Legião - DTRL 26 - Duplas.

O deus dinheiro.

O telefone celular berra sua maldita melodia cheia de sinos e pássaros para me arrancar dos braços da gostosa da página central de um pasquim barato. Irritado, me debato como rabo de lagartixa tentando me livrar do edredom e dos últimos grãos de areia do sono presa em meus olhos. Fico nessa tarefa ridícula durante alguns bons minutos, mas as contas atrasadas e os avisos de corte de gás e eletricidade acenam para mim sobre a cômoda. Xingo as contas e avisos enquanto ando trôpego para o banheiro.

Já debaixo do chuveiro, deixo a água afastar o sono, às tapas com suas mãos geladas, ao mesmo tempo em que faço pontaria no ralo para mijar. Divido meu pensamento entre o controle do jato de urina e os afazeres do dia. Penso em como terei que me deslocar até o município de Itaguaí, um lugar longe pra caralho de onde moro e que me fará perder um dia inteiro devido a sua distancia. Mas não há o que se fazer, a praga do cliente está encarcerado lá.

Termino o banho, me visto e saio em direção à estação de metrô. A composição está atrasada e, como sempre, a plataforma lotada. Quando ela finalmente chega, sou exprimido e meu paletó fica totalmente amarrotado. Desembarco na Central e tomo o ramal de Santa Cruz e após uma hora e meia de viagem, saio da estação final e tomo um ônibus em direção a Itaguaí. Falta muito até o meio dia e já estou cansado e puto com a vida.

Enquanto sacolejo dentro do ônibus, tento ler os autos do processo. Meu cliente se chama Silvano Fontoura, assassino confesso de sete pessoas e acusado de mais nove assassinatos. Todas as mortes foram violentas, sem motivo e sem possibilidade das vítimas se defenderem. O cara é um verdadeiro filho da puta, mas como irão me pagar muito bem para atuar no caso, pouco me fodo. Vou alegar demência e ele vai ficar esfriando a bunda no pinel, depois de uns anos acaba vazando de lá. É uma sacanagem? É, mas que se foda, isso é a lei.

Sacolejando, o ônibus se arrasta rumo a Itaguaí.

***

Flores de carne.

Eram em noites como aquela que o medo primordial subia à garganta de Silvano, trazendo o engasgo típico do afogado em próprias mágoas: a lua de sorriso capcioso adornando a esfera celeste; uma escuridão que parecia sufocar em cada respirada, entrando nos pulmões como lama; e a sensação de vazio, sendo espectador de si mesmo enquanto seu corpo piruetava pelo palco feito um palhaço de picadeiro.

A todo tempo tentava se concentrar. Queria pedir ajuda, e que sua morte fosse breve. Não de uma morte pouco dolorosa, mas uma morte breve de urgente! As paredes de concreto frio formavam um corredor que se estendia até perder de vista. Seria uma passagem normal para qualquer um, mas para Silvano o mundo era sempre diferente. Por trás das inúmeras grades, rostos diabólicos o fitavam em sua procissão quase sagrada. Eram olhos famintos, que mascaravam o medo com o cheiro de merda que subia da privada ao lado do beliche.

Um grito distante soou das celas de cima, com uma gargalhada estrondosa acompanhando. O guarda não percebeu, mas apertou as algemas em um ligeiro espasmo. O coitado sentia tanto medo dos monstros quanto os monstros sentiam dele. Eram durões, foras da lei estupradores, assassinos e ladrões. Mas eram, além de tudo, seres humanos (ou pelo menos uma cópia barata). Tinham suas drogas, bebidas e putas, mas não tinham a liberdade.

Tire a liberdade de um homem e leve junto sua vontade. Essas eram palavras que Silvano ouvia com frequência, e apesar de desprezar o homem que as falava (não que ele próprio desprezasse, mas havia um hóspede completamente avesso ao que aquele camarada representava), via a verdade existencial que continham. Ali onde pisava era um reservatório infinito de medo, e talvez a maior nascente brotava de si.

Quando chegou a porta que dava para a sala de visitas, nem percebeu o caminho infinito de corredores que havia percorrido. O som das algemas sendo conferidas ressoou no ouvido, gelatinoso, ecoando em cada tilintar. O guarda puxou o trinco do portão gradeado, e o encaminhou até a sala de visitas.

***

Desço no terminal, todo amarrotado, suado e completamente puto da vida. Tomo outro ônibus em direção ao fórum da cidade. Após mais uma hora, chego ao meu destino e tenho que entrar em uma enorme fila para ser atendido. Quando chego ao guiché, a mulher que me atende, ao ler os documentos que apresento, faz cara de nojo e chama um policial militar para me levar até a sala onde encontrarei Silvano.

Entro em uma saleta onde apenas uma mesa e duas cadeiras servem de mobília. Sentado sobre uma das velhas cadeiras de escritório, Silvano assobia uma melodia que me é familiar, mas que não consigo lembrar a letra. Irritado e querendo me livrar o mais rápido possível do pepino que é esse trabalho, sento e lanço sobre a mesa os autos do processo. Com minha melhor “voz de advogado”, me apresento:

- Meu nome é Sérgio Rocha Lima, e serei seu defensor no caso em questão – fiz uma pausa dramática, para mostrar para o filho da puta quem manda. – Podemos ir direto ao assunto?

Ele parece pouco se importar com a minha presença, na verdade, perece estar deliberadamente me ignorando. Meu humor já está completamente fodido e atitude desse merda só o piora. Tentando manter minha compostura profissional, continuo:

-Não há muito que se fazer quanto ao seu caso. O senhor confessou os crimes e sendo assim, não há como escapar da prisão. Alegarei insanidade, assim o senhor não cairá no sistema comum, o que seria uma sentença de morte. O seu regime de encarceramento especial não irá durar para sempre.

O assobio então morre e Silvano me encara, olho no olho. Ele sustenta um sorriso debochado, petulante até, mas seus olhos são cheios de uma espécie de tristeza fundida com asco. É um olhar que me causa desconforto, porque, não sei.

-De pouca ou nenhuma monta é esse aspecto do caso. A única coisa que urge para mim são as flores. As trouxeste?

Durante alguns segundos fico espantado com a voz do assassino, ela é profunda, parece ser de alguém muito idoso e culto, o que não é o caso. É igual à voz do cara que dublava os trailers de cinema na década de noventa. Ele deve ter usado muita lábia para conseguir fazer as vítimas agirem da forma que ele queria e essa voz com certeza ajudou pra caralho. Quando o espanto termina, respondo:

-Flores? Mas que flores? O senhor tem consciência da sua situação? O senhor...

Silvano me interrompe com uma gargalhada, novamente fico espantado e antes que eu possa falar algo, o corno se debruça sobre a mesa e diz:

- Pelo visto, Bechard não seguiu minhas determinações. Uma lástima. Sendo assim, o senhor se incumbirá de mais esse labor. Elas estão cerradas em uma caixa, que por sua vez, está enterrada no quintal de minha residência sob as sombras de uma jaqueira. Traga-a.

Assim que termina de falar, o filho de uma grande puta se levanta e sai pela porta, como se estivesse em casa e eu fosse um moleque de recados. Fico olhando os documentos sobre a mesa, chocado com falta de respeito do assassino, até que um policial entra e pede que eu desocupe o lugar.

Puto dentro dos panos, deixo o fórum e me dirijo ao ponto de ônibus. Quando chegar em casa irei ligar para o cara que me contratou e mandar ele e Silvano para a puta que os pariu. Posso ser recém-formado, mas não sou um merda qualquer, tenho brios.

Espero que a galera da prisão deixe Paulo com o cu igual uma manilha.

***

O terno apertado segurando a barriga parecia gasto, mas de boa qualidade. Tinha os cabelos penteados para trás, um rosto rechonchudo e de olhar ágil. Um arquejo frio perpassou pelos lábios em forma de sorriso, e logo desapareceu. Apertou as mãos de Silvano, olhando descaradamente para as algemas, e fez o sinal para que o preso se sentasse. Logo em seguida se acomodou, colocando a pasta de lado e juntando as mãos sobre a mesa como em uma pequena prece.

- Meu nome é Sérgio Rocha Lima, e serei seu defensor no caso em questão – fez uma longa pausa enquanto pensava nas palavras seguintes, e então completou. – Podemos ir direto ao assunto?

- Sim, Dr. – respondeu Silvano. As palavras saíram da boca mais cansadas do que pareciam em sua mente. Respirou fundo e completou a sentença. – Eu quero morrer. Mas tem que ser logo.

Eu estou com medo.

Silvano reprimia uma enxurrada de sentimentos por dentro. Sua carne palpitava como se sorrisse maleficamente, esbravejando contra a força de vontade que suprimia o abalo. O canto do olho esquerdo tremia, ressonando com o coração, e o suor que já escorria decidiu descer em cascatas. O sol entrando na sala através da janela formava padrões segmentados no piso levemente encerado. Ao lado, uma mulher agarrava as mãos de seu marido fervorosamente. E no contraste do dia e da noite, ambos pareciam alienígenas.

Parecia uma mulher de batalhas. As marcas no rosto curtido indicavam o trabalho debaixo do calor escaldante das praias cariocas – mãos calejadas também, que destonavam completamente da beleza peculiar do rosto. O cabelo era uma pequena massa embolada que não passava dos ombros, mas ela parecia ostentar com o maior orgulho. No conjunto geral, emanava humildade, e não merecia o traste que a acompanhava. Um homem feio feito o diabo, com olhos de porco, uma barriga tão voluptuosa que fazia complemento ao olhar suíno, e uma aura que emanava sujeira. Entrara ali pelo porte de drogas, mas seu currículo criminoso já fora preenchido com muitas outras atividades. Tinha o costumeiro hobby de espancar suas mulheres, também.

Silvano imaginou o mundo inteiro em frente aos seus olhos, e as possibilidades eram maravilhosas. Mentalizou o vinil rodando na agulha, com o som agudo dos timbres animalescos ressoando a cada volta do disco. Quase podia tocar nos instrumentos capazes de trazer aquele som tão bem-vindo à tona, e sorriu por dentro como um garoto na primeira ida ao zoológico. Se pudesse comparar a felicidade, poderia dizer que viu o Leão rugir em cima de uma pedra, feito uma cena de desenho animado. Todos gritando alegremente seu nome, enquanto a orquestra de uivos ensandecidos tocava ao fundo.

Saiu dos devaneios descobrindo-se em cima do beliche. A cela indiferente o circundava como uma proteção contra o mundo. Deixe as porras das suas atrocidades trancafiadas bem longe do meu pessoal, caralho. Era isso que elas pareciam dizer.

Sentou-se, os pés balançando no ar enquanto a cabeça rodopiava, e percebeu que não se lembrava de uma única palavra que tinha dito.

***

O suor escorre da minha testa e cai em meus olhos enquanto cavo entre as raízes da jaqueira.

Quando cheguei em casa ontem, liguei para o cara que me contratou para defender Silvano e contei o ocorrido. Após ouvir a estória, ele simplesmente disse: Faça o que Silvano mandou e um bônus da metade do valor acordado será adicionado aos seus honorários.

Depois disso, não dormi, a promessa de uma bolada só para cavar um buraco ficou martelando na mente.

Após uns metros, a pá raspa em algo, então caio de joelhos e retiro a caixa de metal, uma lancheira velha da Barbie, do chão úmido. Sorrio, imaginando como o dinheiro desse serviço irá equilibrar minhas contas e me tirar da merda em que estive nos últimos anos. Levanto e após dar umas porradas na calça para tirar a terra, volto pela trilha no meio do matagal. É estranho como o quintal está totalmente tomado pelo mato. Parece que o filho da puta do Silvano não é um cara que se preocupa com suas coisas, o que só faz mais estranho ele ter enterrado as tais flores dentro da lancheira.

Salto a mureta da casa e enquanto caminho pela calçada em direção a estação de trens, noto um coroa parado no outro lado da rua. Apesar de a rua estar praticamente vazia, apenas com alguns moleques batendo bola no meio do asfalto, o velho me tira de cima abaixo, na cara dura. Estranho a situação, mas não chego a ir tomar satisfação. Vai que seja uma maricona velha ou um miliciano filmando o estranho dando bobeira no conjunto.

Aperto o passo, calculando novamente o tempo que perderei amanhã voltando ao fórum de Itaguaí.

***

Papel de peixaria.

O celular vibrou sobre a velha mesa da redação durante várias vezes até que o idoso tomasse o aparelho em suas mãos e atendesse a ligação. Do outro lado da linha, uma voz fanhosa e baixa, perguntou:

-Capeta? Corre pra cá que eu tenho uma parada fina para te passar! Vem pro fórum que tu vai ter um furo sensacional!

O jornalista, com mais de trinta e dois anos de profissão, já não recebia dicas sobre casos relevantes para o jornal. Na maioria, eram amenidades sobre a vida da cidade de Itaguaí ou casos cômicos de polícia. Ao ouvir o que Benjamim, o continuo do fórum, berrou na linha telefônica, não conseguiu deixar de soltar um suspiro de descrença e enfado. Sem nenhuma fé no que ouviu, respondeu:

-E o que houve Benjamim? Outro caso de não pagamento de pensão de um filho fora do casamento de algum vereador? Ou mais outra dica furada? Não me faça atravessar a cidade por nada outra vez.

O homem do outro lado da linha demorou alguns segundos para responder e quando o fez, foi em um tom de voz baixo, quase um sussurro:

-Não, Capeta. É coisa de primeira, mesmo! Sabe aquele assassino que matou uma dúzia de meninas? Ele vai estar hoje aqui no fórum. É coisa secreta, soube sem querer quando estava entregando um documento no gabinete do Doutor Magalhães. Vem pra cá!

Ao ouvir o que sua fonte lhe segredou, um sorriso de surpresa e satisfação se fez na face vincada do jornalista. Finalmente uma matéria digna de nota. Algo que poderia ser a grande matéria de sua carreira e sua chave de ouro para a aposentadoria. Cheio de esperança e excitação, o idoso se ergueu e com o celular preso entre a bochecha e o ombro, vestiu o paletó e rumou para o elevador. Enquanto caminhava, perguntou:

-Quanto tempo tenho até a chegada do Silvano ao fórum? Dará tempo para que eu chegue aí antes dele?

Já dentro do elevador, o jornalista foi saudado por um jovem, que pareceu ignorar completamente que havia um aparelho celular colado à sua orelha.

-Bom dia, Seu Geraldo. Já na ronda atrás da manchete do dia? A raposa sempre atrás dos furos de reportagem! O Capeta do jornalismo itaguaiense.

Benjamim respondeu em um tom ainda mais baixo, parecia preocupado:

-Vai dar tempo, Capeta. Ele vem só de tarde, o advogado vem lá do Rio. Quando chegar, me procura. Vou te passar os panos todos. Agora vou desligar, se alguém souber que falei alguma coisa, vai dar merda pra mim. Até mais.

Após guardar o celular no bolso do paletó, Geraldo encarou o rapaz e com um sorriso franco, respondeu:

-Vá à merda, moleque.

Satisfeito demais consigo mesmo, o jornalista desceu do elevador e deixou o jovem, que naquele instante ostentava uma expressão chocada, para trás e seguiu até a rua, onde estendeu um braço e apanhou um táxi.

***

Madruguei no fórum, não porque eu esteja querendo que Silvano se safe, mas por ter aberto a lancheira.

A coisa estava emperrada pela ferrugem, difícil mesmo de abrir, mas a porra da curiosidade ficou martelando na cabeça – Abre isso! Abre! ABRE!!! – acabei abrindo com uma martelada. Antes tivesse ficado de boa, sem olhar. No mesmo instante que a lata cedeu, um cheiro fodido de carniça empesteou meu apartamento e quando finalmente olhei, eram umas paradas, uns artesanatos toscos de couro e metal. Um lance bem escroto.

O fedor não me deixou dormir e então saí cedo de casa e fiz minha peregrinação até Itaguaí. Agora estou sentado feito um babaca, esperando que tragam Silvano para conversar comigo. Depois de duas horas de espera, um policial militar entra na sala, praticamente carregando o arrombado do meu cliente. Novamente ele assobia como se nada estivesse acontecendo ao seu redor.

Assim que o agente deixa a sala, tiro a encomenda de dentro da mochila, ela está enrolada em várias sacolas de mercado, para tentar conter o fedor que exala, mas isso não fez um efeito muito bom e durante toda viagem ouvi reclamações. Se o povo soubesse que era eu, provavelmente iriam me tomar a lancheira e me comer na porrada. Rasgo as sacolas e largo a caixa de metal sobre a mesa velha do fórum e só então Silvano presta atenção na vida.

Os olhos dele brilham ao ver a lancheira budunzenta e num bote só, agarra a coisa. Feito um imbecil, ele sorri e sem esforço abre a lata. Na mesma hora o fedor toma conta da sala, fica foda para respirar, mas o corno nem se importa. Completamente puto nos panos, digo:

-Muito bem, agora que lhe trouxe a encomenda, vamos ao que interessa. O senhor sabe como está sua situação? Sabe...

Silvano me interrompe com um gesto, ele coloca o indicador sobre os lábios e após dar uma cafungada nojenta em uma das flores, me pergunta:

-Sabes como fiz essas flores?

Pouco me fodo com isso e deixo isso bem claro:

-O senhor está brincando comigo? Estou aqui tentando prepara-lo para o tribunal e o senhor vem falar sobre esse seu artesanato fedorento? Olhe Silvano, não sou um moleque...

Sou novamente interrompido, mas dessa vez por uma pancada sobre o tampo da mesa que faz as flores dentro da lancheira saltarem para fora.

-Cala-te, ignóbil! Isso é arte! É um tributo à beleza e ao carmim! Cala-te e escuta, pois irei te contar como moldei esses tesouros!

Na mesma hora gelei, o filho da puta tinha um brilho maníaco nos olhos e babava enquanto falava as merdas dele. Fiquei com o cu na mão, mas mantive a pose e o encarei quieto.

-Agora que tenho sua atenção, deixa-me contar sobre como amealhei os insumos para esta peça que tenho em mãos. Certa manhã estava eu ocioso, quando vi passar uma menina, mui nova, ante meu portão. Era de uma tez acobreada, mui sedosa. De corpo bem feito, rosto oval, madeixas crespas e olhos encantadoramente inocentes. Tão logo deitei vistas nela, tive certeza que deveria tê-la sob meu jugo. Saltei por sobre a mureta de minha casa e a apanhei de supetão. Foi coisa veloz e em momento bem facejo para mim, pois a rua estava vaga. A arrastei para minha casa e lá, após uma boa sessão de pauladas, comecei a me deleitar com Ana Flávia...

Tomei um choque quando ouvi o nome, foi a ultima vítima que ele confessou ter matado, mas até hoje não encontraram o corpo. O filho da puta se nega a dizer onde está, ou melhor, onde estão, já que só duas vítimas foram encontradas. Eu o interrompo:

-Então o corpo da menina está na sua casa? No quintal? Mas cães vasculharam tudo e acharam nada! Inclusive estranhei que a lancheira...

Sou interrompido por outra porradona na mesa.

-Cale-se, animal! Estou a narrar um momento de criação artística! Cala-te ou te malho até sobrar nada!

Praticamente me caguei todo na hora, por isso mesmo, fiquei quieto sentado, ouvindo:

-Como dizia, comecei a me deleitar com Ana Flávia. Primeiro eu cerrei seus lindos lábios com cola epóxi e então os cingi com barbante e agulha de costurar couro. Ela grunhiu e se revirou de dor, o que somente serviu para intumescer meu falo. Ao dar cabo da costura, arranquei as vestes da pequena, para então colar suas mãos uma na outra e atar suas pernas. Assim que dei o repuxo final no nó, fiz uso de uma roldana e a ergui no ar. Tendo o belo corpo de Ana Flávia exposto para a lâmina, iniciei a retirada da pele. Iniciei pelas panturrilhas, rompendo lentamente as ligações entre a carne e sua capa. Cada centímetro talhado fazia a menina se chocalhar e urrar de uma forma hipnótica, sensual. Era uma pequena meretriz que só precisava de um pequeno incentivo para traze à luz sua verdadeira natureza lasciva. Ela lutou até o momento em que a lamina singrou a nuca, nesse instante, expirou. Uma lástima, mas que em nada atrapalhou minha arte. Assim que retirei toda a pele, desci Ana Flávia e me entreguei à paixão. Por horas fiz amor com ela. Era uma verdadeira meretriz, das mais sórdidas, pois nada me negou ou mesmo reclamou. Uma puta. Assim que minha paixão se satisfez, talhei a carne e a guardei. Depois de todos os labores e lascívia, que dei início a minha arte. Moldei essa rosa com a pele de Ana Flávia. Veja, ainda há o perfume dela impregnado!

O desgraçado se debruça sobre a mesa e enfia a flor no meu nariz. Quase vomito e para afastar a coisa, dou uma porrada na mão de Silvano e corro para fora da sala. Já do lado de fora, digo para o PM que leve o arrombado do meu cliente de volta para a carceragem. Só depois que o maldito é levado, que novamente entro, sobre a mesa, as flores feitas com as peles das vítimas estão espalhadas. Cheio de nojo ponho tudo de volta na lancheira, pego minhas coisas e saio. Vou entregar essa merda para o cara que me contratou, pegar minha grana e largar o caso. Esse filho de uma puta do Silvano é louco demais pro meu gosto e nem por todo dinheiro do mundo vale aturar essas merdas.

***

O jornalista desce sem pressa do táxi e caminha tranquilamente em direção à entrada do fórum. Quando entra no prédio, acena para o pessoal do balcão de atendimento, que retribui o comprimento, e sem cerimonia, segue em direção à sala de Benjamim.

Após alguns minutos, entra no cubículo do amigo, que ao vê-lo, salta da cadeira, deixando cair o livreto de palavras cruzadas que tinha nas mãos.

-Capeta! Pensei que não virias! Anda, me dê teu gravador! Vou esconder ele na sala de audiências!

Geraldo retirou do bolso um antigo gravador de fita, verdadeira raridade, e entregou ao continuo que correu para dar cabo ao seu intento.

Assim que ficou só, o jornalista recolheu do chão o livreto caído e sentou-se na cadeira. Passou a vaguear as vistas sobre os quadrículos semipreenchidos até que uma palavra atraiu sua atenção. Era um nome de divindade, na verdade de demônio, que teimosamente se escondia da percepção de Benjamim, sendo a ultima palavra ainda por ser escrita.

Geraldo retirou uma BIC do bolso e escreveu o nome: Pazuzu.

Entediado e sem muita fé na história de Benjamim, ficou esperando.

***

Assim que meti o pé em casa, liguei para Bechard e disse que estava fora. O maldito simplesmente disse – Saia do caso agora e não verá um centavo do seu dinheiro. – e deligou na minha cara. Grande de um filho de uma puta é o que ele é.

Agora estou nessa sinuca de bico, onde, se sair, fico sem ter como pagar as dívidas, e se ficar, ajudo o maldito do Silvano. Das duas formas estou fodido.

Fico perambulando pela casa até tarde tentando encontrar uma solução até que em um estalo, o óbvio salta: Não vou declarar o Silvano como doente mental, farei o contrário e desse jeito ele cai na cadeia e vira brinquedo de vagabundo.

Caralho! Sou mesmo uma anta por não ter pensado nisso antes.

***

Capeta desembarcou do trem e deixou a estação rumo ao local citado na conversa gravada entre o advogado e o tal Silvano. Havia acordado cedo, para assim chegar antes que o advogado e conseguir ter em posse as tais flores que o maníaco exigia.

A casa ficava em um bairro afastado e pobre, uma antiga vila operária que decaiu para uma favela. As ruas eram esburacas e cheias de crianças magricelas que corriam e tagarelam sem parar. Algumas ficaram encarando o jornalista, mas ele não lhes deu atenção e seguiu seu caminho até chegar à esquina onde ficava a casa.

Era uma casa antiga, meio depredada pela população local quando descobriram que o dono era o maníaco que amedrontava a região. O quintal era cercado por uma mureta baixa e sem reboco, onde o mato crescia livre e já ia alto.

Geraldo já estava prestes a atravessar a rua e entrar no quintal, para desencavar as tais flores que o maníaco exigia ter em sua posse, quando notou que um homem saltava a mureta e caía de joelhos na calçada. Era o advogado de Silvano, ele estava encharcado de suor e sujo de barro. Quando se ergueu, o homem gritou palavrões e seguiu em direção da estação de trens, durante alguns instantes, encarou o jornalista.

Capeta pensou que o homem de alguma forma o conhecia, mas essa ideia morreu assim que o advogado seguiu seu caminho grunhindo algo homofóbico. O jornalista esperou alguns minutos até se encaminhar ao portão do terreno, um amontoado de tábuas bolorentas que estava apenas encostado na mureta. Enquanto afastava a madeira do caminho, se perguntou por que o advogado havia saltado a mureta, a única resposta que surgiu foi a de que se tratava de um perfeito idiota.

Após caminhar até os fundos do quintal, afastando o mato alto do caminho, encontrou a jaqueira e viu as raízes cavoucadas. Desalentado, decidiu entrar no interior da casa meio destruída. Dentro da casa, encontrou apenas restos de mobília e muito lixo, na maioria, camisinhas usadas e restos de drogas. Verificou a sala e os outros dois cômodos; encontrou o mesmo cenário.

Irritado, caminhou em direção à rua e então viu alguns livros jogados no chão cobertos por um pouco de lixo. Capeta parou por alguns segundos e após ler alguns títulos, recolheu um que não estava completamente imundo. Na capa de papel cartão em letras finas, se lia: A Goétia na prática: Guia facilitado para invocação.

Capeta bufou de descontentamento, os livros implicavam em algo demasiado popularesco e pesar de já ter escrito coisas dignas apenas dos piores pasquins, não queria que fosse assim dessa feita. Desejava abandonar o jornalismo com um pouco de dignidade, se aposentar escrevendo uma matéria válida.

Cheio de raiva e amargura, o homem arremessou o livro contra a parede e saiu.

***

Silvano acordou naquela manhã sentindo um asco no estômago.

A ração servida na noite passada não caíra muito bem, e ele a sentia dando voltas e formando aquele bolo que chegava à garganta e retornava, dissolvendo-se em uma nova bola que em alguns minutos faria o mesmo. Levantou, com a cabeça ainda girando, e lavou o rosto na pia suja.

– Acorda pra cuspir, Silvano.

Virou o corpo lentamente, dando de cara com o companheiro, sentado na cama baixa. O rosto velho emanava uma aura de sabedoria. Tinha olhos grandes e pesados, como se o preço dos pecados que cometera exercesse certa gravidade sobre o corpo. A bíblia com capa de couro adornava a cabeceira do leito.

- Vai se foder, Euzébio – secou as mãos na blusa suja e caminhou para as grades da cela.

Não sabia o motivo de tanto ódio pelo companheiro, mas detestava aquele homem. A vontade de arrancar sua cabeça e fazer música com os gritos era enorme. Acreditava que, se tivesse os materiais correto, já o teria feito. No fundo se repreendia por tais pensamentos, mas o homem era um crentelho do caralho.

- Você tem esse temperamento estranho, mas sei que é uma boa pessoa. – Euzébio levou a mão à testa, descendo e fazendo o gesto da cruz. – Tenho certeza que o Senhor há de curar as suas feridas e perdoar os seus pecados.

- Se eu pudesse, te matava neste exato momento – por dentro Silvano gritava. – Mas eu não posso, então...

Ponderou e descreveu mentalmente a própria situação.

Inúmeras acusações de assassinato, provavelmente o resto da vida na prisão. Não tinha família, não tinha qualquer laço que pudesse liga-lo ao mundo real, e o mais importante de tudo, queria poder morrer. Chegou à conclusão de que não tinha nada a perder. O coração disparou com a possibilidade que surgia, e ele retesou. Adrenalina correndo nas veias enquanto se aproximava do velho. Havia sido racional durante todo o pouco tempo em que estivera ali, mas depois da conversa com o advogado – da conversa que não se lembrava – descobriu que não havia a necessidade de ser comedido.

Euzébio percebeu a aproximação inesperada de Silvano e se encolheu, segurando a bíblia em mãos e preparando o fôlego para um grito que seria ouvido até fora dos muros do presídio. Mas Silvano foi mais rápido. Segurou a boca dele com força, enquanto o homem se debatia tentando gritar. Alguns ganidos fugiram da garganta em forma de desespero enquanto Silvano o segurava pelo pescoço, transformando os braços fortes em torniquetes e forçando em um abraço apertado. As pernas de Euzébio tremiam enquanto o ar escapava dos pulmões, sem retornar. As mãos balançaram em um tipo de comemoração alucinada, tentando alcançar o rosto do agressor, até caírem de lado sem forças.

Nas celas adjacentes, os outros presidiários observavam fascinados. Gritavam pela excitação do momento, mas o clima foi cortado pelo lençol que Silvano pendurou nas grades.

Estava preparado para um momento de intimidade.

***

Geraldo Capeta continuava sentado em sua escrivaninha como nas últimas duas horas, analisando um mar de papéis, quando o telefone tocou. Não atendeu na primeira e nem na segunda, pois não era capaz de ouvir o telefone tocar. Somente na terceira, quando o som da campainha quase morria, que ele se deu conta que era o seu celular berrando.

- Fala, rápido, porque estou ocupado no momento – o visor do celular mostrava o número de Benjamin.

- Capeta, senta porque essa é uma notícia que não dá pra tu ouvir de pé.

- Se for sobre Silvano sou todo ouvidos, agora, se não, você está atrapalhando meu trabalho.

- O maníaco é a bola da vez, cara. Você acha que eu iria te importunar com outra coisa? Enfim, como se isso fosse ainda mais possível, o Silvano ficou maluco e matou o companheiro de cela!

- O quê? – Geraldo deu um pulo da cadeira, derrubando papéis no chão enquanto jogava tudo dentro da pasta e já se arrumava para sair. – Quando foi isso e o que aconteceu?

- A gente ainda não tem todas as informações, mas parece que o companheiro era um condenado por assassinato. Convertido lá dentro da prisão e que aparentava boa conduta há alguns anos. Capeta, essa é sua, cara. Consegue algo mais?

- Não precisa pedir duas vezes!

Desligou e correu para a saída, deixando a pasta cair em certo momento e parando no ponto de ônibus já exausto. Sua idade não era propícia para aquele tipo de exercício. Parou o ônibus e entrou, sentando-se no banco do fundo, ao lado da janela, e percorreu todo o trajeto imaginando o trabalho de sua carreira.

Desembarcou em Itaguaí apressado, analisando mentalmente todas as ferramentas que tinha à disposição para dar continuidade ao trabalho. Se conseguisse alguma foto da vítima seria consagrado. Já imaginava a notícia de primeira capa.

“Floriculturista novamente em ação.

Na tarde de quarta-feira, Silvano Fontoura, conhecido como Floriculturista, assassinou brutalmente seu companheiro de cela. Euzébio Ferreira da Costa tinha 56 anos e estava preso há 10, acusado por assassinato e formação de quadrilha. A vítima apresentava bom comportamento e tinha liberdade prevista para o ano que vem. Euzébio deixa esposa, três filhos e dois netos.”

Chegou na delegacia às presas. Uma montoeira de pessoas se aglomerava na entrada, enquanto os flashes estalavam de todos os lados. Capeta sacou o gravador e se meteu no meio da muvuca. Lançou inúmeras perguntas não respondidas, mas sabia que seria assim. As respostas ele conseguiria depois que a poeira baixasse, e não se importava em esperar. Acompanhou a massa por mais alguns instantes e então viu o souvenir nas mãos do policial.

Na frente, um saco preto levava o que aparentava ser um corpo. Atrás, nas mãos do oficial, um pacote transparente apresentava algo que certamente era uma evidência. Uma massa vermelha e pungente, retorcida como metal em padrões quase regulares. O objeto sacolejou na mão do homem, e durante um curto momento, Geraldo imaginou ter visto uma flor.

***

Cheguei puto dentro dos panos ao fórum. O arrombado do Silvano matou o companheiro de cela e agora tudo está um inferno generalizado. A televisão, jornais e internet não me deixam em paz. Na internet estou sendo mais malhado do que boneco de Judas. Entro pela entrada lateral do prédio, onde há menos jornalistas, mas há um bom bocado de policiais. Bufando de ódio entro na sala de audiências, o maldito está lá, assobiando tranquilamente, pouco se fodendo com os efeitos da cagada que fez.

Cheio de vontade de estourar de porrada o Silvano, grito:

-Você comeu merda?! O que você fez fodeu a nossa vida! Fodeu! Agora geral vai cair matando e...

Subitamente o desgraçado salta sobre mim, veloz como uma cobra e agarra meu pescoço. Caímos no chão, e lá, ele aperta minha garganta com força enquanto fala calmamente:

-Quem pensas que és? Quem? Cala-te! Cala-te ou te mato!

Assim que termina de berrar, larga minha garganta e calmamente volta para o lugar que ocupava. Por alguns instantes permaneço deitado no chão, tentando recuperar o folego enquanto as manchas brancas que pipocam em meus olhos diminuem de intensidade e número. Ao normalizar o ritmo da respiração, me levanto e saio da sala. Do lado de fora, pego meu maldito celular e ligo para Bechard. Que se foda o dinheiro, vou largar o caso e atuar contra Silvano. Vou foder a vida desse viado, de vez.

O celular chama e enquanto espero que o escroto do Bechard atenda, noto que um toque telefônico se faz na sala de audiência, estranho isso e abro a porta para ver o que ocorre e então meu queixo cai. Silvano está de costas com as calças abaixadas e o som da chamada, abafado, está escapando do rabo dele. Boquiaberto, observo o aparelho escapar do cu e ser apanhado com destreza por Silvano. Ele calmamente leva o aparelho até a orelha e o atende, então escuto Bechard me responder:

-Alô? Sérgio? Como está o caso?

Chocado ao descobrir que Bechard e Silvano são o mesmo desgraçado, grito:

-Filho da puta! Eu vou te matar, seu arrombado!

Corro em direção de Silvano e enquanto ele se vira para me encarar, sorri. Da forma mais debochada, ele sorri.

***

Depois daquilo eu me senti bem melhor.

Ter novamente o sangue correndo nas veias, escorrendo pelas mãos enquanto os dedos trabalham... como, em tão pouco tempo, pude esquecer da esplendorosa beleza da carnificina artística pelo qual tanto me dediquei?

Alicia, Amanda, Gabriela, Fernanda, Roberta, Joana, Angélica, Ana Flávia... Euzébio, aquele puto do caralho, não foi uma flor tão bonita como qualquer outra seria, mas ele deu uma flor. Como aquelas que a gente encontra em qualquer plantinha vagabunda nascendo no meio do mato.

O deslizar saboroso da sua pele me fez sentir jovem novamente. Ainda quero morrer, e acho que esse é um desejo que não vai passar, mas me sinto vivo de novo.

Tu puseste flores no teu jardim, e delas brotaram a beleza do mundo. As minhas tomam conta de tudo. O cheiro, a textura o sabor... formigas andam sobre a pele quando escuto o som do músculo dilacerando; o esguicho vermelho quando se aperta algum tendão; olhos mortiços vendo dentro e através do mundo.

É inebriante, um vício frenético e implacável.

A porta que bate me tira de meus devaneios, enquanto o advogado almofadinha entra na sala.

Eu estou louco?

– Você é maluco, cara? Usou algum tipo de droga aqui dentro dessa merda? – Ele me indagou com a disfarçada autoridade. Não a tinha, e eu sabia disso. Ele não.

– Qual o motivo de tanto alvoroço? – Confesso que aquilo era bem divertido. – Sim, eu matei um homem. E não me arrependo.

– Não, você não matou um homem... – ele levantou e pôs as mãos no cabelo, andando de um lado para o outro. Uma cena cômica se observada do ângulo correto – não é simples assim. Você simplesmente fodeu com tudo! Tem noção da merda...

Não esperei que ele acabasse de falar. Saltei da cadeira e minhas mãos se fecharam em volta de seu pescoço. Senti o cheiro da carne sem nenhum esforço. Eu não podia ver meu próprio rosto, mas sabia que ali havia um sorriso estampado. Apertei o pescoço de Sérgio, o dispensável advogado, durante alguns segundos, enquanto seus olhos de porco me imploravam pela vida. Ali tinha medo. Tanto quanto o meu. Os dedos se fecharam com mais força por alguns instantes, como o ápice de um orgasmo psicopata, e soltaram logo em seguida, com muita relutância.

Ele se afastou, arfando como um peixe respirando em terra. Puxou o telefone antes de sair, provavelmente ligando para mim. Eu apenas ri. Saquei o celular do bolso na hora em que ele voltava para sala, olhando embasbacado enquanto eu o atendia alegremente, utilizando um dos meus muitos dons. As vozes que eu que conseguia reproduzir eram tão diversificadas quanto as que povoavam minha cabeça.

– Alguma atualização do caso, Sérgio?

– Você... – ele soltou o telefone e eu vi fúria em seus olhos. Aquilo me encheu de uma alegria doentia. – Era você o tempo todo, seu puto!

– Parece que você me pegou – levantei as mãos. O mocinho havia descoberto os planos do vilão, e estávamos nos encaminhando para o fim da novela.

– Eu vou te matar, seu filho da puta!

Ele correu, vermelho como um pimentão. Tropeçou no pé da mesa, as mãos à frente em forma de garra, e bateu com o peito no chão, caindo com a cara na direção do meu pé. Fiz o que qualquer um faria; chutei. Um risco de sangue voou da boca, criando um padrão estranho no piso da sala. Levantou irado, tentando me socar no rosto e eu desviei, gargalhando de alegria. Acertei uma joelhada em seu estômago e rodopiei ao seu redor, como um arlequim eufórico. Chutei o queixo que estalou feito um galho podre, e vi o corpo fraco daquele maldito filho da puta caindo. Ele chorou enquanto era arrastado para o lado da mesa.

Ainda me lembro dele implorando quando levantei a perna de ferro. No momento em que já não conseguia se levantar.

– Você é um demônio – me disse, com a frase escapando por onde antes existiram dentes.

– Bem-vindo ao inferno – foram as últimas palavras que ouviu.

Botei o pé da mesa apoiado sobre seu rosto, fui para o outro lado, subi e enquanto chegava na direção em que o ferro repousava estrategicamente sobre sua face, ele gritou. Olhei em seus olhos de porco uma última vez - vertiam pequenos fiapos de sangue - e saltei.

O som da carne sendo atravessada ainda me causa arrepios.

***

O idoso aguardou pacientemente a chegada de seu entrevistado. Após meia hora, os guardas trouxeram Silvano e o algemaram na mesa de ferro chumbada no chão.

Após uma breve série de instruções, os guardas deixaram a sala e então Capeta começou a entrevista apertando o botão de start de seu gravador.

-Muito obrigado por conceder essa entrevista. Podemos ser diretos? O tempo que me foi dado é bem curto.

Sorrindo para Geraldo, o assassino afirmou que sim com um maneio.

-Por que o senhor matou seu advogado?

Ainda sorrindo, Silvano respondeu com um quê de desprezo na voz.

-Porque era um inútil e chulo. Merecia sofrer de maneira muito pior, mas naquele momento eu não tinha ferramentas que permitissem deixar minha arte fluir.

Enquanto o jornalista tomava nota de algo no seu tablet, lançou outra pergunta:

-Segundo as investigações o senhor enganou seu advogado, se fazendo passar por outra pessoa para contratá-lo. Por que o escolheu? Era algum desafeto ou dívida de sangue?

O sorriso do psicopata se alargou e ele respondeu enquanto um fiapo de baba fugia de seus lábios:

-Sim, ludibriei o tolo com facilidade... E não havia qualquer motivo. Vi o perfil social daquele estafermo enquanto utilizava a internet, me pareceu um tanto parvo e por isso o usei para buscar minhas flores. Foi por mera casualidade e a falta de senso dele que me permitiu ter acesso novamente à minha arte. Era um ególatra e dos mais descarados. Um fato “criminal” de enorme monta surge e ao invés de contratarem advogados renomados, contratam um advogado medíocre? Somente um estúpido acharia isso normal, mas como disse: Ele se julgava importante demais.

Capeta movimentou a cabeça de forma afirmativa, como se concordasse com o que foi dito.

-O senhor foi declarado esquizofrênico e por isso, inimputável. Parte da população diz que o senhor não é louco, mas sim, endemoniado. Dizem que o senhor é o anti-Cristo, o Diabo. O que o senhor acha disso?

Silvano ao ouvir a pergunta, apenas gargalhou desbragadamente, demorando alguns minutos para proferir uma resposta.

-Não, não estou “endemoniado”. Esse tipo de coisa não existe. Seres com patas de bode e chifre são fábulas criadas para domar a turba. Meros espantalhos para manter a ordem social.

Novamente o jornalista balançou a cabeça afirmativamente.

-Eu estive em sua casa e vi livros que tratavam sobre demônios e pactos. Se o senhor não acredita que haja demônios ou a possibilidade de possessão, por que dos livros? Não eram seus?

O psicopata apoiou o rosto sobre suas mãos e ainda sorrindo, respondeu:

-Sim eram meus e eu não desacredito em demônios, pelo contrário. Creio que demônios existam.

O jornalista ao ouvir isso, encarou Silvano com a expressão carregada de dúvida.

-Não entendi. O senhor afirmou que não está possuído como o povo acredita, mas diz acreditar em demônios? Pode explicar?

Prontamente Silvano respondeu.

-Obviamente. Os seres fantásticos criados pela religião, com características animais e tantas outras parvoíces, jamais existiram, no entanto, demônios existem. Eles habitam todos os homens, na verdade esta é a real natureza do ser humano. Somos meros montes de mentiras, vaidade e luxúria. Criaturas desprezíveis que para justificar seus medos e falsidades, inventaram falsas noções como moral, ética e sentimentalismos. Mas alguns privilegiados têm noção dessa verdade e se libertam dessas amarras. Sou um desses felizardos.

Geraldo ficou atônito ante a falta de empatia e cinismo de Silvano. Durante alguns segundos, apenas observou o homem sentado à sua frente que sorria despreocupado.

-Então o senhor...

Mas antes que pudesse terminar a nova pergunta, os agentes adentraram na sala, dando fim a entrevista. Enquanto era desalgemado da mesa, Silvano disse:

-Mas tudo o que lhe disse é mera opinião pessoal. Os outros têm suas percepções próprias sobre o tema e são várias. É o que as pessoas costumam falar de nós, pessoas com visão apurada do mundo... somos uma legião.

E sorrindo ele foi levado para sua cela.

Temas: Assassinos seriais.

Possessão?

TTAlbuquerque e Jefferson Lemos
Enviado por TTAlbuquerque em 21/02/2016
Reeditado em 28/02/2016
Código do texto: T5550990
Classificação de conteúdo: seguro
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