Sinete

O tiro foi certeiro. Estirei o braço à frente, fiz mira e mesmo antes de pensar eu pressionei o gatilho. Confesso: mirei entre os olhos. Acertei o centro da testa, mas o que importa? Que se dane o coice da pistola. Entre os olhos ou no centro da testa, acaba tudo da mesma maneira. Clique, bum e ploft. Por vezes um gritinho entrecortado, mas é a variação máxima. Desculpe, sei que minto, nem sempre eles caem sobre um carpete macio. Alguns já caíram sobre mesas ou atravessaram janelas e isso gera sons distintos, mas mesmo assim a imensa maioria produz ruídos agradavelmente discretos.

Já fiz isso diversas vezes. Este geralmente é o fim da história. Para as minhas vítimas, não para mim, é claro! Não penso, apenas ajo e ao término da empreitada, corro pra receber os outros cinqüenta por cento. Metade antes, metade depois, este invariavelmente é o trato.

Mas desta vez algo diferente está acontecendo. Acredito que a adrenalina está atrapalhando um pouco meu discernimento, mas mesmo com esse pensamento, sinto que algo ainda se encontra, como direi...diferente. Sim, algo diferente está acontecendo.

Enquanto me abaixo pra apanhar o relógio do pulso de minha vítima – chamo todos de vítimas para não se tornar pessoal – minha mente capta um detalhe que dispara o sinete. “Sinete” é uma expressão – mais do que uma palavra apenas – que meu pai me ensinou quando eu tinha seis anos e que hoje está incrustada em minha mente como o pecado na mente de um pastor descarado. O sinete é um clique surdo que todos ouvimos dentro da cabeça, geralmente quando pressentimos que algo não vai bem. Ele parte da base da nuca, subindo como um estalo audível e descendo com uma sensação de arrepio gelado. Maldito sinete. A primeira vez que o ouvi foi quando apontei a carabina para o jacaré e a bala acertou o dorso do danado. O bicho pareceu nem sentir e continuou em minha direção. Ainda bem que meu pai tinha além de uma carabina, trinta anos a mais do que eu. Trinta anos a mais dão uma precisão maior ao mirar o crânio de um jacaré. Depois que fez o monstro parar, colocou a mão sobre o meu ombro e conversamos sobre o sinete. Nunca mais esqueci.

Quando apanho o pulso para retirar o relógio – uma peça única, feita sob encomenda que meu contratante disse ser a prova do serviço concluído – tenho a impressão de que sentirei as artérias latejarem. Ledo engano. Nada de pulsação. Mais frio do que deveria estar, mas a noite é fria e se os vivos como eu estão gelados, quem dirá dos mortos. Trinta e oito milímetros no centro da testa devem gelar qualquer um.

Olhei para o relógio e entendi até que ponto a peça era única. O nome de minha vítima estava gravado no ouro, abaixo dos ponteiros, ainda mais abaixo do cristal que os protegiam. Uma bela peça. Sem sombra de dúvidas uma bela prova. Apenas mostrá-la ao meu contratante terá de bastar, pois esse ficará para mim mesmo. Não entregarei essa jóia ao carcamano de forma alguma.

Ao dar uma outra olhada para o corpo, o sinete rompe novamente. Sobe o som seco e desce o arrepio gelado. O que minha mente captou que eu mesmo não consigo ver? Que raio de diferença está tão clara e ao mesmo tempo tão difícil de ser vista?

Por vezes a mente de um assassino prega esse tipo de peça a ele próprio. Age tão rapidamente e por força do hábito que acaba por não dar tempo dos demais sentidos a acompanharem.

Sapatos pretos e evidentemente caros. Meias vinho. Calças negras com aparentemente um pesado molho de chaves no bolso direito e um maço de notas no esquerdo. Camisa preta, certamente de seda, mas não apostaria a minha vida nisso. Gravata vinho. No dedo indicador um anel de ouro com um jade ou algo semelhante. E um buraco no centro da testa, este feito por mim.

O que há de errado? Porque o sinete tocou novamente? Seria o anel?

Enquanto olho para o anel minha visão periférica interpreta algo semelhante a um piscar de olhos. O presunto piscou? Não pode ser. Não havia pulso. No momento em que fitei os olhos, senti que o pé dele se moveu. Parece piada, mas olho para o pé e quando subo os olhos novamente a boca está entreaberta. Estava fechada. Juro.

É engraçado como a mente de um assassino trabalha. Realmente chega a ser hilário. Vemos as coisas como onomatopéias. Cliques, buns, ais, cleques e afins. Isso certamente se deve aos cliques que ocorrem em nossas mentes. As coisas ocorrem em cliques. E em um desses cliques eu compreendi o maldito sinete.

Quando olhei para a boca, minha visão periférica notou o buraco na testa de minha vítima. Apenas o buraco. Nada mais. Nada de massa, nada de sangue, nada de nada. Redondo e preto. Preto e redondo. Não entrei em pânico, pois esse foi o segundo mandamento que meu pai me passou. Nem mesmo ergui os olhos da boca entreaberta para entender o que estava acontecendo. Não importava realmente. Mesmo quando vi a língua dele passando lentamente pelos lábios e roçando devagar em uma das presas afiadas, mantive-me calmo.

Que se danasse o sinete, o buraco seco, o relógio único, as presas afiadas.

A noite seria longa, eu ainda tinha doze balas e um novo jacaré todinho meu.

Fim.

Richard Diegues é escritor, autor do livro "Magia - Tomo I", colaborador dos sites "Círculo de Crônicas" (www.circulodecronicas.com) e NecroZine (www.necrozine.blogspot.com), além de moderador dos Grupos "Tinta Rubra" e "Fábrica de Letras" pelo Yahoo!

Richard Diegues
Enviado por Richard Diegues em 04/03/2005
Reeditado em 14/04/2005
Código do texto: T5661