Homem Binário

Os vizinhos jamais perceberam nada de estranho. Eles eram casados. Ele, saía para o trabalho logo cedo e voltava perto do meio dia. Ela, por sua vez, saía depois da uma da tarde, e voltava logo ao anoitecer. Não se sabia que tipo de relação estranha eles tinham, já que nunca eram vistos juntos. Talvez pelos horários, que jamais coincidiam em algo. Devia ser um desses casamentos de fachada, mantido apenas pelos filhos. Mas qual! Os filhos sequer moravam com eles, viviam com os avós.

Se bem que se a memória não me falha, nunca ninguém viu os dois juntos em todos esses anos. Um vizinho que conversa esporadicamente com eles afirma que são muito parecidos um com o outro. Já ouvi falar de casais que de tanto conviverem acabam por desenvolver características partilhadas – em suma, a parecer um com o outro. Talvez fosse isso mesmo.

O marido era um tipo alto, com cabelo já rareando no alto da cabeça. A mulher era um pouco mais baixa que o cônjuge, mas com uso de calçados de salto alto quase se equiparava ao marido.

As pessoas ali não pareciam – ou queriam – se importar com a estranha rotina do casal, uma vez que tinham suas próprias rotinas para viver. Ninguém se perguntou sobre o porquê do casal nunca andar junto. Talvez essa falta e curiosidade se devessem ao cotidiano dos vizinhos. Todos saiam de casa logo cedo em direção ao trabalho e voltavam tarde, já extenuados e esgotados pelo stress e pela abusiva jornada de trabalho. Já que por causa dessa rotina diária, os pais não tinham nenhuma curiosidade de saber o que se passava na casa do casal misterioso, o menino tinha. E como tinha.

Certa feita, eu brincava com minha bola no quintal quando por obra do acaso e de uma árvore no caminho da bola, esta, voou para o quintal do casal. Pensou em pular o muro baixo e resgatar a redonda, mas em sua inocência pueril decidiu pedir aos donos da casa pelo brinquedo.

Rodeou a casa, andou pela rua, foi até a casa dos vizinhos, bateu na porta e... nada. Bateu novamente e novamente a resposta foi um nada. Ninguém veio atender. Como poderia acontecer aquilo, se era domingo e nem o homem nem a mulher foram vistos saindo de casa? Quando pensou que seria melhor pular o muro, eis que obtém alguma resposta, ou quase isso.

Com um rangido que denunciava a falta de lubrificação das dobradiças, a porta abriu-se. E não foi grande a surpresa ao perceber que ninguém a tinha aberto. Entrou com cuidado; já que a porta estava aberta, era só pegar a bola e dar o fora dali. Como as casas dali tinha plantas diferentes, eu não sabia o caminho para o quintal. Enveredou por um corredor e dobrou a direita. Para sua surpresa, havia um quarto com vários brinquedos. Lá estava o carrinho do Guto, o boneco do Power Ranger vermelho que eu reconheci como o do Carlinhos.

Não me detive ali. Precisava pegar a bola.

Agora eu me lembro de que entrei num quarto e o vi. Céus! Que susto levei!

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Nos arquivos da PM da cidade, o delegado analisava novamente a ficha do suspeito: “Nome: Alencar Pires Santos, 42. Pedófilo”. Depois das informações básicas seguiam informações sobre a observação das atividades do suspeito.

“O suspeito sai cedo de segunda a sexta feira, por volta das 6h30, voltando por volta das 11h00. Por volta das 13h sai uma mulher, que por sua vez retorna às 18h...”.

Seguia assim por mais de duas dúzias de páginas digitadas em letras pequenas. Depois de reler a ficha do suspeito o delegado a largou em cima da mesa, soltando uma baforada de fumaça. Sua mesa à primeira vista parecia uma desordem completa, mas como cada um compreende sua bagunça, o delegado sabia onde estava cada uma de suas coisas. Um par de canetas sem bocal descansava em cima do relatório que havia terminado. Revisou o relatório. Leu com uma atenção dispersa, mas deteve-se na parte em que falava da morte do suspeito.

Dizia que na quarta-feira, 24, receberam mandado de prisão contra o suspeito. Quando chegaram, pouco depois do meio dia, trataram de cercar a casa, impossibilitando a fuga. Mas o que os policiais não achavam que fosse acontecer, aconteceu. O suspeito não se entregou; pelo contrário: reagiu e atirou contra os policiais, ferindo um deles no abdômen. Reagindo aos tiros do sitiado, a polícia conseguiu alvejar o mesmo, que morreu no local. Lá, a polícia descobriu em um dos quartos um estúdio de maquiagem e algumas perucas. Ficou claro que junto com as investigações puderam provar que o homem também era a mulher: uma dupla identidade. No entanto, o que mais chocou foram as fotografias: o registro das atividades do pedófilo, além de um menino que estava sendo mantido em cativeiro há pelo menos duas semanas, julgando pelo estado físico.