Vertendo Sangue

Tudo dói. Principalmente as lembranças. Elas estão mais vivas do que nunca. Pra que viver? Pra que ficar chorando e enchendo a cara com uísque barato? Por que tudo isso aconteceu? Foram dois baques sofridos. Logo ele que sempre foi considerado um herói. Agora ele não passa de uma escória da humanidade. Tudo chegou ao fim enfim. A vida é mesmo assim, um dia no auge, no outro estamos no vale repleto de cães famintos.

O dia já nasceu e tem algumas horas. Clóvis continua deitado no chão gelado em posição fetal. A garrafa de uísque continua caída em cima da mesa de centro na sala. A desorganização naquele apartamento é algo impressionante. Tudo está fora do lugar, mais parece que algum assaltante esteve por ali.

Lentamente ele vai despertando. O sol penetra na cortina deixando o desenho das flores ainda mais vivos. Clóvis abre seus olhos azuis e por um breve instante ele não sabe onde está. Com muita dificuldade ele consegue se levantar se apoiando nos joelhos. Por fim está de pé. O gosto amargo na boca lhe causa náuseas. Ele se segura para não vomitar no carpete. No banheiro, depois de urinar a borda do sanitário, a nostalgia volta ao se lembrar das broncas que levava de ex mulher.

- Quantas vezes terei que lavar esse vaso?

Ele estranha. Em dias ele consegue sorrir dessa lembrança. Clóvis se olha no espelho e nota novas rugas na testa e no canto dos olhos. Escovar os dentes foi uma tarefa quase que impossível já que as náuseas aumentam a cada segundo. Tudo que ele quer é uma xícara de café e bem forte. Clóvis apenas troca de camisa e desce rumo à padaria que fica em frente ao prédio.

O barulho da maquina de café e o cheiro de pão fresquinho abriu seu apetite. Ele olha ao redor e vê pessoas fazendo o desjejum como pessoas normais. Mas, espere um pouco, elas são pessoas normais, eu é que não sou. A voz do dono da padaria o trás de volta a realidade.

- Bom dia doutor Clóvis, vai o mesmo de sempre?

- Bom dia Gilmar, sim, o mesmo de sempre.

- Forte e sem açúcar.

- Exatamente!

Hoje Clóvis não está para conversa. Em outra época ele com certeza perderia um tempão jogando conversa fora com Gilmar no balcão. Mas, hoje não. Ele preferiu tomar seu café sentado na mesa admirando o vai e vem dos carros. A sua frente uma ruiva o devora com os olhos. Olhos negros e que dizem muitas coisas. Clóvis ainda é um homem bonito e bastante charmoso. Cabelos negros apesar dos 43 anos, pele bem tratada e uma ótima forma física. A ruiva continua ali, disfarçando, ou talvez esperando uma reação do bonitão a sua frente. Clóvis não está interessado nela, nenhum pouco. Tudo o que ele quer é sua família de volta. Ele quer Mônica a seu lado e Guilherme em suas costas. Isso sim o traria de volta ao mundo dos vivos.

A ruiva se cansou e foi embora fazendo caretas. Clóvis deu dá de ombros. Gilmar trás o café.

- Mais alguma coisa, doutor?

- Não, apenas o café.

- É ai, doutor, derrubou quantas ontem?

- Uma.

- É melhor o senhor sair dessa fossa, a bebida ainda vai matar o senhor.

- Eu já estou morto, Gilmar, eu já estou morto.

***

Ao meio dia, depois de um breve cochilo, ele é acordado com o toque do celular. Mesmo com a visão embaçada ele consegue ver o nome.

- Fala Marcão.

- Cara, você realmente abandonou tudo? – vocifera.

- Marcão, me dá um tempo, valeu, eu preciso de um tempo. – boceja.

- Clóvis, você é um dos melhores cirurgiões que existe, mestre nessa arte.

- Um mestre que não conseguiu salvar a vida do próprio filho, você quis dizer. – os olhos enchem de água.

- Cara, retome sua vida, infelizmente Deus quis o Guilherme junto Dele, você fez o que pode.

Clóvis aperta o celular contra a cabeça deixando as lágrimas desceram.

- Pelo amor de Deus, Marcão, me esquece, por favor. – desliga e arremessa o aparelho longe. Caído estava, caído permaneceu. O choro é amargo, doído e cortante. Lembrar de seu filho naquela mesa de cirurgia perdendo a vida é algo sufocante. Ele estava lá, diante de seu tesouro o vendo ir embora sem poder fazer nada. Aquela noite foi a pior, parecia que nunca teria fim. Ele se recorda de Mônica o xingando no corredor do hospital.

- Seu merda, não consegue salvar seu próprio filho, seu médico de merda.

Ele desabou no chão frio do corredor sendo confortado por Marcão. Ao chegar em casa no outro dia, ela já não estava mais lá. Mônica o havia abandonado. No cemitério ela deu outro escândalo ao vê-lo entrar na capela.

- Saia daqui seu desgraçado, saia daqui. – gritava a plenos pulmões.

Uma tortura diária. Mais uma vez ele não almoça. Ficou ali jogado no sofá olhando para a janela semi aberta. A noite chegou e a fome também. Ele vai ao banheiro e se olha no espelho. A barba por fazer o deixa dez anos mais velho, porém não há ânimo para fazê-la. Clóvis trocou de roupa. Colocou uma calça social e camisa de mangas compridas azul claro. Pegou a chave do carro e desceu dispensando o elevador.

***

O restaurante é o mesmo de quando conheceu Mônica. Disso ele se lembra bem. Ela estava sentada na mesa do canto da vitrine. Quando o médico entrou foi à primeira coisa que viu. Uma mulher linda de cabelos castanhos bem tratados. Olhos grandes cor de mel e boca pequena. Clóvis se encantou pela gerente de banco almoçando sozinha. Depois de muito paquerá-la ela cedeu ao charme do cirurgião.

- Como se chama?

- Mônica, e você?

- Clóvis, Clóvis Moura a seu dispor.

A partir desse dia a onda de amor os afogou. Mônica era o mundo de Clóvis e vice e versa. O casamento aconteceu dois anos depois quando a gerente de banco descobriu a gravidez. Guilherme chegou e triplicou a felicidade. A família era bem estruturada. Clóvis pediu que Mônica deixasse o emprego no banco. Clóvis é do tipo de homem que não teceriza a criação dos filhos. Para ele quem deve cuidar dos rebentos é pai e mãe.

Volta ao mesmo lugar onde tudo começou é um tanto quanto sacrificante. O garçom o atente com a mesma simpatia, e ele faz o mesmo pedido, carne branca e salada e para beber, um ótimo vinho tinto. Pagou tudo no cartão. No caminho de volta a sua caverna, sim, sua caverna, é o que se tornou o seu apartamento, Clóvis não consegue esquecer quando viajou de carro com a família e dirigiu por quatro horas, parando apenas para comer. Foi cansativo, porém recompensador. Guilherme fazia bagunça na cadeirinha junto com sua mãe. Eles cantavam sucessos populares e cantigas antigas. Às quatro horas passaram voando.

***

No apartamento ele confere algumas fotos, nelas estão registrados os melhores momentos de sua vida familiar. Mônica fantasiada de bruxa e ele de Batman no carnaval de Salvador. Clóvis beijando a barriga de oito meses de gravidez de Mônica. Guilherme recém nascido em seu colo. Ele vai passando foto por foto e é como se fossem facadas em seu peito. A ultima o deixou sem chão. Justamente a ultima foto em família. Guilherme ainda vivo e com saúde aparentemente. Sorrisos, alegria e uma longa vida pela frente. Clóvis desmorona como uma montanha. Cai de joelhos. Chora bastante e soca o peito. Os minutos seguem. Dor, muita dor. A noite é alta. Ele abre a janela e do décimo andar as coisas parecem ainda piores. As lágrimas continuam a dar um ar lustroso ao rosto bonito do cirurgião. Ele abre os braços, está pronto para a morte faz tempo. Um ônibus passa em alta velocidade. Um carro freia quase atropelando uma senhora desatenta. Chega dessa vida, chega de lágrimas, chega dessa caverna. Clóvis fecha os olhos para nunca mais abri-los quando um pássaro noturno pousa no beiral da pequena varanda. O bicho tem um canto triste e enfadonho. Clóvis tenta enxotá-lo, mas o bicho parece querer falar algo com sua cantoria.

- Nem morrer em paz a gente consegue mais.

Como magia o pássaro se transforma num homem alto e de capa negra. Olhos amarelos e cabelos bem penteados loiros.

- Clóvis?

- Devo está tento uma alucinação, só pode ser.

- Pense o que quiser, a minha proposta é a seguinte, me chamo Daniel e quero resolver seu problema.

- Como assim, resolver meu problema, você por um acaso pode trazer minha família de volta?

- Melhor, posso lhe dar a imortalidade, o que acha?

Ainda com algumas lágrimas escorrendo, Clóvis olha para baixo e depois para o homem. Quem seria ele, um anjo que veio buscar sua alma com ele ainda vivo? Ou o demônio que veio atormentá-lo?

- Quem é você, Daniel?

- Isso você verá depois, agora desça daí, já. – Daniel é incisivo.

Lentamente o médico desce e fica cara a cara com o ser.

- Então, quer se juntar a mim e ser imortal?

Seria horrível. Sentir essa dor, essa saudade, essa angustia durante sabe se lá quanto tempo. A morte o livraria disso tudo em segundos. Clóvis meneia a cabeça e se vê tentado a voltar para a beira quando Daniel o segura pelo braço. A força dele é sobrenatural. Quando Clóvis dá por si está abraçado e servindo de jantar para Daniel. A vontade do vampiro é sugá-lo até a morte. Relutante Daniel pára deixando o corpo do médico cair. Clóvis fica no chão se mexendo. Daniel volta a se transformar no pássaro sinistro batendo em retirada.

Tropeçando Clóvis anda até no meio da sala. Olha tudo com estranheza. As fotos estão jogadas no sofá. Ele as pega e as olha com indiferença. A dor sumiu. A tristeza, a magoa, angustia, o desespero desapareceram. Ele deixa cair às fotos e se dirige ao banheiro. No espelho sua imagem não existe. Sorrir. Novo homem, revigorado. No pescoço pálido a marca da mordida. Os olhos outrora azuis como uma piscina, agora dão lugar a um amarelo vivo. Os lábios roxos e a pele fria, essa é a sua condição. Um vampiro, um ser da noite, sedento por sangue fresco.

Júlio Finegan
Enviado por Júlio Finegan em 23/01/2016
Código do texto: T5520093
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