Furões Surreais - DTRL 29

O jovem Leonam não conseguia dormir. Ao apagar os olhos, as lembranças daquela tarde sinistra invadiam sua memória. Mesmo após várias horas, seus pensamentos conservaram viva a voz fina e aflita, num pedido de socorro, da mulher de cabelos claros e compridos. Ela corria desesperada pelo parque e tentava conter o sangue que jorrava de seu pulso. Desequilibrada, aos poucos foi diminuindo a aceleração dos passos e perdendo as forças. Após alguns minutos ela caiu semimorta, deixando à mostra o furo no pulso.

Foi o segundo ataque que Leonam presenciou em menos de vinte e quatro horas. O primeiro foi de um senhor na praça. Enquanto cochilava num banquinho, teve as artérias carótidas perfuradas. Um golpe certeiro e aparentemente mortal. Diante da situação, o jovem foi embora às pressas. Não queria assistir a morte daquele senhor. Torceu para que ele sobrevivesse, assim como gostaria que a moça do parque tivesse sua estadia na terra prolongada por mais alguns anos. Era o mínimo que podia fazer para amenizar a sua culpa.

Após suas preces, conseguiu desacelerar suas inquietações e descansar sua alma. Dormiu.

No dia seguinte, ainda com o cheiro da madrugada no ar, um grito ecoou por toda a rua! Acordou os vizinhos. Era a Sra. Matilde. Não era cinco horas da manhã quando abriu o portão da casa aos berros, seguida por seus dois filhos e a netinha. Em poucos minutos formou-se ali um grupo de pessoas. Perguntaram o que houve e pediram calma. Com a voz amedrontada, ela respondeu:

- Todos os meus enfeites e taças foram jogados no chão. Acordei assustada com o barulho.

Martha e Julião, pais de Leonam, disseram que em algumas casas do bairro ocorreram algo semelhante. Objetos estariam sendo jogados no chão, assustando os moradores.

- Vovó, estou com medo. - disse a pequena Anna, agarrando-se a longa saia de sua avó Matilde.

- Calma, minha linda. Vamos descobrir o que está acontecendo no bairro.

Os moradores, entre murmurinhos e reflexões, ficaram por ali até o sol reinar de forma absoluta. Imaginavam e tentavam descobrir quem ou o que estava trazendo medo e desespero aos moradores do bairro. Acreditavam que os episódios na praça e no parque, com as pessoas furadas no pescoço e nos pulsos, tinham ligação com as quedas dos objetivos de vidro ocorridos nas residências.

Começaram a levantar inúmeras hipóteses. Acreditavam que podia ser alguma maldição, criaturas do além, monstros ou fantasmas.

Enquanto nasciam diversas alternativas, Leonam, sentado na calçada, cabisbaixo, sentia um doloso remorso. Não tinha coragem de revelar a verdade. Apenas pensava e enchia a cabeça de ideias em busca de uma solução.

A tensão diminuiu com o comentário ilógico de sua irmã Lanna, considerada esclarecida e entendida sobre casos de terror:

- Aff! Não percebem? São vampiros modernos. Estamos no século vinte e um. Cansaram do sangue no pescoço e resolveram variar. Atingem o pulso, quebram enfeites e taças para assustar suas vítimas.

A garota foi surpreendida por um leve puxão de orelha. Martha disse a filha que não era momento de brincadeiras. Estavam todos em perigo. Risco eminente de morte. Ela coçou a orelha. Concordou com a mãe.

Depois de algumas horas de conversa naquela manhã de domingo, os moradores retornaram para suas casas, sem esconder o temor, incertezas e a pergunta: quem será a próxima vítima?

Ninguém se aventurou a sair na rua. Estavam com medo. E a tarde passou tranquila. As estrelas começaram a ocupar seus lugares.

Por volta das vinte e duas horas, Leonam despertou com o som estrondante de sirenes. Olhou pela janela e viu os paramédicos do Serviço de Atendimento Móvel sair as pressas com o Sr. Daniel. Estava imobilizado e coberto por um lençol. Mesmo alguns metros de distância, dava para enxergar a grande mancha de sangue entorno do pescoço. Alguns vizinhos, abraçados, choravam compulsivamente. Era mais um ataque daquele tipo. O terceiro na semana. Sem contar os inúmeros casos de objetivos que de forma misteriosa caiam no chão.

O medo continuava a dominar o dia a dia de todos no bairro. Ninguém sabia o porquê e muito menos quem estava realizando aquelas atrocidades.

Leonam, debruçado na janela, observou seus pais atemorizados no portão da residência. Acompanhavam a movimentação da polícia. Conversavam com vizinhos no intuito de traçar o perfil do suspeito ou suspeitos. Adiantaram que era profissional. As únicas pistas eram pequenas gotas de sangue, o que não significava muita coisa. As autoridades estavam intrigadas, assim como os moradores.

Ele desceu as escadas bem devagar. Aproximou-se dos pais e comentou com a voz quase inaudível:

- Sei quem é o responsável pelos ataques!

- Cale menino! Não diga besteira! - disse o pai, empurrando-o para dentro da casa. Continuou – nem a polícia sabe quem é este criminoso perigoso. Se falar, o suspeito pode vir atrás de nós. Matar você, sua irmã, eu e sua mãe. Nunca mais diga isto.

- Mas papai, eles ...

- Você ouviu o seu pai, menino! Já para o quarto.

Ele deu mais uma espiada em toda aquela confusão. Subiu para o quarto. Com os olhos arregalados. Limpou as pequenas manchas de sangue no chão e alimentou os bichinhos. Sentou na beira da cama e começou a observá-los. Brincavam como se nada de grave tivesse acontecido.

Novamente refletiu. Olhou aqueles animais dóceis e aparentemente inofensivos. Mas que escondiam um comportamento agressivo, violento e perigoso, cujo qual ele era o único culpado. Ele conseguiu despertar no casal de furão a intensa busca pela maldade.

A vida de Polly e Raio-X era controversa. Mesclada por momentos de diversão e angústia. Eram o xodó da família e terror dos vizinhos. Amigo fiel de Leonam e inimigo infiel de senhores e mulheres de cabelos claros e compridos.

No comportamento diário, Polly era mais extrovertida que seu companheiro, o Raio-X. Ambos esbanjavam humildade e simplicidade. Caminhavam pelos cômodos da casa, parques e praças sempre com alegria. Por onde passavam arrancavam sorrisos e elogios. No universo íntimo daquelas duas espécies de mamíferos, o anúncio silencioso da festa do susto e morte. Era uma armadilha animal. Ora feria o corpo, outrora abalava e bagunçava o estado emocional de suas vítimas.

O jovem ganhou os animais de estimação de sua mãe, a contragosto de Julião. Desde o início, avisou que não era uma boa presenteá-lo com bichinhos tão sensíveis. Temia que o filho fizesse mal a eles. Martha insistia em defendê-lo. Afirmava que jamais faria algo ruim. Muito pelo contrário, ajudaria a melhorar seu comportamento, inclusive com sua irmã Lanna.

No princípio o casal de furão recebia mimos em excesso e muito carinho. Um tratamento normal. Porém Leonam começou a ter outros planos. E deu certo. Conseguiu envenenar as mentes dos animaizinhos.

Ele começou a brincar com os animais de forma diferente. Apoderou-se de dois bonecos de panos da coleção de sua irmã. Um assemelhava-se a um vovozinho e outro, a imagem de uma mulher de cabelos claros e compridos. Ensinou os furões a atacar os bonecos. Só assim tinham direito a ração. Forçava-os a enfiar os dentes no pescoço, outrora nos pulsos. E sempre a recompensa era um farto prato de comida.

Outros ensinamentos ocorriam na cozinha de brinquedo de sua irmã. Os mamíferos eram obrigados a derrubar os copinhos e taças de plástico. Após a tarefa ganhavam alimentos. E foi assim durante anos de convivência.

Polly e Raio-X cresceram com aquelas lições. Tornou-se uma lei. Começaram a realizar a tarefa sozinhos, para orgulho e vibração de seu dono.

O tempo foi passando. O entendimento e fúria dos furões cresciam na mesma proporção. Passaram a derrubar copos e taças dentro de casa. No início o dono dos animais de estimação sorria. Incentivava e alimentava-os.

A coisa começou a sair do controle quando aqueles bichinhos dóceis começaram a ter crises de identidade. Criaram uma percepção distorcida da existência e consequentemente, passaram a assimilar bonecos de panos com seres vivos. Naquelas mentes, nasciam um eclipse psicológico entre ficção e realidade, para desespero do jovem.

O casal de furão não se contentava apenas com os bonecos. Queriam novas aventuras. Vítimas vivas e sangue real. E passaram a gostar de ouvir barulhos dos copos e taças estilhaçarem no chão. Aquilo passou a dar-lhes prazer. E aumentava a fome. Começaram as sequências de barbaridades no bairro. Mordidas nos pescoços, pulsos e quebra de objetos nas casas, fazendo nascer o medo na vizinhança.

O sentimento de culpa nos acontecimentos catastróficos maltratava Leonam. Ele não suportava mais e resolveu pedir ajuda aos pais. Foi difícil, porém entregou os culpados, sem isentar sua participação nos ocorridos.

Seus pais ao tomarem conhecimento, disseram que ele jamais deveria ter feito aquilo. Foram ríspidos e castigaram verbalmente o jovem. Consideraram a atitude irresponsável. Colocou a vida dos vizinhos em risco, principalmente dos homens mais velhos e mulheres de cabelos claros e compridos. Ele pediu perdão e mostrou-se disposto a consertar seu erro.

Depois de um longo sermão, Martha teve uma ideia que talvez pudesse funcionar. Compartilhou com o marido e o filho:

- Bom, não podemos colocar fim a vida destes animais, mesmo com todo mal que fizeram. Sentenciá-los a morte seria ignorância. A solução seria reeducá-los. Inverter o aprendizado. Reimplantar uma conduta ética e saudável. Temos chances de recuperá-los.

Entraram em concordância. Prontamente ele começou a reeducar o casal de furão. Estava esperançoso. Acreditava que os animaizinhos teriam um novo comportamento. Seriam dóceis e afáveis.

Foram algumas semanas de dedicação. Muito esforço e pouco resultado. A Polly começou a ficar deprimida, enquanto Raio-X não conseguiu esconder sua profunda tristeza com a nova vida.

Numa certa manhã, Leonam foi acordado pelo casal de furão. Estavam com muita fome. Ele achou estranhou. Uma das coisas que tinha ensinado aos bichinhos durante a empreitada era uma alimentação balanceada. Eles estavam eufóricos e ansiosos. Nasceu a preocupação. Para aumentar sua aflição, quando olhou o chão percebeu pequenas gotas de sangue. Imaginou o pior.

Resolveu alimentar o casal e decidiu que logo depois, verificaria se estava tudo bem com os vizinhos. Tudo indicava que Polly e Raio-X tiveram uma recaída. Quando enchia a vasilha de ração, ouviu um grito vindo do quarto de sua mãe. Desesperou! Correu, abriu a porta e deparou com sua genitora em prantos. Deitado em seu colo estava o Sr. Julião, inconsciente e com o pescoço ensanguentado. Pediram ajuda aos vizinhos e levaram para o hospital.

Depois de algumas horas tensas e nervosas, os médicos disseram que não havia risco de morte, apesar de o furo ter sido profundo.

Ainda no hospital, o dono dos furões e sua mãe chegaram a conclusão que não tinha jeito. O melhor seria se desfazer deles. Decidiram pedir ajuda ao controle de zoonoses. Explicaram a situação e eles propuseram a recolher os animais.

No final da tarde receberam a equipe. A funcionária ao ver o casal de furão brincando alegremente, encantou-se. Abraçou-os. Disse que não acreditava que eles cometeram aquelas atrocidades.

- É um mal entendido! Veja como são dóceis. Gentis. - ela abraçou-os, contente. E avisou: - Vou conversar com a coordenação e pedir autorização para ficar com os bichinhos.

Mãe e filho balançaram a cabeça com sinal de negativo. Tentaram convencer a mulher de cabelos claros e compridos a desistir da ideia. Alertaram que eles eram traiçoeiros e perigosos. Não deu importância. Disse que os furões gostaram dela. E estava disposta a tudo para ficar com os animais de estimação.

Antes de serem levados, Polly e Raio-X fixaram os olhos em Leonam. Apesar da carinha dócil não escondiam o desejo de vingança. Mostraram os dentes e passaram a língua entorno da boca. Foram embora observando com atenção todo o trajeto. Certamente voltariam para o jantar. Porém, antes da refeição brincariam com seus familiares e vizinhos.

Tema: Animais de Estimação

Cláudio Francisco
Enviado por Cláudio Francisco em 28/10/2016
Reeditado em 31/10/2016
Código do texto: T5806257
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