O transe advindo da ira desconhece a razão

O velho Napa, alcunha de guerra atribuída a Napoleão nos tempos de virilidade e glória, remexia as velharias que estavam encostadas a tempo no paiol. Lá encontrou tantas quinquilharias, que muitas delas já nem lembrava mais. Sistemático, hierárquico e cheio de manias, costumava mandar separar os objetos conforme as utilidades. Instrumentos cortantes de um lado, objetos de limpeza e destoca do outro. Nas paredes, pendurados num grosso varal ou espichadas nos pregos, uma enormidade de ressequidas carapaças, carcaças, arcadas, couro e pelagem de animais. Como costumava gabar-se, na região não havia quem, um só ser e predador que fizesse frente a ele numa caçada. Disparava o gatilho, sorria ao ver o bicho deitar agonizando.

Parou em frente ao cordel de patas de animais. Tinha de tudo. Em tempos de glória, seguia os animais pelas pegadas. Porém, algo lhe chamou atenção. Estacado, espreitou as vistas. Com olhos penetrantes, tentava desvendar o mistério daquelas patas que ainda estavam com as unhas esmalteadas pelo vermelho. Provavelmente pelo tempo, aparentavam ser de cor escarlate. Não contendo a emoção, deixou-se que seus olhos já úmidos, encarregassem de expressar os seus sentimentos e os fios de lágrimas desceram pelos vincos de suas faces. Franziu o cenho e retomou a viagem.

Examinou detidamente a bacamarte, com a qual matou inúmeros pássaros e aves. E após uma gargalhada estrondosa de satisfação, tentou apurar na cabeça quantas bundas sapecou com aquela ferramenta de pólvora. Era ouvir o rebuliço de cães e gansos, que levantava segurando a ceroula e pisando em ovos, saía para o terreiro. Não era nada fácil defender o patrimônio.

Para afugentar a clientela roubadora de frutas, os marmanjos ladrões de víveres e os grileiros de terras, botava caveiras feitas de abóboras nos mourões das estradas. Todas eram terrivelmente assustadoras; porém as que mostravam os olhos esgarçados, boca escancarada num sorriso funesto, orelhas caídas sobre a peruca encaracolada e iluminadas com velas pretas em seu interior, arrancavam arrepios. Cada uma mais estranha e mais feia que a outra.

Por certo tempo, tal iniciativa funcionava. E embora fizesse rodízio dos pontos e tipos de caveiras, sempre recaia na mesmice, motivo dos invasores perderem o medo, voltando tudo à normalidade. Seu Napa mudava as estratégias e fazendo justiça com as próprias mãos, punha-se de plantão nas divisas de suas terras. Com ele, os dois cães de caça e um capataz para transportar as tralhas. Neste caso, a emboscada podia ser montada, ou não, em conjunto com as caveiras. A dúvida d´ele estar, ou não por perto, causava certa confusão nos visitantes noturnos.

Um caso muito discutido na época e que após quase quarenta anos ainda está

sendo apurado pela justiça, pressupõe-se que tenha ocorrido numa dessas emboscadas. E como ninguém sabe ao certo e quem poderia dizer o que realmente aconteceu é o acusado e suposto autor, e este defende-se dizendo que o episódio não foi com ele, os relatos dizem que foi numa noite escura, daquelas que metem medo até em corujas. A incoerência começa nesse depoimento, pois é ingênuo acreditar que uma noite qualquer possa meter medo em bichos de hábitos noturnos, que além de acostumados a presenciar o não visto, não se assombram com os estampidos, berros e olhos que saltam das órbitas durante a noite. Porém, naquela noite as corujas empoleiradas nos mais altos galhos piaram estranhamente e assustados com um clarão repentino que iluminou o céu, lobos uivaram.

Bom, antes devo dizer-lhes que usarei o termo Fulano como autor e personagem central da estória, mas peço encarecidamente que apenas leiam e não comente com ninguém; pois pode ser que saibam do ocorrido com Napoleão e por consequência, geraria quebra de sigilo e suposta acusação. E assim sendo, eu na condição de escritor, seria o primeiro a ser indiciado pela justiça como testemunha e conhecedor do caso. Faço saber que a última coisa que almejo em vida é problema com a justiça. Agradeço! M. G.

“Ainda arranco-lhe o fígado e tomo o seu sangue”. Santo Antônio do Brejeiro – Juramento feito em 1950

Prevendo que soubessem de suas maquinações intempestivas e invenções em defesa de suas terras, o Fulano inovou no ardil e fantasiou-se de espantalho. Um espantalho com olhos esbugalhados, cabelos desgrenhados, uma bocarra de ia de canto a canto na cara e vestes folgadas e espalhafatosas. Pendurou na algibeira uma adaga e ao notar silêncio absoluto, dava um grunhido cortante. Os gritos estridentes espantavam os morcegos frugívoros que ao se deslocarem de uma árvore para outra, tinham as asas despedaçadas pela lâmina afiada da adaga. Os cães e o capataz dormiam, ou pelo menos, fingiam dormir. Nunca tinham acompanhado algo tão insano. Parecia que o Fulano estava em transe, tomado por forças malignas. Vez por outra, arregalavam os olhos e entreolhavam-se, tentando decifrar o que se passava com o senhor; que por sua vez, adquiria novas formas caricatas. Estava tão fora de si, que conseguia se metamorfosear em criaturas esquisitas e horrendas.

A certa altura da noite, quando os anjos prenunciavam que a jornada terminaria em paz, o espantalho metamorfoseado de orangotango precipitou para cima dos cães. Um conseguiu escapar, mas o segundo não teve a mesma sorte. Com as unhas felpudas como aguilhões, o indomável gorila cravou-lhe a barriga, esguichando sangue longe. O capataz veio em socorro e foi alvejado por duas bolas de fogo que escaparam das ventas do quadrúpede. Rodopiando, o serviçal caiu estatelado no chão; quase pondo fim aos seus dias inglórios.

O Fulano teve a bunda mordida pelo cão que safou do ataque. Porém, o outro, soltou um latido agoniado, estirando as quatro patas. Este também não caçaria mais. Uma nuvem de morcegos sanguinários baixou sobre ele. Voando ligeiros e em revezamento, escapavam da adaga que zunia no ar.

Rugindo furiosamente, o orangotango arrancou lhe os olhos. Cambaleante, na tentativa de agarrá-lo, o capataz acercou-se ao animal. Inútil. Melhor se tivesse mantido distância, assim seu fim seria menos doloroso. Secamente, Napoleão cravou-lhe as patas na barriga; deixando-o com um rasgo enorme. Imediatamente, era mais um a tombar. As vísceras misturaram com o sangue, formando uma pasta mal cheirosa, grudenta e avermelhada sobre a terra.

As corujas piavam alucinadamente. Árvores envergavam pelo sopro do vento. Aos poucos, o Fulano foi voltando a si. Pasmo, estacado, repara, contabiliza o estrago ao seu redor. Tarde demais. Perguntava insistentemente para o seu íntimo o quê acontecera com ele e ali. Seu corpo estava ereto, porém sua consciência vacilava sob uma torrente de pensamentos indecifráveis. Remorso. Arrependimento. Punido pelo devaneio, morria aos poucos. Arrastou o capataz por uns cem metros e ao chegar num vale profundo, peneirou-o lá. Uma nuvem de morcegos o seguia. As gotas de sangue que sobraram, uma ou outra, salpicaram o ar e as copas das árvores. Deu cabo nos restos mortais do cão. Passara de cão caçador a caçado.

Repentinamente o céu foi cortado por um raio de fogo. O brilho faiscado cobriu léguas de distância. Ao seu lado, um velho e frondoso jacarandá foi dividido ao meio, caindo uma banda pra um lado, e a outra, pra outro. Fez o sinal da cruz. Benzeu-se, como benze o mais infeliz pecador. Pegou as sobras da tragédia e caminhou de volta à sede da fazenda. Por onde andava, a maldição causada pelo transe da ira que desconhece a razão o seguia. Pressentindo que coisa pior estava por vir, sentia-se constantemente atormentado. De longe avistou a sede. Metade dela estava em ruinas. Parecia que o mesmo que acontecera com o jacarandá, ocorrera com o imenso casarão. O vento soprava um forte cheiro de algo queimado. Talvez carne chamuscada.

Correu em disparada. Ainda tinha disposição e força física para tal. Adentrou o ambiente e foi direto ao quarto da esposa; e o que viu em cima da cama não passava de um toco de carvão incinerado. Desconsolado, correu ao quarto dos filhos. E o que encontrou era exatamente o que já tinha visto: agora eram três os tições queimados pelo raio de fogo. Tomou fôlego, engoliu uma baforada de ânimo e rumou para o paiol. Lá chegando, na tabuleta caída, a inscrição: “Ainda arranco-lhe o fígado e tomo o seu sangue”. Tudo aquilo devia mesmo ser coisa do diabo, obra do iníquo.

O dia clareava. Os galos cantavam tristonhos. Nada mais lhe restava. Era o que lhe passava pela cabeça e soltando um berro ensurdecedor, cravou-lhe a faca, uma lambedeira afiada e pontiaguda, no lado direito da barriga. Uma nuvem de morcegos voou os arredores. Por sorte, foi socorrido a tempo pelo administrador; porém, quase ficou sem o fígado. Como não houve ninguém que tomasse o seu sangue, misteriosamente, a tabuleta sumiu do paiol. Lúcifer também possui seus truques, magias, enigmas e como exímio douto em trapaças, faz escola.

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 31/08/2016
Reeditado em 31/08/2016
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