CONTO DE SENZALA

Tornara-se cada vez mais difícil encontrar empregado disposto a trabalhar nas lavouras de café da fazenda Jacarandá. A culpa disso se devia aos boatos que corriam nas bocas de alguns supersticiosos. Juravam, fazendo o sinal da cruz, que podiam ver nas noites de lua cheia, um homem e uma moça caminhando juntos pelos cafezais da fazenda. Outros que ainda eram recebidos na casa grande, afirmavam ouvir ruídos estranhos vindos dos quartos vazios do casarão. Porém, essa estória começou há muitos anos atrás.

Coronel Justiniano

Nunca quisera ser fazendeiro. Quando jovem havia sido mandado a província como convinha aos filhos das famílias abastadas de sua época. Lá tomara gostos refinados, se apaixonara varias vezes por belas sinhaninhas que habitavam os suntuosos casarões das ruas prósperas da cidade de São Paulo, cujas portas estavam sempre abertas às influências de seu pai. Saciara inúmeras vezes seus apetites carnais nos corpos opulentos das prostitutas que enfeitavam os belos bordéis da cidade. Era totalmente compreensível que não se sentisse feliz tendo que voltar as pressas para a fazenda do pai que fora acometido por um ataque cardíaco. O jovem Justiniano recebeu assim sua herança, como um fardo que não se quer carregar, acres de terra, milhares de pés de café, centenas de escravos e uma esposa que não pudera escolher. Chegara da capital, já com o pai no leito de morte a esperá-lo para o suspiro final. Na cabeceira o testamento do qual era único beneficiário e um contrato de casamento que fora lavrado em seu nome. A esposa havia sido escolhida pelo dote, um bom pedaço de terra que divisava com a fazenda do pai. Tratava a mulher com o respeito que lhe era devido e o distanciamento que lhe era permitido. Maria Amélia era moça desprovida de atributos físicos, seca de carnes e encantos, porém possuía sangue quente, fogo que o marido jamais se importara em apagar. Seus ardores ela os escondia debaixo das roupas de cores sóbrias e de corte reto, sua solidão ela compensava administrando a fazenda oficio que o marido lhe entregara de bom grado. Possuía tino pra negociar sacas de café e manter controle sobre os negros da senzala. Muitas vezes havia comparecido pessoalmente as sessões de tortura e estipulado ela mesma as chibatadas que convinham a cada negro insolente que havia tentado sair dos limites da fazenda, ou a cada negrinha com a qual o marido teimava em ter o mal gosto de bolir. Essas ela mesma fazia questão de castigar pessoalmente, suas mãos cruéis, impiedosas na empunhadura do chicote, haviam levado a morte desumana algumas dessas negrinhas, vitimas do apetite lascivo do coronel e do ódio cego que vinha do ciúme e do despeito que consumia a Sinhá. O coronel nessas ocasiões se fechava no escritório de madeira de lei escondido por trás da mesa do falecido pai. Presa rendida de suas próprias fraquezas se embebedava, quase até o coma, quando a bebida ensurdecia seus ouvidos e cegava-lhe a mente. Detestava aqueles castigos cruéis, mas não podia evitar. Apreciava as carnes abundantes e rijas das filhas daquele povo africano. Sentia-se livre no corpo cativo delas, podia tocar-las sem pudor e calar seus gritos caso elas se recusassem a servi-lo. Ele sempre as desvirginava tão logo lhes nasciam os pelos púbicos, não sentia remorsos por isso visto que elas lhe pertenciam, mas se sentia culpado quando a esposa flagrava algum desses encontros e dirigia ele um olhar de repto, arrastando a escrava indefesa para o tronco. Ainda agora podia ouvir os gritos das imoladas. Mesmo agora depois da libertação dos escravos, seus espíritos vinham ter com ele durante a noite, gemendo e chorando aos pés da cama, todas juntas compondo um coro lancinante. Só silenciavam quando ele concordava em acompanhá-las até o tronco onde haviam morrido. Então dançavam para ele ao som de batuques e atabaques, em seus ritmos excêntricos, pequenos espectros que nem a morte havia libertado. Debalde, mandara que se lhe rezassem missas, gastara sacas de café convencendo o padre a tentar encaminhar para longe as almas penadas das infelizes, porem nada adiantava, continuavam a buscá-lo nas madrugadas e a torturá-lo. Quando amanhecia os empregados da fazenda iam encontrá-lo, desmaiado de medo e horror. Havia mandado derrubar o tronco, mas o machado forte havia se partido no primeiro golpe, o que fora um aviso: elas não queriam que se derrubasse o tronco e ele para não irritá-las ainda mais, cedeu. Mandou então que o lavassem, mas nada retirava as manchas do sangue escravo que tantas vezes o banhara, antes parecia que haviam penetrado nos poros da madeira e pintado de rocho sua superfície lisa e macabra. Assim o tronco permaneceu, haste sólida, dedo em riste a apontar o céu, crítica silenciosa e memória muda de abusos e sofrimentos.

Numa dessas noites infelizes, Maria Amélia o tinha seguido, depois de te-lo visto por varias noites se levantar e sair pela madrugada. Não conseguia atinar a razão das saídas já que os malditos negros já haviam ido embora levando com eles suas negrinhas. De posse de um lampião, seguira atrás dele, ficando estarrecida ao ver Justiniano agarrado ao tronco, a chorar e gesticular febrilmente enquanto dizia palavras desconexas. Tirando suas próprias conclusões, ficou cega de ódio do marido, então chorava ele, pelas negras que ela havia matado? Sentia saudade dos corpos suados das negrinhas das senzala, quando podia ter a ela quando quisesse? Seu coração se encheu de ódio pelo marido, seus sentimentos, mistura de amor, ódio e ressentimentos, enterraram Justiniano ali, aos pés do tronco. Na manhã seguinte avisou-o que não ocupariam mais o mesmo quarto. Recebeu como resposta, um olhar vazio e desinteressado, por ele teriam dormido separados desde o nascimento de Rosalia. A filha era a razão pela qual o coronel não perdera de vez a sanidade. De ossatura pequena e delicada, possuía tez clara, e um rosto onde os traços se harmonizavam, os cachos negros e rebeldes que nenhum penteado podia segurar emolduravam as feições da bela menina. Possuía uma boa índole e muito pouco da tirania comum às crianças que crescem alcançando a satisfação de todos os desejos. O pai sempre fizera questão que ela possuísse muitos brinquedos e que se vestisse com cores claras e alegres, temia que ela tomasse os ares taciturnos e ingraceis da mãe. Assim Rosália cresceu, mais sob a influencia do pai que da própria mãe. Ela era a alma e a alegria da Casa Grande, aos quinze anos ainda mantinha as maneirices da infância. Naquela manhã, tomava seu café as pressas completamente alheia a crise que se desenrolava entre os pais.

Maria Amélia trazendo o semblante fechado e taciturno que tanto irritava o coronel, de vez em quando dirigia a ele um olhar ressentido e acusador, como a esperar que ele esboçasse algum gesto de revolta por haver sido sumariamente despejado de seus aposentos conjugais. O coronel porem estava absorto, totalmente envolvido no que lhe contava Rosália:

__ Papai, precisava ter visto o potrinho de Malhada, mal havia nascido e já tentava se por de pé, nunca vi um animalzinho tão valente. Não gostaria de ir vê-lo comigo?- dito isso, apressou-se em engolir o resto de pão com manteiga que mal mastigara, já se preparando para deixar á mesa.

__ Rosália, sente-se ! Que modos são esses? Você já não é uma criança a que se possa perdoar tanta falta de modos e de compostura, que idéia foi essa de ir aos estábulos. O que se dá durante os nascimentos não são próprios de serem vistos por mocinhas de sua idade. Devia se dedicar mais aos seus bordados ao invés de andar por ai perdida pela fazenda. - despejou Maria Amélia

__ Mamãe, sabe que não levo jeito para bordar e coser, provavelmente terei puxado a senhora e vá me ocupar das fazendas de meu marido – disse isso piscando travessamente para o pai.

__ Rosalia, mais uma insolência e irá passar o resto do dia bordando em seu quarto! Alem do mais pode ser que seu marido tenha idéias próprias sobre como dirigir sua própria fazenda- disse lançando um olhar de desafio ao marido. Esse por sua vez, nem ao menos lhe respondeu a provocação. Dirigindo-se a Rosália, chamou-a:

__ Se já terminou, vamos aos estábulos. Você precisa escolher um nome para o novo potrinho. Vá pegar o chapéu. Somente quando Rosália se afastou o coronel dirigiu o olhar à esposa.

__ Já pedi a você que não despejasse suas amarguras diante de Rosália, se lhe falta tempo para seus próprios bordados, contrate um administrador, talvez isso lhe diminuísse um pouco esse aborrecimento e lhe fisesse tomar ares mais leves e delicados, mais de acordo com sua condição de sinhá. Quanto a Rosália deixe-a, não a quero amargando horas fazendo coisas que não lhe agradam quando o dia lá fora está tão bonito. Deixe-a. Houve entre eles uma longa troca de olhares, onde cada um pode enxergar no outro o abismo intransponível de mágoas e descasos que havia se tornado suas vidas. Os passos de Rosália no corredor de madeira encerada pos fim aquela guerra muda, onde não havia vencedores.

Depois de vários minutos Maria Amélia ainda permanecia sentada diante da xícara de café que ha. muito havia esfriado, como suas mãos e sua alma. O que a torturava era que amara o marido. Apesar de saber que ele havia sido forçado ao casamento, acalentara esperanças de que ele viesse a amá-la um dia. Perdera de vez as esperanças logo após o nascimento de Rosália, quando ele deixou de procurá-la preferindo então andar atrás das negras jovens da senzala.

A lembrança de tantas amarguras caiu sobre ela, causando um gosto amargo na boca fazendo-lhe empertigar os ombros e finalmente levantar-se. Tomou o chicotinho de montaria e o chapéu, saindo para sua visita matinal aos cafezais, era preciso supervisionar o trabalho dos trabalhadores italianos chegados à fazenda logo depois da libertação dos escravos.

Estes colhiam o café, embalados pelo ritmo das alegres tarantelas. Nas peneiras que as moças jovens balançavam no ar pulavam os rubros grãos de café e as folhas soltas, os pequeninos levados a lavoura brincavam recolhendo os grãos que escapavam pelo chão. De repente o cavalo de Maria Amélia empinou as patas dianteiras, assustado por um dos meninos que se aproximou do animal, brandindo um ramo com o qual estivera brincando. A mãe que presenciava a cena, num gesto instintivo se lançou sobre a criança caindo com ela a poucos centímetros de distancia antes da descida das patas ferozes do animal. O que se seguiu ali foi uma verdadeira panacéia-: o menino depois de levar uns belos tabefes da mãe, foi passado de mãos em mãos, espremido e quase afogado pelos carinhos assustados das matronas que somente depois de alguns minutos o devolveram a mãe. Esta depois de passado o susto se abraçava ao filho fitando-o num misto de amor e adoração. Também ela Maria Amélia já fora amada daquela forma, Guardava dentro do peito as lembranças amorosas da mãe, meiga e delicada. Sua morte prematura deixara um imenso vazio no coração de Amélia. O que se seguiu a sua morte foi uma sucessão de internatos frios e impessoais que deixaram raízes de solidão desamparo na alma da jovem. Voltando de seus devaneios, resolveu deixar para depois às reprimendas pelo fato de terem sido trazidas crianças ao cafezal. Continuando por mais alguns metros pode enxergar Vincenzo a quem estivera procurando. Os corpos suados e os músculos retesados dos trabalhadores, que se ocupavam em carregar até as carroças as pesadas sacas de café recém colhido forneciam um espetáculo de energia masculina vigorosa que fez passar pelo corpo de Amélia uma onda de lascívia e desejo reprimido. A Vincenzo não passou despercebido o olhar de gula que a patroa lançou sobre o peito musculoso entreaberto na camisa. Não se surpreendeu quando a patroa agora perfeitamente controlada e no seu melhor tom de comando ordenou que ele comparecesse à Casa Grande na manhã seguinte.

Ele lembrava perfeitamente da chegada na fazenda depois de vários meses passando toda série de privações no navio infétido que o trouxera da terra natal. Viera fugido de um pai disposto a lavar com sangue a honra perdida de uma camponesa bonitinha com a qual ele passara tardes muito agradáveis.

Tão logo chegaram foram reunidos no pátio defronte a casa grande. O patrão fazia figura patética, tendo sido chamado às pressas depois de uma noite mal dormida passada em companhia das negrinhas algozes. Seu olhar vagava ora se fixando na patroa ora nos recém chegados. Quando parecia incapaz de engendrar qualquer comentário inteligível, soltou uma espécie de soluço e desandou a recitar um curto discurso de boas vindas aos recém chegados. Foi substituído pela esposa, figura empertigada e autoritária que de imediato principiou aos avisos de ordem prática:.

_Por hora serão acomodados na antiga senzala que foi adaptada para recebê-los, até que possam construir suas próprias moradias, o jantar será servido tão logo se acomodem e amanhã receberão as cadernetas para as compras no armazém da fazenda. Agora podem descansar, hoje não haverá labuta- disse de forma benevolente como se houvesse mesmo alguma possibilidade daquele povo cansado depois de tantos dias de viagem ter ainda alguma energia para o trabalho.

Aquela noite, deitado numa das dezenas de camas de armar que haviam sido instaladas pela senzala, Vincenzo revirava no leito sentindo-se sufocar enquanto seus patrícios vencidos pelo cansaço, dormiam a sono solto. A noite quente e sem aragem fazia exalar pela senzala o cheiro da transpiração dos italianos misturado ao suor cativo dos escravos que haviam vivido ali, fazendo Vincenzo sentir-se como um animal preso numa armadilha cruel. Maldisse o patrão apalermado e a vadia gananciosa da patroa. Ele não viera de tão longe para nada, iria vencer.

Agora depois de meses, Vincenzo conseguia vislumbrar a chance de deixar as lavouras e o trabalho mouro que realizava ali.

Chegando a casa grande deixou de lado as próprias lembranças, se anunciando a cozinheira, que o mandou esperar a porta enquanto via se a patroa gostaria de recebê-lo. Depois de longos minutos, foi levado ao escritório do patrão onde Maria Amélia o aguardava. Sem se levantar ela ordenou a ele que se sentasse. Intimidado pelo luxo do ambiente e pela frieza da patroa, Vincenzo já não se sentia confiante.

_ Vincenzo, preciso de alguém que me acompanhe durante a supervisão as lavouras. Tenho tido dificuldades na comunicação com os outros empregados. Você já fala fluentemente a nossa língua não é? Sem esperar pela resposta prosseguiu no seu tom autoritário:

_ Você será instalado no antigo aposento do antigo feitor de escravos e passará a fazer suas refeições na cozinha junto aos empregados da casa. Amélia agora o observava em suas tentativas de articular um agradecimento conveniente à situação. Vincenzo se encontrava aparvalhado e sem prumo. Isso era bem melhor do que ele esperara. Qualquer coisa seria melhor do que trabalhar debaixo do sol quente naquele trabalho mouro de arrastar as carroças as pesadas sacas de café. Retirou-se todo agradecimentos. Assim que Vincenzo deixou o escritório Amélia se dirigiu a um canto do escritório, aspergindo água da bacia de louça que havia sobre o aparador pelo rosto e pescoço. A excitação controlada a duras penas cedeu. Fechando os olhos ela reviu o rapaz que estivera sentado a tão pouca distancia dela própria. Quase pode sentir no corpo os longos dedos do italiano com os quais ele nervosamente girara entre as mãos as abas do seu gasto chapéu. Abrindo os olhos mirou-se no espelho, mal reconhecendo o rosto enrubescido que a excitação tornava menos duro. Na verdade ela não era velha casara-se muito cedo, quando contava apenas quinze anos. Hoje vinte anos depois ainda sentia os mesmos ardores da juventude, seu corpo perdera a magreliçe da mocidade e tornara-se mais farto sem, contudo parecer ostensivo. Suas atividades ao ar livre e as horas que passava sobre o dorso do cavalo lhe garantiam a firmeza das carnes. Cansara-se finalmente dos descasos do marido e de ser mulher honesta, agora era a vez dela Maria Amélia ter a sua vez,o marido devia isso a ela. Pensando assim terminou de se compor e foi ela mesma supervisionar o preparo dos aposentos do novo encarregado.

Se o coronel estranhou o fato da esposa fazer-se acompanhar continuamente pelo jovem empregado e das reuniões no escritório tornarem-se cada vez mais demoradas, não deu importância ao fato, prosseguindo na sua rotina: passando as noites aos sons macabros dos atabaques e os dias ao sabor da companhia de Rosália. Esta percebendo o abatimento que tomava conta do pai em alguns dias, se preocupava em fazê-lo feliz acompanhando-o nas visitas cada vez menos freqüentes a cidade e as longas caminhadas pelas ruas dos cafezais da fazenda. De braços dados caminhavam enquanto Justiniano lhe contava repetidas vezes as velhas estórias de família, de como seu bisavô tomara posse daquelas terras e desbravara as florestas até que o solo estivesse limpo e pronto para receber as primeiras mudas de café. Sim, agora tudo pertenceria a ela Rosália. Pensar assim parecia fazê-lo feliz, tornando os passeios cada vez mais regulares.

Na casa grande Vincenzo se esgueirava pelos corredores depois de ter deixado o escritório da patroa quando foi atingido por um corpo que se chocou contra o seu. Abaixando-se para retomar o equilíbrio foi engolfado por uma onda de cachos macios e perfumados. Uma emoção intensa tomou conta do rapaz e ele demorou-se a soltar Rosália, saboreando ao máximo o contato com o corpo macio da moça.

_ Desculpe, eu sou mesmo uma grande estabanada, correndo assim pelos corredores. Por favor, não diga nada a minha mãe, ela detesta essas minhas faltas de modos.

_Não se preocupe, não direi nada! Respondeu Vincenzo dando-lhe uma piscadela cúmplice.

_ Você é o novo administrador não é? Qual é o seu nome?

_ Vincenzo, ao seu dispor_ disse o rapaz.

_ Até logo Vincenzo _ dito isso Rosália se foi, rápida na tentativa de não se atrasar para o jantar.

A partir daquele dia Vincenzo não poupou esforços para criar oportunidades de se aproximar de Rosália, ora estava presente às visitas que a moça fazia aos pequenos potros, ora estava a postos para ajudá-la a subir em sua montaria. O fato é que aos poucos a menina ia se acostumando com sua presença, o fato de não haver pessoas jovens na fazenda a aproximava dele, fazendo Rosália esperar ansiosa pelos breves encontros com o novo amigo. Gostava de ouvir as estórias da terra natal, tinha pena do rapaz afastado da família, perdoando-lhe, os modos às vezes grosseiros. Não comentava os breves encontros com o pai ou a mãe, pela certeza da reprovação de ambos. Vincenzo por seu lado a tratava quase com veneração, gostava dela no seu jeito rude de ser. Estar junto dela o fazia querer ser uma pessoa melhor. Dera para evitar ao maximo as visitas ao escritório, inventando desculpas cada vez mais descabidas e atraindo para si a fúria decepcionada de Maria Amélia.

Estava se dirigindo ao escritório naquele momento. A patroa mandara chama-lo pela cozinheira, já que ele por três vezes havia ignorado o sinal combinado entre eles, que consistia no ato de Maria Amélia deixar cair o chicote de montaria ao final da rotina de supervisão. Jamais conversavam assuntos comprometedores durante o trabalho já que estavam sempre rodeados de gente, na verdade também não conversavam na intimidade do escritório. Quando se fechavam as portas Maria Amélia já o esperava, nesses dias não usava anáguas o que facilitava o ato sexual, jamais perdiam tempo com preliminares, seguindo quase sempre a mesma rotina. A patroa puxava-o pela camisa desabotoando-lhe os botões, para em seguida mergulhar as mãos nos cabelos de seu peito puxando-o para si. Era a partir dali que Vincenzo assumia o controle da situação, tomando-a nos braços, a deitando-a sobre a mesa de jacarandá, herança das primeiras arvores que o avô do patrão derrubara para abrir as preciosas roças de café, era ali que ela gostava de ser possuída. Tentara ser delicado das primeiras vezes, mas não era assim que a patroa gostava. Ela o queria de forma intensa, quase brutal. Terminado, Amélia virava-lhe as costas. Enquanto ele se vestia, cuidava de alisar as pregas das próprias roupas e organizar a desordem da mesa de trabalho. Nunca houvera palavras de amor entre eles. Fora assim no inicio, um acordo consentido entre eles, mas agora que conhecera Rosália o arranjo não lhe parecia mais satisfatório, não desejava mais os encontros com a mãe da moça, sabia que tampouco poderia parar. Foi nesse estado de espírito que bateu a porta do escritório atendendo o chamado da patroa. Tudo deu errado naquele dia, desde o momento em que adentrou a sala. Talvez ele houvesse demorado demais para vencer a pouca distancia entre a porta do escritório e as carnes túrgidas de Amélia, talvez fosse sua ousadia, fitando-lhe os olhos famintos, mas com certeza, a deserção de sua masculinidade ao ser puxado de encontro a ela foi que despertou o acesso de raiva da patroa, ferida cruelmente em sua estima de fêmea. Amélia, agindo de maneira totalmente contrária aos seus modos controlados tomou nas mãos o peso de papel que estava sobre a mesa arremessando-o com toda força de encontro à porta que Vincenzo fechara rapidamente.

O italiano deixara a asa grande remoendo a má sorte. Pronto, estava feita a besteira. Seria com certeza mandado de volta as lavouras a arrastar pelo resto da vida as pesadas de café, já não poderia juntar dinheiro se tivesse que gastar seus ganhos parcos comprando os alimentos caríssimos vendidos no armazém da fazenda. Sentia seus planos se desmantelando enquanto saia da Casa Grande. Nem mesmo a voz doce de Rosalia chamando-o foi capaz de tirá-lo do estado de prostração em que estava mergulhado.

_ O que houve, você parece pálido, está doente? perguntou-lhe Rosália preocupada.

_ Deixe-me não estou para conversas hoje-respondeu-lhe rispidamente sem ao menos cumprimentá-la.

Rosalia estremeceu diante de seu tom de voz ríspido e amargo. Voltando a Casa Grande passou o resto do dia entristecida e metida em pensamentos e preocupações com Vincenzo.

A noite já não podia controlar suas aflições. Assim que pode levantou-se da mesa do jantar indo à procura de Vincenzo.

Rosalia o viu de longe, enquanto se dirigia ao estábulo completamente embriagado depois de ter afogado as magoas na cachaça. Como seus aposentos estavam distantes, se jogou na primeira baia que encontrou vazia.

_ Vincenzo, o que houve? indagou a jovem seguindo atrás dele.

_ Rosalia, o que faz aqui ? Vá embora, disse entornando mais um gole da bebida que trazia nas mãos. Se ela soubesse com certeza teria ido, mas a moça só conhecia dele o que ele havia permitido a ela conhecer. Por isso mais uma vez ela debruçou-se sobre ele tentando dessa vez tomar-lhe a garrafa. Vincenzo totalmente embriagado girou seu corpo pesado sobre ela prendendo-a em seus braços.

_ Rosália mia. Murmurava tentando beija-la apesar dos protestos e das tentativas desesperadas que a moça fazia na tentativa de soltar-se.

_ Me solte, está me machucando.

_ Fique quietinha vou cuidar de você, disse subindo suas mãos ásperas pelas cochas da moça. Rosalia começou a bater-lhe no rosto com os punhos fechados, Sabia perfeitamente agora o que ele queria dela, iria cobri-la como faziam os cavalos machos subjugando as fêmeas da espécie. O suor misturado as lágrimas de medo e horror, escorregavam pelas faces transtornadas de Rosália que se sentia sufocar enquanto suplicava a ele que a soltasse. Vincenzo, porém, surdo pela bebida e cego pelo desejo tapou-lhe a boca enquanto lutava com ela Venceu, fazendo-a sangrar de forma desumana e dolorosa. Desabou afinal exaurido pela satisfação hedionda que derivara do estupro. Rosália permaneceu ali, suas pernas dispostas num ângulo estranho lembrando um brinquedo quebrado que alguém esquecera de recolher. Estava ali, onde ele a deitara. Onde tantas vezes também o pai deitara outras inocentes. O que a diferenciava das outras vítimas era a cor da pele e a condição de sinhazinha. Ela era Rosália tratada por todos com deferência, seu destino sempre estivera traçado. Se casaria envolta em dezenas de metros de tule branco, levada pelo pai orgulhoso e entregue nas mãos do marido, delicado e atencioso. Ela era Rosália que até aquele dia só conhecera o melhor da vida e das pessoas. Automaticamente levantou-se do leito de palha e seguiu para fora do estábulo rumo ao tronco iluminado pela lua cheia. Arrastava consigo um rolo de corda e o banquinho de ordenha, que usou para prender o laço mortal no gancho da haste. Seu ultimo pensamento foi para o pai. Um pedido mudo de perdão.

Lá na Casa Grande um verdadeiro alvoroço tomara conta do quarto do coronel, que havia recebido mais cedo a visita de seus pequenos algozes. Na verdade chegara a estranhar a ausência delas durante semanas seguidas, acalentando até mesmo a esperança de que o houvessem esquecido, indo assombrar outro infeliz. Surgiram, porém com toda pompa aquela noite, parecendo mais agitadas que nunca. Estavam vestidas com esmero, usando brincos nas orelhas furadas e colares de contas coloridas nos pescoços, parecendo arrumadas para alguma festa na qual parecia ser ele o convidado de honra. Cobriu-se todo, apertando bem firme as pontas das cobertas em torno de si. Ouviu o murmúrio queixoso das penadas poucos segundos antes de lhe descobrirem num puxão enérgico. Começaram a bater os pés numa excitação exagerada quando o viram calçar as chinelas e vestir as calças. Assim saíram á noite, as negras indo na frente , puxando Justiniano pelas vestes quando ele não acompanhava seus passos ligeiros.Mais alguns metros e a cena de horror se descortinou diante dos olhos incrédulos do coronel. No tronco iluminado pela claridade da lua, estava Rosália o pescoço quebrado sustentado pelo nó da forca. .

_ Que fizeram malditas? Hei de matá-las novamente, uma a uma, dessa vez com as minhas próprias mãos. O que fizeram, meu Deus? Deitando-a junto ao tronco, percebeu as marcas de sangue que haviam secado nas anáguas da menina. Entendeu tudo então. As negrinhas que haviam desaparecido, estavam agora reunidas a porta do estábulo, confabulando se deveriam entrar ou não. Justiniano passou por elas, chegando a baia onde Vincenzo ainda dormia o seu sono de bêbado, tendo ainda nas mãos os restos do vestido de Rosália que ele destruíra enquanto lutava com ela. Ensandecido de ódio o coronel voltou às pressas rumo à casa grande, entrando aos tropeços no escritório onde guardava as armas da fazenda, expostas numa prateleira de vidro.

_ Onde está? Onde está a maldita chave- dizia tateando os fundos da gaveta da escrivaninha num estado de extrema consternação. Como não a encontrasse, arremessou o encosto da cadeira mais próxima de encontro aos vidros, estilhaçando-os. Mergulhou as mãos pela abertura retirando de lá a primeira pistola que encontrou carregando-a com dedos trêmulos de forma atabalhoada, cego de dor e ódio.

Maria Amélia, acordada pelo barulho estridente dos vidros quebrados, chegara ao escritório sobressaltada.

_ O que está havendo Justiniano, enlouqueceu de vez? O que está acontecendo ? disse percorrendo os olhos pela sala revirada, se retendo na prateleira quebrada.

_ Eu vou matá-lo. Aquele italiano desgraçado, ele vai se arrepender do que fez, eu juro.

Um tremor de pânico percorreu o corpo de Maria Amélia. Então Justiniano descobrira, Mas como? Sempre fora tão cuidadosa e discreta. Num salto tentou impedir a saída do marido, se interpondo entre ele e a porta.

Saia da minha frente mulher. Por tudo o que é sagrado, vá cuidar de nossa filha.

_ Como? Rosalia está dormindo em seu quarto.

_ Não, ela não está. Dito isso se lançou sobre ela tirando-a do caminho.

Os momentos de perplexidade de Amélia duraram pouco, depois de alguns minutos seguiu apressada atrás do marido. Este, já chegara ao estábulo, onde Vincenzo lutava para acordar do sono de embriaguez.

_Acorda carcamano maldito, levante-se desgraçado. Você vai pagar agora pelo que fez.

_ Não sei do que o coronel está falando. Estive aqui dormindo até agora, è verdade que bebi um pouco, mas ninguém pode acusar um homem de beber uns tragos depois de um dia de trabalho pesado, não é mesmo patrone?

_ Cale-se imundo, ou estouro sua boca antes de lhe estourar os miolos.

_ Eu não fiz nada, juro!.

_ Como pode fazer isso a Rosália, uma criatura que nunca fez mal a ninguém, como pode maldito? Vincenzo anteviu a morte, nos olhos do patrão. Não se conteve, não tinha mais nada a perder.

_ È verdade, mas antes me deitei com a patroa, aquela vadia de sangue quente. È isso coronel, as duas, bem debaixo dos seus bigodes. Devia fechar melhor suas porteiras patrone.

Tomado por uma fúria assassina, Justiniano puxa o gatilho, mirando o rosto escarnecedor do italiano, mas a arma por tanto tempo fora de uso recusa-se a disparar provocando um baque súbito que desequilibra o coronel. Vincenzo avança sobre ele na tentativa de tomar-lhe a arma, quando é atingido em cheio no peito. Ainda teve tempo de ver Maria Amélia surgir das sombras onde estivera escondida, antes de ser atingido pelo segundo tiro mortal.

Maria Amélia se aproxima da figura derrotada do marido, deixando cair junto dele a arma ainda carregada. Dá-lhe as costas e sai. Há muitas providencias a tomar antes que possa prantear a filha.

O coronel toma a arma nas mãos tremulas indo de encontro a Rosália. Se recosta no tronco tomando-a nos braços. As lágrimas correm pelo rosto enquanto ele embala o corpo sem vida da filha. Fecha-lhe os olhos, faz um ultimo carinho nas faces frias e puxa o gatilho.

O dia seguinte acorda de luto na fazenda Jacarandá. A morte de Rosália que Maria Amélia oficialmente alegou ter sido causada por uma febre súbita, entristeceu a todos profundamente. Justiniano vitimado pelo desespero e pela blasfêmia do suicídio, é enterrado num ponto próximo a casa grande. Não houve quem lhe chora-se a morte.

Vincenzo nunca mais foi visto, seu corpo enterrado numa cova rasa jamais foi encontrado. Depois de algum tempo seus patrícios chegariam a conclusão de que havia partido em busca de riqueza fácil em algum lugar longe dali.

Àquela noite Maria Amélia se recolhe morta de cansaço depois do dia difícil e exaustivo.

Mal pegara no sono quando é despertada pelo som de passos que ecoam pelo quarto. Sem entender do que se trata, acende as velas. A claridade da luz efêmera desvenda o sobrenatural diante dos olhos aterrorizados de Maria Amélia. Ela percebe que não está só.

A Fazenda Jacarandá é novamente sacudida pelo som das batucadas dos tambores e dos atabaques.

Analí Almeida
Enviado por Analí Almeida em 10/07/2007
Reeditado em 10/07/2007
Código do texto: T558636