Cicuta

Sabia-se pouco sobre as técnicas e procedimentos de cura, naquela época.

Padres e líderes religiosos eram os principais responsáveis pela salvação e libertação das pessoas que atraiam os males mundanos. Salvação esta muito mais espiritual do que carnal, praticamente.

A pandemia, chamada posteriormente de Peste de Hemlock, dizimava mais de dois terços da população local, enquanto buscava-se mais por encontrar culpados do que encontrar soluções.

Cavaleiros, nobres senhores, escravos, comerciantes, jovens donzelas e crianças não escapavam da terrível doença que deixava os olhos fundos e negros, com olheiras amareladas e vazias, pele, dentes e unhas podres e um aspecto cadavérico que consumia esperanças daqueles que não eram infectados. A morte vinha em poucas semanas de contaminação.

Os curandeiros, com suas inúteis e escrotas máscaras de proteção que tapavam a boca e os olhos com uma renda de pano (geralmente imunda de poeira), iludiam os próprios curandeiros que estavam seguros, afinal, segurança era uma palavra inexistente naquele período.

- Um escravo a queimar! Eis aqui um dos culpados pela fúria de Deus! – Alegava um curandeiro em praça pública ao apontar para um jovem amarrado em um poste, de cabeça baixa e com cabelos em decadência pela doença que lhe dominava. Na boca do pobre rapaz havia um pano também bastante imundo que protegia (os outros) do fatal mal ar que transmitia-se de pessoa em pessoa, assim como o nariz que era tapado com algodão, tecidos ou até mesmo cola.

Os habitantes locais passavam com olhares tortos e colocavam as mãos na boca, em rápidos passos.

- Sim! – continuava o curandeiro – Vejam queimar! Vejam! A ira de Deus está sob nós, mas não nos acanhemos perante o infortúnio que temos!

Apontou novamente para o jovem que mal conseguia respirar e atirou-lhe um líquido antes de acender fogo e ouvir os lamentos breves que rapidamente culminaram a morte do indivíduo.

Os líderes religiosos andavam pelas ruas com grandes túnicas avermelhadas que continham uma cruz branca bordada no centro, além das máscaras de proteção. Por um gesto de libertação espiritual, os corpos queimados pelos curandeiros eram depositados em vales que depois eram aterrados.

Depois de algumas palavras, no enterro dos desafortunados infectados, alguns consolos e alguns avisos, os curandeiros benziam a terra e uma flor branca, simbolica, era colocada na terra direcionando aos céus para que as almas soubessem o caminho a seguir, caso fossem merecedoras do paraíso. Um ato que substituía um velório digno para cada falecido, uma vez que não haviam túmulos suficientes. Paz e liberdade divina.

O cheiro de morte pairava sob o céu nublado, e a vida se resumia a aceitação do destino que Deus escolhera para aqueles povos. Lamentável.

Os sacerdotes, clérigos, bispos ou membros da igreja, como os próprios curandeiros, que contraiam a doença, eram chamados de purificados. Por algum motivo, os purificados se escondiam e não deixavam transparecer que não eram imunes ao perigo.

De qualquer forma, as evidências não mentem. Um purificado caminhava livremente sob a multidão de pedintes que aglomeravam no centro de uma província já bastante prejudicada pela doença. Ele falava alto e claramente, enquanto andava sem mesmo saber de sua real condição:

- Protejam-se! Não deixem que o anjo caído sobrevoe suas moradias! Não converse com aqueles que foram contaminados pois o ar que estes respiram está repleto de morte!

E assim a sociedade foi se desintegrando. Chegou a um ponto em que mal se via pessoas caminhando nas ruas. As que se arriscavam eram loucas.

Era comum, todavia, que se visse os aventureiros que se socializavam em comércios e vilarejos para comprar ou vender ítens mantendo longas distâncias entre si para que não houvesse contato físico e muito menos que se respirasse o mesmo ar.

Enquanto um homem visivelmente afetado pela doença e já em estados terminais saira tossindo e cambaleando pelo centro da cidade, o pânico tomou conta de todos. Mas a própria raiva da desgraça humana se fazia presente, e o doente era apedrejado e morto, sem muito esforço e em pouco tempo. Posterior a isso, a gritaria dava lugar a desolação, cabendo aos curandeiros dar um destino à pobre alma do infeliz.

Em certa ocasião, um sacerdote realizou o ritual de purificação de uma vila que fora praticamente dizimada por completo, sobrando apenas um ou outro sortudo. O curandeiro, com seus trajes de proteção ilusória caminhava pelos locais em que a morte já havia deixado sua mensagem e apenas queimava os corpos. Depois, enterrava-os, fazia uma breve oração para os presentes, como de costume, e ia embora, deixando a flor branca como sinal de libertação.

Quando uma tempestade tomou posse do ambiente, uma mulher implorou para que um curandeiro fosse a sua residência e pudesse avaliasse o marido, muito doente e alucinado.

O curandeiro, ao chegar no local, verificou o espanto: a mulher com seus filhos situava-se em prantos, tendo em vista a situação do marido.

- Ele estava bem, foi repentino que ocorreu. – Disse a moça.

Os olhos negros do homem faziam com que o terror fosse instalado até mesmo para os mais experientes sacerdotes.

- Ele trabalhava perto do cemitério. Não costumávamos vê-lo mal, pois sempre foi um homem sério e respeitoso.

O curandeiro olhou para o doente e fez um sinal com as mãos. Segurava um livro em uma das mãos e ergueu-a para o alto enquanto proferia algumas palavras em uma lingua estranha.

- Mate-me, por favor! Eu imploro. – Disse o homem acamado.

- Ele deveria estar com a boca vedada! Vocês todos estão infectados agora e em breve morrerão também.

- Mas, senhor, não sinto nada. Por favor, pode fazer algo por nós?

- Posso apenas dar descanço às vossas almas, pois em terra nada mais há para ser feito.

E a mulher viu os senhores de vermelho sairem da casa, sem mesmo saberem que nesta noite a mesma casa estaria em chamas e libertada do mal.

Até que em uma tarde, um homem desconhecido entrou na província. Montava um cavalo negro e vestia uma capa negra que quase chegava ao chão, mesmo sentado no cavalo. Seu rosto era imperceptível, uma vez que um chapéu sombreava-lhe quase que inteiramente. Usava luvas pretas e botas enlamaçadas, talvez devido a tempestade que pegara no caminho.

O viajante percebeu os olhares que a ele se encaminhavam e parou com o cavalo. Desceu e arrumou o chapéu. Seus cabelos lisos e também escuros esvoaçaram ao vento.

- É nosso salvador! Vens de longe para acabar com a ira divina?

Enquanto outros entoavam por entre janelas:

- Piedade! A desgraça de Deus nos faz presente, tire-a de nós e ganhe o que quiseres!

O intruso não respondeu. Apenas caminhou alguns passos, observando atentamente o ambiente. Um lugar devastado pela doença que ali aniquilara quase a população inteira, além de animais e plantas. Sim! Plantas!

Tão adoráveis plantas, que floreiam os jardins e embelezam os ambientes tristes e mortos, que mostram que a vida sempre é fruto de esperança e prosperidade.

Um purificado caminha até o viajante e prontamente interroga-o:

- O que queres? Não vês que não há nada aqui? É uma província sem futuro. Todos estão destinados a morrer.

A voz do curandeiro infectado era grave e velha, doente.

- Ninguém está destinado a morrer. Quantas pessoas assassinaste desde que o primeiro homem ou mulher respirou, como alegas, a praga?

O sacerdote formulava uma resposta, mesmo com dificuldade em pensar, pela surpresa da pergunta sem sentido. A peste viera de muito longe, provavelmente, de algum infeliz que a transmitiu ao longo do tempo e passou o mar ar para outros hospedeiros, oras!

Antes que pudesse responder algo, o cavaleiro deu um sorriso e prosseguiu:

- Tão fácil... tão previsível. Uma recompensa eu lhe entrego pelo enorme serviço dispensado em meu nome.

O cavaleiro então mostrou seu rosto, inteiramente podre, com olhos escuros como a mais fria das noites, dentes podres e lábios mortos. A Morte fez uma reverência dobrando o joelho e entregou uma flor branca ao curandeiro, a mesma que os membros da igreja depositavam no enterro das vítimas e que trazia a peste aos desafortunados, amplamente espalhada pelas terras por eles mesmos.

FIM

Nota.: Conium maculatum L., conhecida pelo nome comum de cicuta, é uma espécie herbácea pertencente ao género Conium da família Apiaceae. A planta é conhecida por dela se extrair a cicuta, uma potente mistura de alcalóides, entre os quais a cicutina, utilizada na Europa desde a antiguidade clássica como veneno. Em 399 a.C. o filósofo Sócrates foi condenado à morte por ingestão de uma tisana de cicuta.

Lucas Restivo
Enviado por Lucas Restivo em 13/04/2016
Reeditado em 15/04/2016
Código do texto: T5603645
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