Trágica data

I

De P. até Z. A distância é de aproximadamente 7 verstas. Mas na noite passada Sacha imaginou que eram por volta de cem. Imaginou também que estaria atrasado para o aniversário de A., pois já passavam das dezoito horas e, ainda estava na metade do caminho, próximo a D..

O seu raciocínio lento e ousado naquele instante compreendia a própria presença com tal exatidão na cerimônia de anos, sendo como capital importância para...

Ainda bem que ele [sempre] tinha alguma desculpa fantástica para diminuir o grau dessa magnitude. Porém, não sabia se sempre utilizar-se-ia de seu criativo ímpeto na elaboração de desculpas. E, lhe era notório que precisaria dum belo aval para poder sair incólume daquela problemática situação, na qual se colocara, pelo fato de chegar atrasado. Isso estaria demonstrando que não preocupava-se com a importante data, mas quem sabe se não tomasse algum cúmplice as coisas ficariam amenizadas. Era esse o seu pensamento e, ficava arquitetando algo entre sua agitação de logo chegar e, sua mente ebulindo. Era essa uma de suas peculiaridades; a pressa, mesmo que com total razão, aliada a sua vaidosa tempera, a qual deixava-lhe num estado eufórico. E, isso se devia ao fato de que ele parecia sentir-se bem em se arriscar de tal modo, porque disso teria chances de colocar em prática a sua verve. Agora, algo que o não deixava bem sob qualquer aspecto era ver a sua honra manchada.

Os seus anelados cabelos brilhavam, conforme atravessava as iluminadas ruas sob o sereno daquele dia. Isso simetrizava com seus concentrados olhos e, seu sorriso inseguro, mas que demonstrava uma [certa] singularidade com seu trêmulo queixo.

Pela primeira vez desde que maduro tornara-se (e isso parecia ab aeterno), lembrou-se de trazer um presente para A.. Afinal, fôra ela que recomendara para ser ajudante-em-chefe na tipografia da cidade de P.. A única coisa que ele instintivamente fez foi agarrar-se ao embrulho que detinha um laço de feltro, coisa da qual tanto o reconfortara pela sua textura. Era o presente [da sua querida] aniversariante. E, cada vez que avançava alguns metros a sege, recordava-se do encontro que teve pela manhã com um proprietário d'almas judeu S, dando-lhe uma irreversível sensação de ter perdido infinitamente seu tempo.

II

Quando finalmente chegou à propriedade de A., Sacha sentiu-se eriçado, parecendo que tinha espinhos tal qual um porco-espinho. Na comicidade que sua imaginação vagava com a seriedade da situação era algo inevitável para ele. Sabia que era um refúgio para suportar o sentimento que seguia após [conceber] um engraçado e, soou em sua mente os seus sentimentos por C., deixando tingido dum escarlate soporífico, lembrando duas tâmaras ao invés das suas costumeiras bochechas brancas.

Foi quando viu-o no hall de entrada, dando as boas-vindas a um tio que acabara de chegar numa cadeira de rodas e, A. tomou a dianteira e o interpelou educadamente:

— Mas se não é o aniversariante do dia (dando um tapinha leve nas costas do amigo enquanto esse ainda se levantava do abraço que dava em seu tio). Perdoe-me chegar em tal hora Kei (disse Sacha vexado).

C. que também aproximava-se do local olhou-o de revés, talvez mais admirada com sua imprevista chegada, porque a uma hora tardia daquela para um amigo tão importante para ambos, nem esperavam que viesse a tal horário sem uma explicação plausível como a do tio, que a cadeira de rodas explicitava uma boa desculpa, do que com seu despreparo numa data especial.

Foram ditas mais algumas palavras à meia-voz por ele, deixando-no aliviado só quando chegou o deputado R.. Ele era padrinho de A..

— Olá, caro R***! Veio prestigiar o nosso Kei, não é? (soltando um riso abafado logo em seguida).

— Ora, ora. Se não é o Sacha! Como vai garotinho? Sim! Mas como não poderia de vir dar um abraço e dar as felicitações para o meu querido afilhado (dando ênfase nas palavras). Cheguei logo cedo e ajudei-o nalguns fortuitos preparativos.

Uma arrepiante onda pela testa de Sacha levemente passou, dando-lhe a sensação pela manhã ao estar em companhia dum ser tão dissimulado como aquele judeu.

Mesmo assim continha o seu quê de verdade as palavras proferidas pelo padrinho.

Então A., que naquela ocasião um terno azul trajava, seu cabelo estava à ucraniana e, sapatos italianos calçava [comprados por C.], disse faceiramente, como se tivesse encontrado naquele mesmo instante Sacha.

— Vejam só quem está aqui! Se não é o sempre atrapalhado Alexander Dizia entredentes como que para disfarçar algo que não queria estragar a sua ansiosa insegurança, passada como que por encanto por Sacha, do que sua felicidade ante a chegada de seu amigo.

— É Kei. A sorte é que promulga esse tipo de feito. Veja só. Disse cabisbaixo, enquanto abraçava o seu antigo camarada.

Outrora seria de se estranhar que Sacha chegasse na festa, ainda que atrasado, mas esse efeito dominó era causado sobretudo pelo fato da presença de C. e, pela desforra que tanto magoava-o. Nada menos do que seu pretendente, que era um proprietário de terras polaco.

III

Com um olhar rápido e penetrante de C., Alexander compreendera. Ele dava uma rápida desculpa ao seu amigo por ter de se ausentar e, subia num lance de escadas, de maneira discreta, até chegar ao cômodo que ela lhe acenava a entrar. Era a biblioteca. A porta fechou-se delicadamente, pelas trêmulas mãos de Alexander, para não fazer barulho e, quem sabe atrair num segundo qualquer presença alheia e, naquele instante desagradável. Apenas a viu fechada e, disse num amoroso jorro:

— C*** S***, eu a amo!

Não teve tempo da reação de C. se fazer notar nos olhos de Alexander e, se ouviu uma forte pancada na porta e, um brado. Era P., o pretendente de C. que seguiu atentamente o passo dos dois. Ele estava conversando com a família remanescente de Aleika (uma tia, uma tia-avó e, mais dois primos; os demais haviam falecido), no momento em que percebeu e disse que havia de tomar refresco ao ar livre, quando teve a ideia de ver o que eles [dois] iam fazer juntos, mesmo a distância que C. tentava impor, como que para despistar qualquer dúvida do repentino assomo, instantes depois, de Alexander ao segui-la, e que foi de importância capital para a ferrenha decisão de P., que se sentiu como que tentado a participar dum duelo pela mulher e honra que aquele homem rompia de vergonhosa forma a seu ver.

— O que é isso? — Seu comportamento era irascível, mas quando viu Alexander agachado aos pés de C. cuspiu furiosamente — Calúnia! Apunhalas-me pelas costas. Sua meretrice!

Os dois nem tiverem tempo para se refazer daquela bisonha cena de ciúmes doentio, quando passou a única ideia plausível para àquela ocasião pela mente de Alexander.

Ele ouviu tudo aquilo desesperadamente e, num giro rápido pelo local, encontrou duas espadas desembainhadas [que eram relíquias trazidas da Arábia]. Pegou uma firmemente e, lançou a outra aos pés de P.. Já nos primeiros lances, o punho de Alexander deu uma desacelerada e, foi com um movimento estocar a coxa de seu rival, que começou a sangrar.

Não perdendo tempo à fragilidade de seu oponente, ele fez um certeiro ataque e, a espada foi alojar-se no estômago de P., que languidamente caia ao chão, perto do pé da escrivaninha, emitindo um entrecortado grito e, dirigindo um olhar [já] não tão furioso, mas de incompreensão para C., que revirava seu olhar a tamanha cena de violência.

Sabendo de seu fim por ter feito tal coisa, Alexander abrira a janela da biblioteca e, se jogou dali. Era do terceiro andar e, caiu no duro chão da varanda. Foi uma morte instantânea. Apenas se via uma poça de sangue na região da cabeça e, ombros revirados do suicida.

IV

Uma curiosa mixórdia amontoava-se no local da queda. Outras pessoas, também dirigiam-se tardiamente para o ringue, que provisoriamente instalara-se numa sala de estudos. C. só enxergava [confusas] luzes ao seu redor. Aleika ficou chocado com o que presenciara e, quedou-se mudo com o embrulho que carregava junto com a cadeira de rodas e, seu tio para a sala de visitas.

Na manhã seguinte, já acordados da terrível noite, C. dormira sob efeito de dopagem [feitas ao cuidados dum médico], convidado da festa, resolvera junto com Aleika mudar-se para S., num apartamento. Por que se não fizessem isso, corriam de enlouquecerem; o único elo que os prendiam alegremente à vida, havia sido terrivelmente rompido, através duma violenta morte, trazendo-lhes apavorantes sequelas. Um ar de escuridão total pairava sob a visão dos dois em cada canto da casa.

Semanas depois já instalados no novo lar, os dois à passeio, uma aconchegante, mas ainda tímida noite jorrava em ambos, a fractal luz da esperança, provinda da Lua, sobre os irmãos, que enfim conheciam as noites brancas de S..

***

São Paulo,

26 de setembro de 2008

Notas:

1- Sacha é o diminutivo de Alexander em russo.

2- Proprietário de almas era um negociante de servos (camponeses).

Felipe Valle
Enviado por Felipe Valle em 06/08/2016
Código do texto: T5720471
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