Amor, morto amor!

As manhãs já não faziam sentido para ela, que outrora se reunia com amigos, saiam para algum lugar divertido. Não, ela não terá mais estas manhãs, não haverá mais amigos, não haverá mais alegria, não haverá diversão, tudo ficou para trás, apenas uma longínqua lembrança é o que resta.

Os dias atuais são sombrios e tenebrosos, a realidade é poluída e disforme, tudo está ao avesso e as entranhas estão amostra. Manhã, tarde e noite, são a mesma obscura rotina. Sem sentimentos bons, apenas a insegurança do vazio completo e angustiante, medo. O sol não brilha mais como antes, sua luz é fria e sem vida. O ar é pesado e seco, queima as narinas, seca a garganta, tudo é seco. Sem esperança.

Como era cheia de vida, alegre e sensata, bela. Seu rosto expressava poesia, lindos olhos verdes, cabelos negros, pele morena. Agora não mais.

O que a motiva e a faz seguir em frente é a fome, a primitiva ânsia por carne, sangue e vísceras. Seus olhos esbranquiçados não piscam mais, seus movimentos são letárgicos mesmo que tente, não consegue mais apressar seus passos, seu olfato consegue apenas distinguir o odor entre carne morta ou viva. Morte é o que a cerca agora, seus novos companheiros caminham desordenadamente, farejam a possibilidade de encontrar carne viva, o mundo mudou. Percebo em seu olhar o que ela sente, em seu íntimo mais profundo, ainda lamenta as mudanças que ocorreram a ela e ao mundo, sente a dor física da morte em suas entranhas a cada hora e minuto passados nesta terra.

Assim segue-se sua angustiante e sofrida rotina, de dor e fome, uma fome que nunca para e atormenta sua existência.

Eu a tenho observado todos os dias, percebo que ela se difere dos outros, seu comportamento por vezes me intriga, seu estado parece em poucas ocasiões, consciente. Sua fome por carne viva continua, mas parece ser mais controlada.

Fico bem escondido, aprendi com o tempo a disfarçar meu cheiro, estou invisível para eles. Fora de seus radares podres, passam-se os dias e a cada momento as lembranças que tenho de nós me entristece. Lembrar em como era linda e cheia de vida, e agora, uma débil criatura morta, decomposta e fétida.

As vezes me recuso a acreditar que vivencio este momento, penso que toda essa loucura não passa de um tenebroso pesadelo, um mero filme de terror barato.

Este pesadelo já dura dois anos, dois anos se escondendo e fugindo das garras da morte. Ainda assim, não tive coragem de ir para longe dela. Mesmo assim, acabei ficando, na esperança de que tudo se resolveria, que alguém acharia uma cura milagrosa, inocência.

Rezo a Deus todos os dias para me dar forças, livrá-la deste suplício de uma vez por todas, com apenas um tiro e eu a libertaria desta existência maldita. Mas sou covarde demais para isso, são dois anos de pura tortura e tristeza, angustia. Não consigo destruir a única coisa que me prende a este mundo condenado, sou fraco. Então me deparo com ela, esta a dois metros de mim, está sozinha.

Não a outros por perto, ela caminha lenta e desajeitadamente em minha direção, se aproximando cada vez mais, eu não me movo, fico parado olhando-a. Poucos centímetros nos separam agora, pronto.

Seus olhos mortos me encaram, eu a encaro, sua boca abre-se e uma gosma escorrega pelos cantos, eu estendo minha mão, ela agarra meu braço, estou entregue a ela, o medo é irrelevante agora, resolvo por fim acabar com meu sofrimento, minha dor, irei agora me juntar finalmente ao meu amor.

Milson Elias
Enviado por Milson Elias em 20/01/2016
Reeditado em 20/01/2016
Código do texto: T5517588
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