O GUARDIÃO - DTRL 27

O pôr-do-Sol já tingia de intenso vermelho as nuvens, antes cinzentas, que insistiam em se juntar naquele começo de noite.

Estavam prenunciando a chegada da lua no céu. Com o luar e as sombras negras da noite, as forças do Mal esperavam para se levantar sobre a Terra mais uma vez. Entretanto, no solo uma batalha acabava de chegar ao clímax.

Uma carroça guiada por ciganos a serviço de um nobre romeno foi alcançada por três cavalheiros ingleses, um aventureiro americano e uma dama inglesa, liderados por um médico holandês. Após uma desesperada perseguição a cavalo, e um tenso tiroteio, os estrangeiros conseguiram deter a carroça às portas de um imenso castelo, no momento crítico em que o Sol se punha propiciando o surgimento do mais maligno sorriso jamais visto.

O Príncipe Drácula acordava no cair da noite para destruir seus inimigos. Escondidos entre as rochas, eu, Arisztid, servo do Senhor, e mais três camponeses, todos homens de Deus, observávamos o desfecho da cena de caça a tão macabro ser.

Não desejávamos interferir na luta, apenas se fosse extremamente necessário, apenas se os estrangeiros não fossem capazes de derrotar Drácula e seu séquito de ciganos. Nosso objetivo deveria esperar.

Um dos estrangeiros, o americano, tombou com a garganta rasgada pelas garras do vampiro.

Pude ver um relance de medo esvaziar, momentaneamente, o olhar dos estrangeiros. Senti que por um instante temeram ser derrotados por aquele monstro. Precisei conter um dos nossos que fez menção de avançar.

Um simples toque no ombro seguido por um olhar recriminador trouxe o homem de volta à razão. Nossa missão começava após a missão dos estrangeiros. Rogava aos céus que eles fossem bem sucedidos, caso contrário, todos morreríamos tentando matar o vampiro.

O medo por ver a queda do companheiro morto foi logo substituído por uma faísca de energia e ódio. Os estrangeiros adquiriram nova resolução para matar Drácula.

Ao ver seu mestre ser trespassado por uma estaca de madeira, os poucos ciganos que restavam, correram em fuga pela estrada rochosa que ladeava o castelo.

Empreenderam rápida retirada, pois a razão de sua servidão tinha chegado ao fim. Com a morte de Drácula, findavam-se também suas promessas de vida eterna para aqueles crápulas que o serviam.

O vampiro ainda tentou golpear seus atacantes enquanto saltava da carroça para a entrada do castelo. Mas estava mortalmente ferido. Drácula caiu, grunhindo como nenhum animal deste mundo poderia fazer. Um grunhindo infernal. O holandês precipitou-se sobre ele e cravou ainda mais fundo a estaca de madeira em seu corpo.

O coração do vampiro foi perfurado. E diante dos olhos de todos, seu corpo transformou-se em pó. Os homens olharam-se aliviados, exaustos e espantados. Concluíram que sua tarefa havia chegado ao fim. Recolheram o corpo do amigo morto e começaram sua volta para casa. Apenas a dama inglesa e o holandês falaram nesta retirada. Ele a consolava em seu pranto pelo americano morto.

Estavam todos extenuados, cansados e sofridos demais para qualquer conversa ou sentimento. Estavam visivelmente esmagados por suas dores.

Agora, sem ciganos, sem estrangeiros, sem a presença de nenhum outro ser humano, começava a nossa repugnante tarefa. Apenas a lua com seu brilho prateado testemunharia o nosso trabalho. Sandor, Crystek, Domonkos e eu estávamos ali para recolher os restos de Drácula. Estávamos ali para recolher as cinzas do vampiro. Para guardá-las em local seguro. Para que ele nunca mais pudesse reviver.

Os estrangeiros sabiam que o mataram. Eles sabiam como matar um vampiro. Só não sabiam de uma coisa. Não sabiam que os vampiros podem se reerguer da própria morte. Não sabiam que os vampiros podem voltar da noite eterna.

Domonkos me olhou e perguntou, em voz baixa, quase sussurrando:

__Padre Arisztid, podemos começar?

__ Sim – respondi - Senti um calafrio, mas não podíamos retroceder. Era hora de agir.

Aproximamo-nos da entrada do castelo. Tudo ao redor eram pedras. Rochas enormes que dificultavam o acesso àquela fortaleza. Aquela fortificação foi criada por uma mente afeita às estratégias militares. A posição do castelo na beira de um profundo precipício impedia o acesso por escalada, ou a fuga de algum prisioneiro.

O único acesso era pela estrada tortuosa que contornava a montanha. A estrada era vertiginosa. Percorrê-la era um pesadelo, pois a queda no abismo era sempre iminente.

A porta da muralha de pedra do castelo estava aberta. Os ciganos abriram-na previamente, esperando o retorno de seu senhor. Atravessamos o portal em silêncio. Sabíamos que estávamos todos com medo. Mas o dever sagrado de combater o Mal nos impelia. No pátio do castelo, até nossas sombras eram aparições sinistras.

Quantas almas infelizes não transpuseram aquele portal, aprisionadas pelo maldito monstro que ali habitava? Estávamos entrando em um pedaço do inferno aflorado em nosso mundo.

Havia plantas trepadeiras acinzentadas por quase toda a extensão das paredes externas. Olhei para cima e pude perceber a exagerada altura das torres.

Tudo ali era cinzento ou negro. Até mesmo o ar era denso. Não havia vento.

Avançávamos em pesado silêncio. Ouvíamos apenas o som de nossos passos. Ao chegarmos ao fim do pátio pudemos ver que a entrada estava totalmente desimpedida. Se quiséssemos, poderíamos adentrar o castelo. Mas, oh! Deus! Que homem em sã consciência desejaria entrar naquele pesadelo de pedra?

Posso dizer que senti certo alívio, pois as cinzas de Drácula estavam logo na entrada. A partir dali estendia-se um corredor que levava ao interior do castelo. Mas nada podíamos ver. Depois da entrada, nem mesmo a luz da lua penetrava. Depois da entrada era só escuridão.

O corredor devia ser longo, pois o silêncio que vinha dele nos trazia a mesma angústia que tínhamos à beira do abismo. Parecia que a escuridão olhava para nós.

Olhamos para o monte de cinzas que há pouco ainda era o demônio que assombrou nossos pesadelos infantis. E os dos nossos pais. E os de nossos avós. Uma assombração que amedrontou muitas gerações. Reduzido a cinzas ainda era medonho.

Enfrentamos o asco que nos dominava e começamos a recolher o pó que restou do vampiro e a colocá-lo na urna funerária que trouxemos.

A cinza dos restos do morto-vivo não era como a dos cadáveres comuns. Tinha um aspecto arenoso, e ao mesmo tempo, dava-nos a impressão de ser um amontoado viscoso. Mas assim que começamos a recolher aquele pó, com as pequenas pás que portávamos, percebemos que era um pó pesado como areia e negro como a alma nele aprisionada.

Recolhemos as cinzas sem que nenhum de nós ficasse de costas para o corredor da entrada do castelo. Trabalhamos em absoluto silêncio. Nossa comunicação foi apenas por meio de olhares e toques. Não podíamos ser rápidos. O serviço tinha de ser meticuloso e bem feito. Mas a demora nos exasperava. Percebi que a respiração dos outros estava ficando ofegante e que as mãos de Domonkos estavam ficando muito trêmulas. Mais trêmulas que a dos outros três.

Fiz um sinal com a mão esquerda, e todos me olharam. Fiz o sinal da cruz, depois apontei para cada um de nós, e ao fim deste gesto com as minhas mãos postas, mostrei-lhes o céu. Compreenderam que éramos guerreiros de Deus reunidos ali para combater o Mal sob a proteção d’Ele.

A confiança dos companheiros melhorou um pouco. Mas a minha própria, vacilava. Eu tinha medo.

Terminamos o recolhimento e vedamos a urna com a cera de uma vela que queimou em três missas de domingo. Nossa tarefa estava terminada. Tínhamos agora de sair dali.

Ao levantar-me, não sei se por efeito da combinação de medo e cansaço, pensei ter visto um vulto mover-se do início do corredor para seu interior desaparecendo na escuridão. Pareceu-me uma mulher vestida de branco. Mas foi muito rápido. Será que uma daquelas crias do demônio esteve nos observando por toda a duração de nosso trabalho?

Não alarmei meus companheiros com meus medos ou possíveis alucinações. O que será que suas mentes também não estariam produzindo?

Naquele momento, só pensei em sair dali. Mas a pressa, o medo e a ansiedade poderiam estragar tudo. Eu tinha de ser cuidadoso. Já tínhamos cumprido essa missão. E eu não queria ser o disparador dos medos dos outros.

Descemos a estrada à beira do abismo em silêncio, apenas ouvindo as nossas respirações ofegantes.

O suor frio empapava minhas roupas. A urna com as cinzas do monstro estava comigo, amarrada em meu corpo. Eu a levava nas costas com um misto de temor e esperança.

Estava levando ali um autêntico filho do Demônio, e ao mesmo tempo, estava livrando o mundo de seu horror.

Desde criança, ouvíamos as estórias macabras sobre o príncipe Drácula. O guerreiro que fez um pacto com Satanás, contra a Humanidade, em troca de imortalidade e poder. Agora, ele estava ali, reduzido a cinzas. Carregado por mim.

Após umas duas horas de descida, chegamos à planície na entrada da floresta. Ela era coberta de vegetação rasteira e se estendia a perder de vista quando olhávamos ´para a esquerda ou para a direita, mas não era muito extensa no intervalo entre o fim da descida rochosa e a floresta. Julgando que já estávamos fora do alcance de qualquer perigo que habitasse o castelo, resolvi parar.

__ Irmãos, ainda falta muito para o amanhecer e nossas forças estão no limite. Sugiro que durmamos para que possamos prosseguir em nossa caminhada após o nascer do Sol. – falei.- Entretanto, mal concluí a minha fala, um uivo melancólico cortou o ar vindo da floresta. O terror estava evidente em nossas faces. Apesar disso, Crystek falou:

__ Padre Arisztid, eu creio que não sou o único que gostaria de descansar agora. Mas não seria uma tolice dormirmos aqui? Escute os lobos...

Não precisei me esforçar para perceber que realmente os uivos estavam mais intensos e pareciam agora vir de uma alcatéia maior que tudo no mundo.

Os uivos vinham de todos os lados.

Meu único pensamento era: e se as coisas no castelo viessem atrás de nós? Haveria ainda algo maligno no castelo? Apesar de tudo, eu respondi a Cristek que deveríamos ficar, pois eu tinha sal e hóstia para fazer um círculo sagrado ao redor de nós.

Todos nós sabíamos que nem os maiores poderes das trevas poderiam romper uma barreira feita com sal ou hóstias. A nossa seria feita das duas coisas.

Sob a luz da lua cheia, que dominava o céu escuro e pesado, fizemos um círculo de sal e hóstias moídas. E assim, reféns de nossa própria fé, deitamos no chão e dormimos, a despeito da medonha sinfonia de lobos.

Tive pesadelos terríveis até o nascer do Sol. Sonhei que uma pálida mulher vestida de branco corria ao redor de nós. Suas vestes esvoaçantes tinham um tênue brilho, como se refletisse o luar. E os lobos... Uma quantidade imensa deles veio após a chegada da mulher.

Mas assim como ela, os lobos só conseguiam correr ao redor do círculo de proteção, sem conseguir adentrá-lo.

No meu sonho, vi a mulher estender sua mão tentando pegar a urna, e deixando escapar um grito de dor. Ela queimava a cada vez em que sua mão tentava entrar no círculo protetor.

Bendito seja o Senhor Nosso Deus, que nos protege contra os filhos do Demônio, e nos põe fora do alcance de suas garras!

A exaustão me fez mergulhar em sono profundo, e me senti como se mergulhasse em águas escuras.

O sol nos acordou com seu calor. A planície e a floresta pareciam agora ser tão belas sob a luz do Sol, que nem lembravam o abrigo de horrores que aparentaram ser durante a noite.

Terminamos nossa caminhada até o vilarejo, e sem alarde, seguimos para a igreja. Lá conversaríamos, em segredo, sobre o destino da urna funerária. O povo do vilarejo passava por nós e nos cumprimentava. Éramos todos homens nascidos e crescidos ali. Sabíamos dos medos, das lendas, das estórias passadas. De tudo, enfim.

Mas sabíamos, também, como as notícias e os boatos eram velozes. Foi assim que soubemos da expedição dos estrangeiros que vieram matar Drácula. Uma conversa ouvida numa taberna, nada mais. Um boato caindo em ouvidos predispostos e ansiosos, como os nossos, é tudo o que se precisa para o desencadeamento de uma ação. Para o Bem, ou para o Mal.

Abri a pesada porta de madeira da igreja e após entrarmos, fechei-a novamente. Respirei fundo, apreciando o cheiro familiar de minha habitação, que me encheu de calma e alívio. Nossa conversa foi rápida, e a decisão foi unânime. A urna deveria permanecer na igreja. Ali ela estaria ao abrigo de qualquer força do Mal, pois que ali não teriam forças para entrar. Juramos que seria um segredo comum que guardaríamos até a morte, com exceção de mim, que deveria legá-lo ao próximo pároco, àquele que me substituiria após minha morte.

Despedimo-nos. A vida correu normalmente nos dias seguintes. Os meses e os anos se passaram, e as pessoas foram perdendo o medo das antigas crendices e convencendo-se de que o vampiro fora mesmo morto pelos estrangeiros.

Os desaparecimentos de crianças cessaram. Ninguém mais desaparecia à noite. Não se viam mais vultos através das janelas. Os uivos dos lobos raramente eram ouvidos, agora só uivavam como mandava a sua própria natureza.

Só nós quatro sabíamos, com certeza, que o medo havia chegado ao fim.

Mas o que seria ao verdadeiro fim para um vampiro?

Para mim, era inevitável olhar pela janela, durante as missas de domingo, e ver a longínqua imagem do castelo do príncipe Vlad.

Durante anos essa imagem me amedrontou. Mas depois de nossa missão, o conflito tornou-se outro. Passei a me sentir desconfortável com a presença das cinzas do vampiro sob minha guarda.

A urna estava em meu quarto, pois era o único aposento onde ninguém entrava, além de mim. Decidi que era ali, perto de meu leito, que aquela relíquia macabra deveria ficar. Para que ninguém jamais a visse ou tocasse, até a hora em que eu a entregaria a meu sucessor.

Até lá, serei seu guardião.

FIM

Temas: Religião e Sobrenatural