O Velório

Rasguei as regras do meu tempo e sofri as consequências. No relógio, faltavam alguns minutos para a meia-noite. Não tinha costume de chegar em casa depois das vinte e duas horas. E tinha esquecido que era uma sexta-feira, dia treze de agosto. O mês já não era bem-vindo. E para piorar, precisava passar em frente ao cemitério.

Estava na praça, bem em frente ao boteco do Chico. Nas conversas, sempre historinhas sinistras. Macabras. Recordavam fatos de pessoas mortas. Fantasmas. Assombrações. Tentava mudar de assunto, mas insistiam. Quando resolvi ir embora, já era tarde da noite. Assustei. Mas juntei toda minha coragem e parti, sozinho.

Caminhava com as pernas acereladas. Meus pensamentos já haviam chegado em casa. E eu ainda ali. Temeroso. Olhava para um lado e outro. Quando entrei na rua do cemitério, logo parei. Tinham menos luzes que do normal. Pensei em retornar e pedir para dormir na casa de alguém, mas fiquei com medo de voltar e não encontrar ninguém. Respirei fundo e comecei a caminhar, do outro lado da calçada.

Ao passar bem em frente do cemitério, uma senhora de meia idade, apareceu atrás de mim. Não sei de onde saiu. Não tinha visto-a. Cumprimentou-me e com voz suave pediu minha alma. Assustei! Arregalei os olhos! Ela sorriu e disse que ela brincadeira. Mas precisava de um grande favor. Não consegui nem responder. Ela nem se importou. Continuou:

- Meu jovem, preciso de uma gentileza. Meu ex-marido está sendo velado. Foi minha grande paixão – ela curvou a cabeça emocionada. Soltou algumas lágrimas e continuou – preciso ir em casa trocar de roupa e o Demazinho morre de medo de ficar sozinho. Sei que está morto, mas coitado. Faça companhia pra ele, por favor. É bem rapidinho.

Eu sempre tive medo de cemitério. Nada contra os corpos. Nem fantasmas e nem os gritos que ouvi dizer que nascem da terra. Mas não entrava por nada. Só mesmo em casos extras especiais e no período da tarde. Só assim. Avisei-a. Ela parece que entendeu.

Porém quando preparava para seguir meu caminho, ela aproximou-se. Abraçou-me forte. Tentei desviar, mas foi mais rápida. Ela estava em vantagem. Em determinadas circunstâncias, o medo diminui alguns dos nossos sentidos e ações. O certo ali seria esticar as pernas, mas estava com o raciocínio lento.

Aquela senhora tocou a minha nuca com as mãos macias e perfumadas. Senti minha consciência ser apagada por alguns segundos. Quando voltou, achei tudo muito estranho. Comecei a sentir os pensamentos, que já estavam na minha casa, voltar e entrar no cemitério. Ela perguntou se eu tinha mudado de ideia. Por mais que quisesse dizer não, disse sim. E ainda, contra minha vontade, disse que sempre achei o cemitério um local sedutor e seguro. Ela sorriu e consentiu com a cabeça. Tomou minhas mãos e levou-me para dentro do cemitério, onde estava sendo velado o corpo do Demazinho.

Entrei! Contra minha vontade, porém sem resistir e entender. Como já estava dentro da pequena salinha onde estava o corpo, pedi a ela que não demorasse. Tratei de sentar naquele banco de pedra. Ela, com um sorriso sarcástico, acenou com as mãos e foi embora. Em menos de dois segundos, levantei e fui pedir ela para trazer algo para comer e ao chegar na porta, ela tinha desaparecido. Estremeci!

Rapidamente sentei. Comecei a imaginar muitas coisas. Já tinha medo de cemitério. E estava ali, de madrugada, ao lado de um morto que nem conhecia. E de madrugada. Comecei a dar vida a muitas imaginações. Tentava desviar os pensamentos dali, mas não conseguia.

Comecei a refletir! Pensei, pensei e cheguei a conclusão que era melhor ir embora. E eu podia! Ninguém saberia. Não conhecia aquela senhora. Muito menos o Demazinho. Pela primeira vez naquela noite consegui sorrir. Estava livre!

Levantei do banco de pedra e preparava para sair, quando um gato marrom, pelos falhos, apareceu na porta. Parou na minha frente. Ficou ali. Fitou-me. Depois o corpo. Achei melhor sentar e esperar o gato ir embora. Gatos costumam ser impacientes. E ali não tinha nada de interessante.

E quando achava que o gato iria embora, o danado entrou na sala. Com os olhos fixos em mim, rodeou o corpo do Demazinho. Subiu no caixão. Tentei espantá-lo. Para meu espanto ele “rosnou” e arreganhou os poucos dentes. Achei melhor deixar ele a vontade. Ele caminhou sobre o corpo. Depois desceu. Encarou-me e saiu da sala.

Em poucos segundos ouvi miados de dor. Depois mais forte. Intensos. E aos poucos foram silenciados. Nesta hora tive mais medo. Queria fechar a porta, mas poderia ser pior. Ficar trancado com um morto que nem conhecia? Não seria uma boa ideia. Também não tive coragem de levantar do banco para ver o que acontecia. Apenas aguardei. Pensei em aproveitar que o gato tinha saído e ir embora. Mas tive medo. Talvez algum animal tivesse comido aquele felino. E eu poderia ser a próxima refeição. Resolvi esperar.

E o sono começou a incomodar. Tentei vencê-lo. Foi uma luta de gigantes. Não podia dormir ali. Jamais. E o tempo foi passando. Até que não consegui segurar. Adormeci.

- Acorda aí rapaz! Acorda! Ande logo. Acorda!

Abri os olhos assustado. Estava diante de dois coveiros. Perguntei onde estava o corpo do Demazinho. Eles perguntaram que corpo e o que eu estava fazendo ali. Disse que estava no velório do Demazinho. Eles disseram que não teve velório nenhum. Achei muito estranho, mas tratei de ir embora. Foi uma noite cansativa.

Ainda sonolento e confuso, quando atravessei o portão do cemitério, ouvi uma voz suave e elegante perguntar se eu queria flores para enfeitar túmulos. Reconheci aquela voz. E de fato, era a senhora da noite anterior. E trazia várias rosas.

- Meu jovem, estas flores são para você! Posso te dar um abraço? Vamos conversar. Meu nom…

Gritei que não! Não e não! Fui mais esperto e sai correndo, antes que ela tocasse com as mãos suaves em minha nuca e roubasse minha manhã, como fez com a noite.

Cláudio Francisco
Enviado por Cláudio Francisco em 05/10/2016
Reeditado em 05/10/2016
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