussurro:

- Venham comigo! Minha casa é aqui!

Sem pensar eu Elise seguimos o caminho com o suposto velho, que nos levou até sua escura casa.

Entramos rapidamente. Ela era escura e fedia a mofo. Tinha um ar frio pairando dentro, e só podíamos notar as janelas por causa da vaga claridade da Lua lá fora. Ouvimos uma bátida, o velho fechara a porta.

- Sentem-se naquele canto ali, tem um sofá. Vou ali pegar um lampião. - A voz dele parecia abafada por algo.

Seguimos a tatear na escuridão até encontrar algo macio, julgamos ser o sofá que o velho dizia, e sentamos.

Esperamos algum tempo. Naquela densa escuridão. A mão de Elise eu só agora havia soltado, mas agora eu a abraçava, de junto ao meu corpo. Eu a protegeria, nem que eu tivesse que me sacrificar, era isso que eu pensava.

Ouvimos passos. Era o velho retornando. Sentimos o arrastar de algo seco, e um barulho de madeira. De repente sons de risco e pequenos lampejos. E agora uma tímida chama, que se cruzou com o vidro do lampião, que se acendeu.

Naquele momento, abracei Elise com toda força, que me era pouca, pois meus nervos já haviam tomado conta de meus músculos. Todo meu corpo gelou de um modo que nem o frio do inverno um dia fizera. Senti os tremidos dos calafrios de Elise, e sei que ela também viu o nosso destino.

Em nossa frente se demonstrava outra besta, tão horrível quanto Bruno, só que mais antiga. A cabeça, da vaca, já era ossos, mas a cabeça humana estava mesclada entre os ossos e a pele da face do "homem" que talvez algum dia havia sido. Seus olhos eram grandes e vermelhos, sem pupila ou iris, apenas vermelhos.

E sua voz começou a recitar aquilo. Aquilo que nunca devia ser recitado. A infame história que por tanto tempo foi queimada e temida, tanto pelos orientais ou ocidentais. A voz tornou-se grave. Tão grave que retumbava nossos peitos, e agora gritava, enquanto cuspia aquelas infames silabas. A cadeira, que era de balanço, a cada palavra aumentava seu ritmo, ficando em uma velocidade perturbadora.

Não conseguíamos nos mover, pois o medo e a treva invadiam a nossa alma. Eu achei que surtaria, só que Elise estava ali para me manter são, eu simplesmente não conseguia mover um músculo contra aquela besta.

Elise olhou-me nos olhos, e de seus olhos escorriam pequenas gotículas de lágrimas, pois seus olhos já estavam secos de tanto chorar, e eu sabia que não poderia deixar ela ouvir Aquilo.

- Eu sei que você não vai conseguir... - Disse eu.

Ela apenas continuou a me olhar, e fez positivo com a cabeça.

E eu sabia que eu teria que fazer, pois ela não conseguiria.

Então coloco minha mão tremula em meu bolso e pego o canivete, o mesmo com que abri as roupas de Jonas.

Olho para os olhos dela.

Os olhos da doce Elise, a menina ingenua de cabelos de fogo, e então abro sua garganta.

E ela sorri, enquanto seu sangue jorra.

E sem derramar nenhuma lágrima eu olho pela última vez para a besta, e com o mesmo canivete sujo de sangue, rasgo meu pescoço.

* * *

- Nota -

Conto experimental. Meu primeiro conto longo e com muitas falas.

Baseado na Creepypasta "Cowhead"

Thomas Wells Loyst
Enviado por Thomas Wells Loyst em 16/12/2015
Código do texto: T5482326
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.