A posse do Porco

Luís Fernando chega em casa, o muro de dois metros só rebocado e protegido por uma cerca elétrica sugere que a periferia é barra pesada. Poucos antes, descendo a rua, dois bêbados, daqueles que nada tem a temer, comentavam da morte do casal recém-chegado no bairro, coisa estranha, antes fosse tiro, pelo menos a gente sabe de onde veio, agora! Com a cara toda arranhada, quase comida, é coisa de outro mundo...

Atravessa o muro, abre a porta, ascende a luz, o bafo da casa vazia invade as narinas. Tira os sapatos, retorce o dedão do pé direito, a dor prazerosa do dia trabalho é inconveniente, ignorada, prossegue com o ritual da água fresca do filtro de barro, do andar descalço até o tapete do quarto em busca das chinelas de dedo. Senta, amaça a lisura da cama, sente que o dia se esvai, evapora, vira traça na parede. As almas penadas abrigadas no interior destas cascas, parecem ressurgir do passado e quererem tomar forma nesta era, movimentam delicadamente. Luís Fernando esfrega os olhos, eles ardem, analisar tantos documentos cansam, estou vendo coisas, ou é o vento, mas a janela é fechada.

Observa por outros instantes, inertes, imóveis, tocadas pelo pó apenas. Uma aranha de pernas finas caminha feito modelo estrangeira pelo teto, no encontro dele com a parede, para e faz dali o lar, amanhã feriado, sexta-feira Santa, passo a vassoura e tiro todos estes bichos. O corpo é atraído pela horizontalidade da cama, prestes a ceder ao cansaço, Gilda o chama.

- Luís! – a chave vira na porta da sala, Gilda chega com sacolas do mercado da esquina, pesados sacos.

O marido companheiro levanta pronto para ajudar com os sacos barulhentos. Fica impressionado, como os braços finos de Gilda conseguem carregar tamanha quantidade de suprimentos! Repara nos dedos magros e marcados pelas alças, certa palidez recobre a pele que sofreu a pressão do peso, lembra a de morto. Ele abre o gabinete da pia, ela, esposa sadia e animada, enquanto abre a geladeira conta da antiga amiga que encontrara no mercado, está tão bem, nossa, deu a volta por cima, emagreceu. Excitada acima de média, muda o rumo da prosa, Luís, dei muita sorte, o preço da carne estava tão baixo, claro, todos querem comer o peixe, a carne sobra, amanhã faremos um churrasco, apenas para nós dois, só faltou o carvão. Separa em sacos transparentes e os enfia no frízer. Luís, ao guardar a caixa de caldos de carne, esbarra no pote de azeitonas, que explode no chão e junto com as dezenas de azeitonas, pedaços de cacos de vidro. Gilda grita, assustada e com os dedos finos na boca, observa em pânico os frutos da oliveira se esconderem debaixo do fogão, do paneleiro, da própria geladeira branca. O tímido e discreto Luís Fernando, movido pela excitação e depois pelo terror da outra, sorri por impulso, têm pouco domínio de si e menor ainda sobre as azeitonas.

Leva certo tempo para organizar a bagunça e limpar a sujeira. Gilda disfarça o nervoso, limpou tudo hoje. Ao varrer os cacos, um que se alojara no vão precisa ser retirado com as mãos. Corta-se na altura do pulso! Luís, estranha o local do ferimento, mas como? O sangue escorre sem piedade, marcando o piso claro. O marido corre ao banheiro em busca de uma toalha para conter o sangue, ao entrar, institivamente reparava no sanitário, parece que o fundo da água vibra, mínimo tremor das profundezas é capitado por ela. Num ímpeto, aciona a válvula acima do vaso, a água limpa demora a sair, algo na transparência tremulante o convida, desce a descarga! Luís, traga logo!

Até a hora do jantar, as cenas que antecedem o costumeiro jornal são destorcidas, diferentes, fora da rotina. Pela força do hábito, desencadeiam-se normalmente na casa de esquina da periferia asfaltada de uma cidade qualquer do interior, onde as lâmpadas das vias são amarelo mercúrio e as sombras se deslocam sem preocupação de serem identificadas. Num interior cuja nascentes ainda resistem, brotam do chão, mas se encontram com o esgoto, forjando uma mata auxiliar por onde escorrem o líquido vital e mortal com o cheiro de mato podre que chega ao fogão de chamas azul.

O casal come sem se preocupar com o lixeiro, com o vizinho, com os carros que desviam das lombadas da rua de cima, há muito esqueceram o corte, que logo parou de sangrar. Sentados à mesa redonda coberta, encaram de cabeça baixa, cada um o seu prato. No Lar de Gilda e de Luís, casa que fica no findar do bairro, concluem a refeição, tiram as panelas, juntam os pratos dentro da pia. Ambos cansados, descansam diante da televisão, depois Gilda levantará lavará a louça, na mente resguardará as reclamações - pouca ajuda, pouco homem, pouca colaboração no casamento.

Sentados de barriga para cima, jogados no sofá, cada qual no seu canto, se respeitam, cada qual a seu modo, respirando de boca fechada, assim evitam o bafo de picadinho com pimentão. Amanhã é feriado, Sexta-Feira da Paixão, vejamos onde terão as representações. Gilda, podemos deixar o churrasco para outro dia? Deixe de ser bobo homem, são só tradições, acha mesmo que Deus vai se incomodar? Ele quer nos ver felizes. O noticiário noturno dá a introdução costumeira com notas quase que universais, Gilda se cala, Luís Fernando acompanha e subjugados por conta própria, se atualizarão.

As notícias vêm, o silêncio é quebrado pelo marido:

- O povo tá assim porque quer, tem nas mãos a chance de mudar, cada um fazendo a parte que lhe cabe.

- É este maldito governo! A mudança tem que vir de cima para baixo – rebate a mulher.

- De cima? Para mudar só bomba na cabeça deste povo alienado, matando tudo – se contrapõe masculinamente.

-Que besteira Luís, ainda há esperança!

Propaganda, em seguida o segundo bloco do jornal, o da violência.

- Onde vamos parar? Quantos anos tinha o bandido que matou a velha? Viu? O problema está em baixo, na população, no povo, acabar com esta gente.

- Ela tinha sessenta e sete – a observação da mulher veio de outro lado.

- Essa veia também, o que fazia na rua aquela hora? Viveu bastante,

- Ai, credo, eu quero viver mais...

- Todos quer...

Luís é interrompido com Gilda o beliscando, no tela, sob uma voz de um repórter de barbas o bairro que moram brilha diante de tantas informações longínquas:

- Olha! É na rua de trás...

- Aumenta o volume! Quero ver, nossa! É a dona Maria dando entrevista.

- Minha nossa Senhora, que caso mais terrível?

- Chegou conhecer os dois?

- Não, acho que eu vi ele pegar o ônibus umas duas vezes no mesmo horário que o meu.

- Ah! Ela eu vi no mercado, sim, era ela, tem três dias, quando comprei ovo para fazer a torta. Virgem Santa! Que história.

O bloco da violência continua.

- Vamos mudar de canal – sugere Luís.

- Ai, não, quero ver o que tá acontecendo, ficar informada, vai que falam mais do caso daqui da rua de três.

- É, tá certa.

O tédio do jantar é quebrado pela luz dos comentários doutras notícias violentas, se unem novamente em casal, diante dos fatos cotidianos, até se divertiram com dois comerciais. Entre os mais tediosos, conta sobre o dia na venda de calcinhas, até que foi bem, ele sente-se confortável para reclamar das declarações de imposto de renda que não pararam de chegar no escritório de contabilidade. Felizes, unidos, a novela com a novela prestes a começar, ouvem um barulho estranho, que rouba a atmosfera alegre:

- Ouviu isso?! – Gilda é a primeira identificar. Luís Fernando muda o foco, força a audição, alguns instantes e em seguida consegue.

Assustado, baixa o volume do aparelho

- Ouvi sim, Gilda, o que será é? – desliga de vez o televisor.

Gilda é do tipo da mulher que fala com os lábios fechados, morde o canto direito, o medo súbito estrangula o pescoço venoso. Trêmula, segura a perna peluda do esposo que usa shorts branco, ele sente o toco frio, dos dedos brancos que pareciam mortos. O som é um grunhido, um rosnar diferente é sombrio. Concordam sem dizer um ao outro que não é ladrão, porém, devido ao sinistro barulho, nasalado, asmático e desesperador, preferiam que fossem.

- Calma mulher! – Luís toma partido de homem protetor da casa - é um tipo de bicho saído do mato da frente, este povo vive jogando coisa aí!

- Porco! Não percebeu? É um porco! Gilda sentencia a conclusão. O Marido assusta-se ainda mais com a desfiguração da mulher, que nada tinha em beleza, todavia, agora, com o reconhecendo do sonoro ronco, era demoníaca. Sem reação, devolve um singelo:

- Ehn?

- Luís Fernando! – é histérica - é um porco, ouça o ronco!

O homem se aproxima da esposa que o agarra aterrorizada. As mãos frias, a boca mordida repuxa a pele do nariz o tornando mais fino. A pálpebra é rocha-azulada, os braços finos revelam as veias por de baixo da pele mole. Tem que ter força, sucumbir ao desespero levará o resto da noite embora

- Calma mulher, é um porco...

- Porco endemoniado! É o porco... o porco que... – hesita sem emoção.

- Diga Gilda, diga! – suplica, sabendo o que viria.

De olhos arregalados, o pouco cabelo fino e liso da mulher acentua o alongamento da testa:

- O porco do diabo que matou o casal da rua de trás... e ele...

- Credo! mulher! – Luís Fernando dá um pulo, se afastando do saco de ossos que treme a sua frente – Credo! De onde tirou essa história?

- Cale a boca – os lábios contorcidos conseguem ser autoritário – ele está aqui! É um porco que abriga um espírito ruim, cale a boca, pode nos ouvir – sussurra.

- Ei! Se controle, está numa crise nervosa.

- Cale a boca! Um grito fino cheio de horror no timbre agudo acusa o estado de Gilda – Agora é tarde! É tarde, já nos ouviu, ouviu você, a mim...

- Gilda! Está me assustando, é apenas um animal que saiu do mato, logo volta para lá! Se acalme! – sacode a estranha esquelética.

- Ouça, ouça! – os olhos ébrios mergulham na cara flácida. Ouça! Ouça! É o porco do diabo, porco de satanás, porco do demônio! OH! ele te ouviu... ele veio nos matar, matar você e me devorar...

Antes de concluir o barulho de um pausa, houve-se silêncio. Um, dois, três, quadro, cinco segundos e o rosnado desaparecera

- AH!!!!! – Gilda berra em pânico. Atordoada corre a cozinha.

- Minha nossa! – Luís não mais consegue contrariar a forte opinião de Gilda, crê que atrás do muro sem reboco há uma entidade do mal.

O portão é sacudido pelo monstro que com suas fortes garras arranha a chapa de aço. Parece fazer vibrar toda a casa, a imagem da tremulada água do vaso sanitário invade a mente de Luís, algumas traças do teto caem em seu rosto, a aranha abandona seu posto. O rosnado é bruto, grosso, sufocado por uma via nasal com aberturas amortecidas, de uma frouxidão congelante.

- Te disse! – grita Gilda – te disse que é o porco do diabo, ele quer entrar! Estamos perdidos! Socorro! Socorro! Se afaste Luís, saia de perto – empurra o marido. Tinha ido à cozinha, recolhido as carnes que recém guardara. Lança os pacotes pode cima do muro – tome, tome, coma esta carne, pronto! Me arrependo!

- Gilda! Parece louca! Para com essa loucura, é um animal, logo vai embora!

Os arranhões se intensificam, o rouco frouxo parece ter saído de um pedaço de toicinho. Dão uma pausa, voltam, incrivelmente mais poderosos e acompanhados com batidas, bam! Bam! Bam! o animal projeta o corpo com violência, duzentos quilos são fortemente investidos contra o portão.

- Vai entrar! O porco entrará! – Gilda se distancia do muro, retorna e passa direto à cozinha. Meche no lixo, acha o que quer.

Luís avança, a cada ofensiva no portão, dá pulos de susto. A sombra por de baixo da placa de aço move-se freneticamente para lá e para cá, como um humano possuído pela loucura. Busca descobrir o ser que está do outro lado. A respiração é difícil, para lá, para cá, rosno, loucura, carne espalhadas, constata!

- Mulher, ligue para a polícia!

Tarde demais... ele está possuído...vaga e etérea, se encostada nas almofadas, televisor ligado, é hora da novela. Na mão direita de Gilda, o caco de vidro pontiagudo. Luís Fernando vê o focinho preto com pelos grosso farejando a entrada.

Fábio Piantoni
Enviado por Fábio Piantoni em 25/03/2016
Código do texto: T5584650
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