O Julgamento do Poeta

Geracinto de Sá e Silva, era boêmio, poeta e cantador, mas não esperava que o julgamento de sua alma ocorresse tão cedo. A morte o levou ainda jovem e agora ele estava apertado em se defender de um juiz terrível. O que vai fazer Gerancinto numa situação dessas? Eu vos conto nos parágrafos abaixo:

Geracinto, como é da natureza dos boêmios, numa fatídica madrugada, deixa o bar embriagado e põe-se a dirigir, bêbado como um gambá, nalguma rodovia. O pior aconteceu, o ébrio motorista, em alta velocidade, enfia seu carro debaixo de uma jamanta. A morte foi certa, não houve salvação por que seu corpo, do peito para cima, virou carne moída.

A alma de Geracinto, no entanto, acorda, de repente, num lugar muito estranho. Era uma cela de prisão, escura, perigosa, imunda e de um calor insuportável. Colaboravam para o pavor da pobre alma, os gritos horríveis de dor lancinante que se ouviam constantemente, mas não se sabia exatamente de onde vinham. O infeliz não demorou muito a perceber que, naquela prisão, estava em companhia de outros três boêmios que também aguardavam julgamento. O diabo não tardou em dar a caras, feio como a peste e parecendo um cão raivoso, e foi logo dizendo: “O que vocês têm é muita cachaça, muita luxúria, muita ganância, um certo tanto de inveja, pouca responsabilidade e nenhuma caridade. Estão condenados e não aceito reclamações”. Geracinto, em desespero, queria a todo custo se salvar e espremeu em si toda a sua inteligência para extrair, em apenas um segundo, essa quadrinha:

 
“Se, da terra, não fomos o sal,
Julgue o mundo em que crescemos.
Não temos apenas o mal,
Veja a poesia que nós fazemos!”

O capeta, que em regra não tem sentimento, admirou-se desse cabra que tem tanto atrevimento e, com malícia, respondeu:
 
“Cabra safado, culpas o mundo por tua perversão,
Pois desse argumento ninguém tem piedade,
Mas se em teu desespero queres fazer competição,
Serão, todos vocês, vítimas de minha maldade.”

O diabo então propôs uma aposta, se dentre aqueles vagabundos houvesse algum que fizesse boa poesia, a liberdade ganharia. Com essas palavras ele falou: “Darei a vocês um tempo curto para que cada um faça sua quadra e se alguma me agradar, mando o poeta para outro lugar e o felizardo fica livre de ser queimado no inferno.”

Os coitados fizeram às pressas seus versinhos escrevendo com os dedos no chão de areia. O diabo é tão pão-duro, de avareza tão mesquinha, que papel e lápis ele não dava não. O primeiro a se apresentar, foi um tal de João Bate Estaca. O diabo se aproximou, mas nem leu o poema, parou e se indignou logo com o título. Assim ele falou: “O seu poema eu não vou ler por que não sabes escrever nem o título, por que título não se escreve com a primeira letra minúscula.” A terrível criatura não teve piedade e, com força mui grande, arrastou o João e o jogou numa fornalha. Todos sabem que só se morre uma vez e Bate Estaca, que já havia morrido, não podia morrer de novo. Estava condenado a queimar vivo naquele fogo por toda eternidade. Os outros três que sobraram suaram frio de medo e pavor, pois em toda sua vida não haviam visto cena tão macabra. O próximo, trêmulo e pálido de medo, do qual o diabo se aproximou, era o Zé Assim Assado, que tinha feito versos brancos. Mais uma vez, o Belzebu se enfureceu e foi logo falando: “Que bosta de artista preguiçoso que nem se dá ao trabalho de fazer rima, mas fique tranquilo que a fornalha vai curar tua indolência”. E lá se foi mais um coitado a ser queimado vivo. Mané Prosa, que já foi vereador e sabia falar bonito, estava confiante e era o próximo da fila. O Mané escreveu corretamente o título e fez rimas preciosas e quanto ao tema da poesia, ele julgava ser o melhor, pois enaltecia o príncipe das trevas em rasgados elogios a seu poder sob os demônios e grande influência sobre toda a humanidade. O diabo leu, riu e depois falou: “Fico lisonjeado, mas saiba o senhor que, apesar de minha grande arrogância, sou esperto e não sou engando por nenhum bajulador. Vossa mercê está no caminho certo por que lugar de puxa saco é no quinto dos infernos.” E foi assim que o Mané Prosa também virou churrasco. E o diabo, ainda mais impaciente, do Geracinto, se aproximou e mais uma vez falou: “Ande logo com isso, seu cabra, que só me falta queimar mais um para encerrar o expediente.” E o poeta, o seu quarteto, recitou:

 
“Não sou santo, mas, aos meus pais, eu honrei
E, mulher casada, eu nunca cobicei.
Sou homem honesto e nunca fui roubar.
Mesmo ofendido, jamais pensei em matar.”

 
O diabo, por um minuto, parou, pensou e falou:
 
“Com bela quadra, ganhas a competição, e tu és o campeão.
Eu prometi que o vencedor ganharia sua salvação,
Mas tu sabes que meu nome é satanás, o enganador,
E essa promessa eu não cumpro não e me deleito em tua dor.”

O pobre Geracinto não se salvou e no fogo ele queimou.

Se você, caro leitor, desse final, não gostou, lembre-se que eu vos prometi um conto de terror e terror, que é terror de verdade, começa mal e termina pior ainda. Quem gosta sabe disso e aprecia esse rebuliço, mas essa história tem moral, uma lição a ensinar e, em versos, eu vou recitar:

 
Se perguntam o que seria essa tal poesia,
Digo a todos que isso é um serviço de engenharia,
Pois terá sua certa quantia a ser gasta em ciência
E acrescento ainda muito mais da tal paciência.

Lembre-se que edifícios devem perdurar.
Faça versos para o tempo atravessar.
Pensas que o bem escrever é sacrificante?
Pois não faças versos que durem um instante.

Ao ritmo, tens que ter carinho a dedicar.
A métrica, cuides que seja respeitada.
Sem boa rima, fracassarás em tua empreitada.
 
Ao tema, sabedoria deves empregar.
Com ele, cuidado especial deves ter,
Pois grande diferença ele pode fazer.


 
Duarte Cosaque
Enviado por Duarte Cosaque em 18/06/2016
Reeditado em 29/06/2016
Código do texto: T5671505
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