Cruzes na rodovia

Nota: O que o leitor vai ler não é nada de surreal ou mesmo inédito, afinal crê-se que tenha olhos suficientes para mirar o que acontece nas rodovias. É verdade que o relatado pode não ser nas rodovias às quais trafegam, mas indubitavelmente, certeza é que já tenha cruzado com uma delas. Sem o menor sentimento de agouro, espero que o nobre leitor não seja o protagonista do conto; caso contrário, por favor, queira desculpar-me, mas faço saber que cruzes nas rodovias marcam os acontecimentos de famílias e mais famílias, e assustam mesmo.

Uma nobre família portuguesa de sórdido sobrenome Bonamorte, com mais de duzentos componentes, tomaram assento nos caminhões pau de arara e seguiram viagem para acompanhar os festejos do casamento do rebento mais novo da prole. Tudo era motivo de alegria. Celebração de casamento é oportunidade áurea e conforme tradição social e religiosa, tudo tem que sair em perfeita comunhão.

No entanto, na noite que antecedera o casamento, o patriarca tivera visões nada condizentes com as fantasias que todos prediziam e para ele, durante aquela terrível noite, algo muito estranho estava por acontecer. O intruso que não fora convidado a adentrar sua casa corria pelo imenso terreiro, jogava milho sobre o telhado, fazia dobrar os galhos das árvores, importunando aves e animais. De tempo em tempo, o patriarca levantava e dando desculpas à esposa que fora acometido por um mal súbito e precisava ir ao banheiro, corria às dependências da casa e nada via; porém, assim que punha os pés dentro, os rumores da estranheza noturna retornavam afrontando-o com mais intensidade. Numas desses despertares alucinados, ouviu: “Não adianta tentar desvendar os mistérios da noite, eu e minha trupe estamos esperamos por vocês na rodovia”.

- Quais são os sintomas da alucinação? Será que ouvir vozes é um deles?

Abriu a boca para relatar para a esposa o que ouvira, quando cravaram-lhe uma grossa agulha de sapateiro na jugular, embargando-lhe a voz. Ao levar a mão à garganta, a esposa mexeu na cama, entretanto, voltou a dormir logo; contrário dele, que não pregara os olhos. Em seus pensamentos, o dia parecia não clarear nunca.

Acordaram cedo, pois os preparativos para a festa lhes impunham isso. Quando a matriarca foi arrumar a cama, notou uma pinta cor rósea sobre o lençol. Torceu a cara num franzido de testa e chamou o marido. Este chegou e interpelado pela mulher sobre o visto, disse que não sabia de nada e que as muitas vezes que levantou, foi para ir ao banheiro, motivado pelo desarranjo estomacal. Não acreditando na versão do marido, a esposa abriu o lençol para mostrá-lo e surpreendentemente, o lençol estava limpo, sem o menor vestígio de nada.

Se o lençol estava limpo, seus olhos foram tapados e num berro surdo, o mesmo quase a enlouquece: “Vocês dormem em cima da mesma cama e não sabem o que acontece debaixo dos mesmos cobertores. Estão fadados pelo destino a se separar hoje. Surpresas os esperam”. O patriarca arregalou os olhos, fato notado imediatamente pela esposa.

- O que se passa homem? Por lá noite esteve a fios de luz, agora está a fios de cera. Vai se olhar no espelho e não estranhe: está mais branco que cera de vela. Que não faças feio no momento de entregar a mão de tua filha ao nosso genro, pelo amor de Deus homem! Se não, lhe enforco.

- Pode deixar que isso é por nossa conta.

- O que você falou? Repita, se és homem, seu brocha!

Seguiu o comboio em direção à cidade. Tudo parecia dentro das normalidades, menos para o patriarca que a todo instante algo lhe importunava. Tinha visões sombrias e funestas que ia de um simples acidente até a morte da família inteira. “Tenho que redobrar a atenção na estrada, curvas não perguntam por que vieram. Vacilou, fica em uma delas; depois sobram apenas as cruzinhas assinalando as mortes”. Fazia de tudo para não deixar transparecer o que pensava.

Ao entrar com a filha pelo saguão da igreja sentia suas pernas peadas, como se fosse uma vaca no momento da ordenha. Fazia de tudo para não vacilar, visão que tornou-se fato quando um santo voando pelo saguão desmontou-se espatifando em cima do púlpito: o patriarca caíra estatelado sobre o tapete vermelho.

O pároco veio em socorro, notando que um espirito maligno se apossara dele e no afã de auxiliá-lo, exorcizava-o aos berros: “Saia já desse corpo, ele não te pertence. Saia já diabo louro”. Aos safanões o padre exultava o patriarca. “Quem mandou você entrar nesse corpo, saia já em nome de Cristo. O sangue do cordeiro tem poder e vai expulsá-lo, agora em nome do filho do pai, Jesus Cristo”. Os presentes olhavam as cenas, aterrorizados e faziam o sinal da cruz.

- Cruz, este é o objeto que satisfaz e marca os acontecimentos.

Aos poucos, o patriarca foi se reerguendo e cumpriu seu papel de pai, entregando a mão da filha ao ex-noivo, doravante marido.

- Você não está dando a devida importância, mas essa noite a morte separará casais. - os cacos espedaçados do santo sussurravam palavras ao seu ouvido.

Prosseguiram: “Não foi isso que ouvistes na sua alucinação noturna? Abrolhos português. Não desmontei no chão a troco de nada. Vieste do pó, e para o pó voltarás; com direito à escolha, você e mais alguns”.

Foi quando o patriarca lembrou-se do entrevero que tivera com o genro a muitos anos passados. A voz misteriosa o atacou novamente: “Exatamente o que passou em sua cabeça! Vou te dar uma chance de escolha, com isto, poderá se salvar. Você e mais alguns entes, ou apenas você? Ou ainda só os entes? Qual é a sua opção?”

Ele ficou encafifado com o “qual é sua a opção”. Do que estaria falando aquela alma penada naquele lugar sagrado. Sua mulher, portuguesa daquelas matronas, o interrogou: “o que você está tramando, Benevides”. Com o clima tenso e entre perplexidades, lágrimas, sorrisos e felicitações, os noivos receberam os convidados na saída da igreja. Passariam rápido à festa e seguiriam para o aeroporto, uma vez que a viagem para o exterior estava marcada para mais tarde. O buchicho geral era que nunca haviam presenciado coisa igual: “que casamento mais diabólico”.

- Parece que estão espritados, credo em cruz. – palavras da beata que rezava o terço.

- Foi-se uma época que o diabo respeitava a casa o senhor, Deus me livre e guarde. É por isto que a igreja católica está perdendo fiéis, porque nas outras, o pastor afugenta o bicho. Acho que vou mudar de igreja. – e quem falou, cruzou a rua e foi prostar-se de joelhos no altar da igreja ao lado.

- Aleluias, aleluuuuuias, aleluias irmãos. – berravam em nome do senhor.

O restante do pessoal dispersou indo alojar-se nos caminhões em que vieram. O zunzunzum não era nada dos melhores, no entanto, seguiriam para as festividades. De repente grandes ratazanas apareceram sobre a mesa dos doces. Após beliscarem as iguarias, algumas das endemoniadas pulavam no peito dos convidados. Entravam pelas roupas e vorazes, roíam-nas. Os rasgos iam sendo mostrados. Os mais atingidos eram as mulheres e as crianças.

Corre-corre amalucado. Corredores se abrem. As tábuas do piso do casarão levantam-se. Pessoas caem no fosso.

- Valha-me Deus! O que eu vim fazer aqui.

- Ainda pergunta; devia ter descoberto antes, agora é tarde?

Aos poucos a casa vai esvaziando. A maioria dos convidados já haviam se retirado, quando notaram que um dos caminhões não havia chegado. E agora o que fazer? Voltar para saber o que aconteceu? Foi quando o patriarca recordou das palavras que ouvira: “Você e mais alguns entes, ou apenas você? Ou ainda só os entes? Qual é a sua opção”?

Seu coração acelerou, pulsava disparado, porém teria que tomar uma atitude. No lugar dos convidados, quem fazia a festa eram os ratos. Não havia mais nenhum ambiente que não fora tomado pelos bichos. Cães e gatos batem em retirada. Notando o perfume e sabor das frutas, morcegos chegam às revoadas; junto com a espécie de frugívoros, aparecem os sanguinários e grudam nas pessoas.

Definitivamente a festa estava com os segundos contados; mas e os donos da casa? Onde teriam ido? O zunzunzum corria de boca em boca, no entanto, nada de alguém saber do paradeiro dos anfitriões. Sumiram, deixando para trás a infeliz certeza que as iguarias foram mordiscadas pelos ratos e gotas e mais gotas de sangue sugadas pelos morcegos.

Os convidados que ainda estavam lúcidos, com os sentidos e as faculdades mentais operantes, ouviram uns estrondos e ao término dos ribombares, uma voz sinistra cortou os ares: “E a cruz que iniciou sua penitência na rodovia, tornou-se itinerante com muitos capítulos para serem contados até o fim dos tempos. Não tarda, aparecerá indícios dela em outros lugares e obviamente, será relatado pelo Mutável Gambiarreiro no Recanto, isso se ela não der cabo nele antes. Aguardemos!”

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 02/04/2016
Reeditado em 05/04/2016
Código do texto: T5593052
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