Cuidado! A devoradora de cérebros está a solta

Keyla era uma garota normal, sem nada que a diferenciasse de tantas outras, mas ela seria forçada, por uma sina cruel, a confrontar uma das maiores ameaças de nosso tempo. Que mal seria esse? E o que vai acontecer com ela? Se tiverem paciência para ler alguns parágrafos deste texto, vocês saberão.

Era uma vez, Keyla, menina esperta e cheia de vida. Numa tarde qualquer ela atravessou a sala de sua casa, adentrou um recinto que antigamente era um escritório e havia ali uma estante de livros que seu pai esquecera. A maioria desses livros eram técnicos ou de nível superior que não a atraíam nem mesmo pelas figuras da capa, mas havia um, caído atrás da estante, que era diferente dos outros e era velho e maltratado pelo tempo, com as páginas amareladas e já se soltando da capa. Era um livro de fábulas e contos infantis, tinha muitas e belas figuras. Umas histórias eram alegres e outras eram tristes mas havia uma especialmente perturbadora que não tinha desenhos mas fotos realmente assustadoras. A criança inexperiente não imaginava que coisa assim existisse. Era a história de uma lenda urbana ou talvez algum tipo de monstro mitológico, a Lesma que Devora Cérebros. A criatura horrenda viaja pelo éter cósmico e materializa-se no interior das casas, através de um portal interdimensional luminoso, quando as pessoas estão dormindo e coloca ovos em seus ouvidos. Os ovos eclodem e nascem larvas invisíveis que comem a carne do ouvido até atingir o cérebro e continuam a comer, causando dor tão terrível que a língua portuguesa não tem uma palavra para descrever tal horror. A dor e a loucura do cérebro sendo devorado, lenta e ininterruptamente, é tão grande que as vítimas tentavam perfurar seus ouvidos ou mesmo seus crânios na tentativa de tirar de lá com suas próprias mãos, as larvas. A menina ficou por alguns segundo com o olhar frio e inexpressivo, sentia pela primeira vez na vida um vazio na alma que transcende o medo ou angústia. Depois ela se recuperou, voltou ao normal, guardou o livro na estante e foi assistir aos desenhos animados na TV. Esquecera-se daquela coisa inadequada para menores. A mãe voltara do trabalho a noite e a menina foi lhe perguntar se aquela história era verdadeira. Um fiapo de fúria passou pela mente da mãe. Ela pensou: “Que tipo de vagabundo irresponsável escreve tais sandices num livro para crianças? Não basta a trabalheira que os pais têm, ainda nos vem com isso”? A mãe explicou que era tudo um monte de bobagens, um verdadeiro desperdício de papel escrever tais besteiras. A criança sorriu e estava resolvido o caso.

Os pais de Keyla, Antônio e Karla, não eram ricos. Ambos trabalhavam o dia todo. Não tinham empregada doméstica e de manhã bem cedo, antes do sol nascer, Karla já estava de pé para fazer todos os serviços domésticos e levar a filha à escola. Na parte da tarde ela trabalhava em um emprego de meio expediente para ajudar nas despesas. Keyla ficava sozinha em casa durante a tarde e isso preocupava um pouco os pais, pois ela ainda é criança pequena. Por algum tempo, a avó vinha fazer companhia à neta, mas a senhora idosa adoecera e já não podia mais se fazer de babá. Nesse momento a tecnologia ajuda. Justamente a tarde, os programas de TV prendiam as crianças na segurança da poltrona e eram de grande ajuda para os pais. O pai lembrava-se com saudade das cidades pacatas e ordeiras do interior onde ele, quando criança, estava seguro mesmo quando brincava na rua. Os tempos mudaram para pior e os desenhos animados, palhaços, bonecos marionetes e até mesmo as apresentadoras infantis de pernas e peitos de fora (que mais pareciam outra coisa) eram boas companhias nesse tempo difícil em que vivemos. Que bom seria se o mundo fosse uma grande sala de estar onde todos nós, confortavelmente sentados em nossas poltronas, assistíssemos ao espetáculo da vida passar por nós exibido com competências e talentos de grandes artistas e riquíssima emissoras de TV. Como chamar de vício tamanha maravilha.

O tempo passou, os anos passaram e Keyla, já com 18 anos, certa noite adormeceu diante da TV enquanto assistia a algum talk show da madrugada. A imagem da TV congelou de repente, escureceu, deformou-se e apareceram relâmpagos de imagens repugnantes de carniças devoradas por vermes. A tela toda ficou branca de uma luz muito forte e a lenda urbana materializou-se na sala diante da garota adormecida. O famigerado portal luminoso é a televisão! A ameaça é real! A Lesma que Devora Cérebros rastejou silenciosa pela sala, subiu na poltrona, alcançou o ouvido direito de sua vítima e colocou lá os seus ovos. No dia seguinte, Keyla gritava horrivelmente de dor lancinante enquanto sangue escorria de seu ouvido. Levaram-na correndo à emergência de um hospital. Dr. Edevaldo Nunes, um clínico geral, veio em seu socorro e gastou todo o seu arsenal de fármacos e conhecimentos universitários em medicina sem conseguir e nem ao menos entender o que estava acontecendo. Ele não demorou em chamar um neurologista que também fracassou completamente e chamou um oncologista, que também falhou e chamou um imunologista cujos esforços também foram frustrados, mas chamou um infectologista, que também não sabia o que estava acontecendo e logo chamou um microbiologista, que por sua vez chamou um psiquiatra, que nunca vira algo semelhante em toda sua vida e chamou um psicólogo, que ficou assustado e chamou um exorcista e esse último também teve malogro em seus esforços. Todos fracassaram vergonhosamente na ciência e na religião. Não conseguiram uma cura e nem um diagnóstico preciso. Precisavam pelo menos aliviar o sofrimento da paciente que a essa altura teve que ser amordaçada para que seus gritos de desespero e dor não assustassem os outros pacientesdo hospital e suas mãos tiveram que ser amarradas na cama para evitar que, em seu desespero insano, a garota não dilacerase o próprio rosto ou crânio. Anestésicos, analgésicos, soníferos etc… Gastaram-se os recursos da farmacologia moderna sem se conseguir efeito algum. O neurologista Abdo Kouzaquê Silva veio com uma solução pouco ortodoxa, uma lobotomia. Pouca gente sabe mas é verdade que a lobotomia pode, em casos extremos, quando todos os outros recursos já falharam, ser usada para aliviar a dor. A lobotomia ou leucotomia (que é o nome correto) não acaba com a dor. O paciente ainda sente a dor mas ela não o incomoda. Eu não consigo imaginar como seja isso mas é real. Feita a lobotomia, o alívio de Keyla não durou muito, se é que houve algum, pois quatro dias depois ela morreu.

Uma semana depois do falecimento de Keyla, Edevaldo, o humilde clínico geral, cuja consciência moral estava muito incomodada com o silêncio dos colegas sobre o caso, estava insone. De madrugada foi a diante do computador, em sua casa, procurar alguma informação sobre a moléstia misteriosa. Começou procurando na internet mas foi só na deep web que encontrou apenas um site que mostrava centenas de casos idênticos ao de Keyla ocorrendo no mundo todo e com final igualmente trágico. Essa praga surgiu na segunda metade do século XX quando a televisão se tornou popular. Igualmente misteriosos eram os motivos pelos quais os poucos que sabiam dessa ameaça não revelavam nada a ninguém. A única exceção era esse site anônimo na deep web. Edevaldo não conseguiu mais dormir naquela noite. No dia seguinte ele comprou um enxadão, pá, cavadeira manual ou “cavoca”, um galão de gasolina, fósforos e uma trena. Tirou de sua sala a TV, levou-a ao quintal de sua casa. Cavou um buraco de sete palmos de profundidade, jogou a TV dentro, jogou gasolina e pôs fogo. O resto que sobrou da queima ele cobriu com terra e naquele lugar plantou grama para disfarçar. Em sua casa nunca mais houve outro aparelho de TV e quando lhe perguntavam por que ele não tinha televisão em casa, ele ficava meio sem jeito, meio vacilante, e acabava dizendo apenas que a TV atrapalhava um pouco a rotina de sua casa.

 
Duarte Cosaque
Enviado por Duarte Cosaque em 08/07/2016
Reeditado em 08/07/2016
Código do texto: T5691448
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