Eli, Eli, lama sabactáni? - DTRL 29

Eli, Eli, lama sabactáni? - DTRL 29

Ele é

Ele é o brilho e a luz sem os quais eu não posso ver

E ele é

Insurreição, ele é rancor

Ele é a força que me fez ser

Ele é

Ele é o brilho e a luz sem os quais eu não posso ver

E ele é

A desobediência que nos mantém juntos

(He Is - Ghost)

Prólogo

O relógio na parede marcava 21:25.

Seu sossego estavas prestes a terminar. Desligou o rádio onde ouvia um CD gravado pela amiga, que morava no centro da cidade. Tinha um pouco de tudo que gostava: Iron Maiden, Black Sabbath, King Diamond e Dio. Havia coisas novas e interessantes cujos nomes estavam anotados em um papel junto à mídia: Therion, Hammerfall e Amon Amarth. Lembrava de ter ouvido algumas dessas antes, em um programa da universidade local dedicado ao heavy metal e derivados.

Sheila se interessava muito por música pesada, e tinha conseguido uma boa coleção de fitas gravadas com o programa e até alguns CDs, cópias piratas, que amiga lhe conseguiu. Mas há alguns meses atrás, sua preciosa coleção havia sido vítima de uma barbárie e ela havia sido proibida de manter aquele tipo de coisa em casa, por isso era obrigada a preservar um pequeno acervo clandestino.

I

Sérgio era um namorado legal, apesar de olhar torto para Sheila quando ela aparecia com suas roupas pretas e olhos pintados. De qualquer forma, era gentil e fazia Clarisse, a mãe da garota, muito feliz. Não precisava de um pai, não queria. O seu a abandonara aos seis anos de idade, não antes de quase matar a esposa espancada. Desde então, se conformou com a ideia de que seriam apenas as duas, uma cuidando da outra.

Não se importava tanto com isso.

Era melhor do que ver a mãe apanhar quase todos os dias. Contudo um pequeno vazio se instalou em sua alma. Era difícil aceitar o fato de ter sido rejeitada por alguém que deveria amá-la. Era como se o pai tivesse levado um pedaço de sua vida com ele.

A mãe também havia sofrido um grande impacto com a partida do marido, e desde então se esforçava para parecer bem, na tentativa de fazer a filha sentir-se mais segura.

Agora, com treze anos, por mais que não quisesse outro homem em suas vidas, Sheila não queria impedir a mãe de ser feliz, por isso fazia o possível para tolerar Sérgio.

No entanto, desde o casamento, as coisas começaram a mudar drasticamente em sua vida. O padrasto insistia que elas precisavam ir para a sua igreja, seguí-lo espiritualmente, pois segundo sua religião, o homem deveria ser a cabeça da família.

Clarissa foi sem questionar. Estava disposta a fazer esse casamento funcionar de forma pacífica, mas Sheila resistiu. Chegou a ceder por vezes, porém não gostava do ambiente abafado, das músicas chatas e da forma como as pessoas a olhavam.

Até que, em certo dia, sua paciência se esgotou. Bateu o pé e disse que não iria mais ele não iria obrigá-la. Já fazia muito aceitando-o em sua vida, não seria forçada a fazer algo que não queria.

Naquele dia conheceu o outro lado de Sérgio

II

"Bem-aventurado aquele que, em nome da caridade e da boa vontade, pastoreia os fracos pelo vale das trevas, pois ele é verdadeiramente o guardião do seu irmão e o descobridor das crianças perdidas. E derrubarei sobre ti, com grande vingança e furiosa raiva, aqueles que tentam envenenar e destruir meus irmãos. E você saberá que o meu nome é Senhor quando eu derramar minha vingança sobre você." (Ezequiel 25:17) *

Quando conheceu Clarisse em um bazar beneficente promovido pela sua igreja, Sérgio ficou encantado pelo seu jeito recatado e tímido. Soube que ela e a filha haviam sido abandonadas pelo pai da menina.

Não era o ideal para ele. Um servo temente a Deus merecia um destino melhor do que criar a prole de um pecador, entretanto a fragilidade e os grandes olhos castanhos dela o fizeram repensar.

Não se arrependeu.

A mulher era virtuosa e seria uma excelente esposa, tinham inclusive conversado sobre ela deixar o emprego após o casamento. Além de tudo, ela começou a acompanhá-lo espiritualmente, frequentando os cultos de sua igreja regularmente.

O único problema era a filha.

Sheila era uma garota adolescente, o que já era ruim por si só. Um rapaz seria menos complicado, pensava. Além disso teve a impressão de que a menina não tinha gostado muito dele. Até parecia-se com a mãe, mas tinha um semblante sombrio, escurecido pelas roupas exclusivamente pretas e pelos olhos pintados de preto.

A mocinha o rejeitava, contudo tentava esconder por causa da mãe. Perambulava pela casa com sua expressão de constante descontentamento, tal qual um espírito agourento. Sua simples existência o incomodava como se a ela carregasse em si o presságio do mal. Já nas primeiras semanas de casamento, orou pedindo orientação divina e Deus lhe revelou que havia algo muito errado com aquela jovem.

Tentou, por algumas vezes, convidá-la gentilmente a ir até a igreja com ele e Clarisse. Quando a mãe insistiu, Sheila acabou cedendo, porém, Sérgio notou o incômoda da garota dentro da casa de Deus. Revirava os olhos e bufava a cada palavra do pastor.

Aquilo não era certo. Que tipo de pessoa se sentia incomodada na presença do Altíssimo? Passou a ter cada vez mais certeza da presença de algo nefasto se manifestando ali.

Então ela começou a recusar os convites.

Como se isso não bastasse ainda havia aquelas músicas infernais cheias de blasfêmias contra o Pai, Apesar de não entender uma só palavras delas, tinha certeza que suas mensagens eram tenebrosas e afrontavam o Senhor Deus. Aquilo, e as imagens profanas e obscenas coladas na parede do quarto da menina.

Buscou orientação nas orações e nas sagradas escrituras. Passou uma semana em profunda meditação. Certa noite, cansado do trabalho, acabou pegando no sono durante a oração que fazia antes de dormir. Durante os poucos minutos deste cochilo, teve uma grande revelação: viu Sheila ser abraçada por uma silhueta negra que exalava um insuportável cheiro de enxofre. Logo depois ouviu uma voz vinda dos céus:

“Filho meu, és minha espada na terra. Destrua o mal.”

III

“Vistam toda a armadura de Deus, para poderem ficar firmes contra as ciladas do Diabo, pois a nossa luta não é contra seres humanos, mas contra os poderes e autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais.” (Efésios 6:11-12)

Sheila terminava um trabalho de história, deixado para a última, hora, quando foi interrompida por batidas na porta. Era a mãe, vestida com um conjunto azul de corte simples e elegante.

“Vamos para a igreja, filha? Hoje é culto de jovens.”

“Ah, mãe, eu tenho que terminar um trabalho para amanhã. Não dá.”

A menina pode ouvir os passos vindo da sala. O rosto de Clarisse, de um sorriso discreto, passou para uma expressão apreensiva.

“Já está na hora de você começar a seguir sua família. O que vai sentir quando Jesus levar seus escolhidos e você ficar?”

A voz de Sérgio soava mais como um desafio do que como uma pergunta.

“Eu não vou. Tenho trabalho pra fazer.”

“Você vai sim. Anda logo, vá vestir uma roupa decente e vamos.”

Disse ele dando as costas.

“Não. Você não manda em mim.”

Clarisse levou a mão à boca quando ouviu as palavras saírem da boca da garota. Em um acesso de fúria por ter sido contrariado, começou a bradar:

“Viu o que acontece com uma criança criada sem pai? Mas você vai me respeitar. Eu sou o homem da casa agora.”

Sob os olhos assustados da esposa, que não sabia como reagir, Sérgio entrou no quarto de Sheila, empurrando a porta com força, quase acertando-a no rosto

“Tá vendo isso aqui?” Perguntou para a esposa enquanto apontava para um pôster do álbum Live After Death, da banda Iron Maiden. “Você permitiu essas coisas dentro de casa, por isso a sua filha é rebelde. Só que agora você é uma serva do Senhor, e nessa casa não entra mais obra do diabo.” Com um puxão arrancou o pôster e rasgou-o.

“Não!.” gritou Sheila. “Mãe, a senhora não vai fazer nada?”

Em um esforço inútil se atirou ao chão para juntar aqueles pedaços da imagem da qual gostava tanto.

Porém o homem não parou por aí.

Continuou arrancando e rasgando todos os outros pôsteres. E quando estes acabaram, começou a revirar as gavetas da cômoda, jogando as roupas pelo chão, até encontrar a caixa com os CDs.

“Deus me mostrou a obra que o diabo está operando através de você. Mas eu não vou deixar você destruir o meu lar.” Disse ele.

Sheila não sabia se o padrasto se dirigia a ela, ou ao tal diabo. Olhou incrédula enquanto ele pegava algo da gaveta, não imaginou que fosse capaz de tamanha maldade. Se levantou do chão já com lágrimas nos olhos e só conseguiu murmurar um “não” abafado antes que ele, com os olhos cheios da fúria de Deus, jogasse um CD no chão e pisasse em cima.

O som do plástico quebrando foi um punhal a penetrar o coração da menina.

“Sérgio, não precisa fazer isso.” Interveio Clarisse se aproximando amedrontada. “Deixa as coisinhas.”

O homem lançou um olhar de reprovação para a esposa. A mulher se calou, pois reconheceu naqueles olhos a mesma fúria agressiva do ex-marido. Sentiu, por um instante, toda a dor e humilhação voltando. Então se calou, apavorada.

Quando o ele pegou o segundo CD na mão, Sheila, foi invadida pelo sentimento de raiva e frustração. Como aquele homem, até pouco tempo atrás estranho, tinha a ousadia de entrar em sua casa, em sua vida, e dizer o que deveria fazer? Como se atrevia a destruir aqueles objetos tão importantes para ela? Não tinha muitas coisas legais. As revistas de onde tirava as imagens coladas na parede eram velhas, compradas com as moedas que conseguia juntar. Os CDs eram poucos, gravados pela amiga.

Avançou sobre ele.

Agarrou o objeto como se fosse um mimo precioso. “Iron Maiden - Seventh Son of a Seventh Son”. Ela mesma havia escrito o nome com letras irregulares na cópia pirata de um álbum pelo qual tinha profunda devoção. Tentou tomá-lo de voltal, no entanto o impacto da grande mão de Sérgio no seu rosto a fez cambalear. Sentiu a pele da bochecha romper e o calor do sangue escorrer pelo corte.

Caiu sentada, meio tonta enquanto ouviu a mãe soltar grito de protesto e desespero.

“Você não corrigiu, agora eu vou fazer isso. O diabo vai sair dessa casa.”

Enquanto ouvia, um a um, seus CDs serem quebrados sob os pés do homem, Sheila ficou ali, caída, sem forças para reagir enquanto sentia o rosto queimar. O barulho do plástico a fez pensar em ossos sendo triturados.

“Você nunca vai mandar em mim.”

Disse sentada, com os cabelos cobrindo o rosto. A frase inflamou ainda mais a raiva daquele que pensava estar fazendo o necessário para salvar sua família do mal.

Sheila não viu quando o padrasto tirou o cinto. Clarisse não foi capaz de impedir, pois foi empurrada e trancada para fora do quarto.

O acessório de couro golpeou a menina nas pernas, mas ela abafou o grito. Do lado de fora, a esposa batia na porta em desespero, pedindo que, pelo amor de Deus, que ele não a machucasse.

“É em nome de Deus que eu faço isso.” Respondeu ele.

Outro golpe, dessa vez nas costas. A fivela estalou em uma das costelas fazendo Sheila arquear o corpo e soltar um gemido alto.Tal qual um carrasco a serviço do Deus Pai, Sérgio começou a enumerar as cintadas, como se aplicasse um castigo em uma pecadora condenada às chibatadas.

As pancadas se dirigiam às pernas, desprotegidas, pois Sheila usava seu short de dormir. Em uma delas, a fivela acertou o osso do joelho, a dor aguda a fez gritar. Lágrimas escorriam de seus olhos espremidos.

A voz grave e carregada de ódio do homem contou quarenta golpes.

A menina só conseguia chorar. A pele havia rompido em alguns lugares. A dor se espalhava pelas pernas, não mais que a raiva se espalhava pelo seu coração.

Quando Sérgio deixou o quarto, Clarisse entrou aflita. Tomou-a nos braços, embalando-a, como quando era apenas uma menininha.

“Calma filha. Não chora. Deus sabe todas as coisas.”

As palavras da mãe foram o vento a atiçar uma centelha.

IV

“A mulher sábia edifica a sua casa, mas com as próprias mãos a insensata derruba a sua. (Provérbios 14:1)

Depois da terrível noite, Clarisse sentia-se arrasada.

Amava e tinha de respeitar o marido, e inunca imaginou que ele fosse seria capaz de fazer algo contra elas. Havia saído do sério porque Sheila o desafiou. Sérgio jurava querer apenas bem da família. Agiu daquela forma pois queria salvá-la das mãos do diabo. Era um servo de Deus. Havia conseguido levar a esposa à presença do Altíssimo e queria o mesmo para a garota.

Ao menos é nisso que se esforçava para acreditar.

Entretanto doía ver sua filhinha choramingar pelos cantos com o rosto e as pernas inchadas. No entanto, mais doído ainda era o desprezo da filha. Ela quase não olhava a mãe no rosto, evitava ficar nos mesmos lugares da casa e falava apenas o necessário. Clarisse sabia que a menina estava com raiva dela por não a ter defendido.

A mulher se culpava.

Pelo abandono do primeiro marido, por ter sido condescendente com Sheila, pela rebeldia da dela, que havia culminado no ataque de fúria do marido.

Por isso não pôde expressar a enorme felicidade ao ver a filha acompanhá-la ao culto novamente. A garota fazia isso por ela, mesmo com raiva, pois tinha medo de ver a situação com seu pai se repetindo. Por isso, sentiu-se a pior pessoa do mundo por não tê-la defendido. Sheila havia se fechado por causa do abandono do pai e desenvolveu um instinto de proteção o qual Clarisse não soube corresponder adequadamente. Mas talvez a menina pudesse encontrar algum conforto na religião. Torcia por isso.

Quando o pastor falava sobre como Deus era um pai amoroso, pensou sobre que Sheila, mesmo não aceitando Sérgio, pudesse aceitar a Deus..

“Se você quer que Deus mude a sua vida, se você sente essa necessidade em seu coração, venha aqui que eu vou orar por você.” Disse o pastor com sua voz plácida. Diferente do padrasto, enérgico e explosivo. Tinha um rosto calmo e estava sempre sorrindo. O que diria se soubesse um dos membros de sua igreja havia deixado o rosto de sua enteada inchado impedindo-a de ir para a escola durante uma semana?

Clarisse se encheu de esperança quando Sheila, e mais umas duas outras pessoas, se aproximaram do altar. Ao chegar em casa,estava transbordando de alegria. Finalmente veria paz em seu lar?

Dormiu pensando o quão felizes poderiam ser de agora em diante. Mas acordou no meio da noite com uma sensação estranha, como se alguém andasse silenciosamente pela residência. Sentou na cama. Sérgio dormia o sono dos justos.

Um pensamento atravessou sua mente.

“Sheila!”

Levantou-se com cuidado e se dirigiu ao quarto da filha. A porta estava entreaberta. Estendeu a mão para empurrar, contudo foi assaltada por uma onda de pavor. Sentia ali uma presença aterradora e inexplicável. Tentou espiar pela brecha. O quarto estava escuro, mas apertando os olhos, viu a garota dormindo.

Porém, algo a perturbou. Viu uma silhueta escura sentada na cama, de costas para a porta. Pensou ter visto uma mão negra acariciando o rosto da filha. Piscou algumas vezes, e nada mais havia ali.

Voltou para a cama atormentada.

No dia seguinte, se convenceu de que tudo não passara de um sonho.

***

“E desde a hora sexta houve trevas sobre toda a terra, até à hora nona.

E perto da hora nona exclamou Jesus em alta voz, dizendo: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mateus 27:45,46)

Quando o pastor estava com a mão em sua cabeça, Sheila sentiu toda a tristeza irromper.

“Por favor, me ajude.”

Não sabia se pedia ao pastor, a Deus ou a qualquer outro que estivesse ouvindo. A sensação de vazio estava ainda mais intensa. Junto a ela, havia um presságio sutil de que as coisas realmente poderiam mudar.

Em seu coração pedia ajuda. Pedia para Ele a aceitar como filha e preencher o vazio que o seu pai havia deixado, pois de tempos em tempos, aquele espaço se enchia de ódio, dúvida e sofrimento. Não queria mais sentir aquelas coisas.

Todavia ao final da oração não sentiu nada diferente.

Ao chegar em casa, sentiu-se mais vazia do que antes.

Então Deus também não a queria?

Talvez o padrasto estivesse certo. Havia algo de ruim dentro dela, e nem mesmo um ser divino e misericordioso poderia ajudar.

Sonhou com a igreja.

Estava só entre os bancos.

Se aproximou do altar feito de uma pedra branca, bonita. Atrás, a parede havia sido pintada com uma imagem do paraíso, onde pessoas sorriam enquanto caminhavam por um lindo jardim em meio a pássaros e leões.

No canto da imagem havia um homem cujo escuros olhos tristes pareciam observá-la. De repente ele piscou e começou a se mexer. Lentamente saiu da pintura e veio em sua direção.

Ao ver o cenário, antes estático, se modificar na sua frente, foi tomada pelo medo. O céu azul tornou-se cinza com tons avermelhados, como se algo queimasse em algum lugar por ali. Os leões agora perseguiam e atacavam as pessoas que corriam em desespero.

O homem caminhava lentamente em sua direção enquanto rasgava suas vestes revelando um corpo castigado por açoites. As feridas sangravam.

Então caiu aos seus pés, de joelhos. Quando levantou o rosto, Sheila viu a coroa de espinhos enterrada em sua fronte. Cortes em seu rosto tornavam difícil ver as lágrimas que escorriam. Com esforço ergueu as mãos furadas e disse com ódio.

“Veja o que o pai me fez.”

***

Ao contar o sonho para a mãe, foi inesperadamente repreendida. A mulher, profundamente indignada com as palavras da filha, revirou os olhos furiosa.

“Tá vendo? É isso que dá ser rebelde. O diabo te atormenta porque você trouxe ele pra cá com essas suas músicas horríveis.”

“Mãe, são só músicas…” Tentou se justificar com tentando controlar a raiva. “Você sempre fica do lado dele.”

No fundo, a dúvida e o medo cresciam no coração de Sheila. Havia mesmo aberto as portas de casa para o demônio?

Nunca teve grande fé, nunca conseguiu acreditar totalmente em Deus, no entanto o medo que sentia era bem real. Deus castigava quem comungava com o diabo, e até onde sabia, era culpada por isso.

“O Sérgio tá certo. Você fica idolatrando essas coisas ruins, não quer ir na igreja. Se você vira as costas pra Deus, ele vira as costas pra você.”

Aquelas palavras gelaram seu coração. Então Deus, realmente não a queria. De imediato, lembrou do homem ferido no seu sonho e de sua acusação. Se ele, um bom filho, foi abandonado pelo Pai, o que aconteceria com os filhos rebeldes?

***

Quando Sérgio chegou do trabalho, Clarisse se trancou com ele no quarto. Sheila tinha certeza que falavam dela. Foi para seu quarto chorar baixinho. O sonho não lhe saía da cabeça, bem como a imagem do padrasto com o olhar furioso. A ideia de ser castigada pelo seu comportamento a assombrava constantemente. A questão era: Quem seria seu algoz? Sérgio ou Deus?

Sentou-se no chão. Estava com raiva, mas não queria deixar transparecer. Balançava o corpo para frente e para trás enquanto o rosto se contorcia em uma careta que se esforçava para conter o barulho do choro. Respirava pela boca, pois o nariz já escorria abundantemente. Era como se algo lhe trespassasse e queimasse o coração.

Esfregou a mão no chão em um movimento amplo, tentando aliviar a tensão, e tocou algo embaixo da cama. Um pedaço de papel. A tristeza substituiu a raiva ao se lembrar dos posteres rasgados. Pegou o papel. Era um pedaço pequeno, não dava para reconhecer a imagem. Virou-o e entendeu que tratava-se de um fragmento de uma revista, daquelas que continham letras de música. Limpou os olhos embaçados de lágrimas e leu o trecho em inglês em letras apertadas:

“Agora tenho você comigo, sob meu poder

Nosso amor se fortalece a cada hora

Olhe nos meus olhos, você verá quem eu sou

Meu nome é Lúcifer, por favor, segure minha mão” **

V

“Eu não me curvo perante nenhum dos seus ídolos em obediência, e aquele que disser que você precisa se curvar a mim é o meu inimigo mortal!” (O Livro de Satã: 5)

O relógio marcava 21:40. Escondeu o CD melhor que pode. Logo a mãe e Sérgio chegariam da igreja. Às vezes eles a deixavam ficar em casa, outras, acabava cedendo e indo. A pintura atrás do altar a fazia estremecer, pois toda vez que olhava para ela, só conseguia enxergar o cenário de desespero de seu pesadelo, e o homem machucado, caído de joelhos.

Naquela noite conseguiu escapar. Mas não sem ouvir um sermão.

Sentou-se na cama e pegou um livro emprestado da biblioteca da escola. Logo ouviu o barulho do carro estacionando na garagem.

“Filha, já dormiu?”

“Não, mãe.”

Abriu a porta do quarto para falar com a mãe e deu de cara com mais três pessoas. Rostos conhecidos: o pastor João, sua esposa, irmã Clara, e Wagner, membros ativos da igreja. Seus olhos confusos correram de lá para cá. Já eram quase dez da noite. O que faziam ali?

“O pastor veio fazer uma oração pra você, Sheila.” Disse o padrasto, com seu tom autoritário. “Eu contei tudo o que aconteceu, e ele veio para orar e tirar essa coisa ruim de dentro de você.”

“A única coisa ruim aqui é você.” Era uma resposta idiota, ela sabia, porém foi a única que lhe veio à cabeça. Já fechava o quarto para os indesejados visitantes quando Sérgio a impediu. Empurrou a porta com força, fazendo-a cambalear e cair para trás.

“Não precisa disso.” Ouviu o pastor dizer com sua voz calma, contudo sem fazer questão de ajudá-la.

“Sérgio, não machuca ela.” Choramingou a mãe.

“Isso é pro seu bem.” Disse, forçando-a a levantar.

O grupo se reuniu em volta dela. Todos estavam convictos que ela, realmente, estava tomada por algo maléfico. Mãos se estenderam em sua direção, a do pastor pousou com cuidado em sua cabeça e a oração começou.

“Senhor Deus, que está na terra e no céu, pai da eternidade. Estamos aqui hoje para orar e pedir pela vida dessa jovem.”

E se realmente houvesse algo mau dentro dela?

Se debateria sob o poder daquelas palavras e cairia, como as pessoas que havia visto na igreja ?

“Tu és poderoso, livra esta alma da armadilha de Satanás, que cravou suas garras no coração dessa criança, que quer destruir esta família e jogá-los nas profundezas do inferno.”

Garras!

Podia sentí-las naquele momento, se enterrando mais fundo em seu peito, cortando sua respiração. As vozes foram se elevando, e mais mãos foram colocadas sobre sua cabeça, pressionando-a. Palavras incompreensíveis começaram a soar cada vez mais alto enquanto a menina se encolhia e estremecia. Sentia-se enclausurada entre aquelas pessoas. Imaginou que a qualquer instante um deles enterraria a mão em seu peito para arrancar as tais garras cravadas em seu coração.

O ambiente estava quente e abafado e ela já não conseguia respirar direito. Tentou se desvencilhar, queria sair dali para retomar o fôlego mas foi segurada por Sérgio. Ficava cada vez mais ofegante.

“Mãe…” disse já quase sem ar.

Pensou em pedir para que se afastassem, porém não conseguia articular as palavras. Foi ficando tonta, as imagens se embaçaram. Moveu os olhos para um ponto qualquer do quarto e pensou ter visto o homem ferido ali, lamentando por ela, antes de tudo escurecer de uma vez.

***

Foi transportada para o cenário desolado da pintura. Agora podia ouvir as pessoas gritando enquanto os leões dilaceravam seus corpos. Os pássaros multicoloridos haviam se tornado corvos agourentos. O homem ferido não estava mais ali.

Ao longe enxergou uma figura irradiando luz.

Foi em sua direção.

Pode ver a silhueta de grandes asas abertas contra o horizonte cinza e vermelho. Tudo a sua volta era sofrimento, menos aquela figura.

A forte luz a qual emanava ocultava seu rosto. Uma grande euforia invadiu sua alma.

O ser alado lhe estendeu a mão, e ela a segurou.

Ele a puxou e a envolveu em um abraço quente e confortante. Sheila se encheu de alegria e chorou quando ouviu uma voz suave dizer:

“Não se preocupe, filha, eu estou aqui.

VI

Abra os olhos para que possa ver, homem de mente doentia, e escuta-me, pois confundirei multidões extasiadas! (O Livro de Satã: 2)

No dia seguinte Sérgio teve de ficar no trabalho até mais tarde. Um cliente especial o havia procurado, mas só poderia se encontrar com ele após as 18:00. Perderia o culto, porém ganharia uma boa comissão se fechasse a venda de determinada casa. De qualquer forma teria tempo de observar Sheila sem a mãe por perto.

A preocupação de Clarisse não a deixava enxergar o mal crescendo dentro da filha. Não duvidava da lealdade da esposa, no entanto o coração das mulheres é fraco, e o das mães, mais ainda.

Sabia que o livramento havia começado na noite anterior, com a poderosa oração feita pelo pastor e pelos seus irmãos em Cristo. Estava decidido a terminar o trabalho.

Encontrou a sala escura e vazia, mas logo foi tomado pela fúria ao ouvir o som que vinha do quarto da enteada.

As guitarras harmoniosas e pesadas machucavam os seus ouvidos enquanto o coral, que poderia ter sido algo belo, cantava blasfêmias:

“Dragão Vermelho queimando novamente

E arrastando para baixo

Estrelas e anjos caídos do paraíso para o mundo recém-nascido

Para cumprir a profecia e ser a força a ver.

Veja!

O Dragão Vermelho voando agora e lançando abaixo

Estrelas e anjos antigos caídos do paraíso para a terra flamejante

Paracumprir a profecia

E ser a força no homem mais uma vez, como era no início.”***

Furioso foi em direção ao quarto, pronto para arrebentar a porta, porém a encontrou aberta. Entrou de sopetão e estacou no mesmo instante. A menina estava sentada sorrindo fascinada pela sombria figura sentada ao seu lado.

Uma figura elegante, de cabelos vermelhos e terno escuro. Seus sapatos brilhavam de forma quase insuportável. Voltou o rosto belo e gentil para Sérgio, que sentiu as pernas estremecerem. Teve vontade de correr, mas estava paralisado pelo medo. Os olhos daquele ser eram negros como a noite, e ainda sim, brilhavam.

Quis quis gritar, porém a voz não saiu da garganta.

Sheila o olhou, notando-o só agora.

O padrasto caiu sentado no chão. Não tinha mais controle sobre seus músculos. Era como se aquela presença o privasse do domínio de sua própria vida.

“ O Sangue de Jesus tem poder.” Murmurou com dificuldade.

A criatura riu, divertida.

Levantou-se ajeitando o paletó de corte fino.

Sua presença preenchia todo o ambiente com uma aura nefasta. Sérgio sentia que o ar lhe faltava, e a qualquer momento seu coração iria parar. O ser de cabelos vermelhos se aproximou e abaixou-se, aproximando seu rosto do dele. Sheila parecia não se importar com a cena.

“Eu estava aqui bem antes de você.” Disse com sua voz suave.

O homem estremeceu.

As poucas palavras lhe contaram uma história e lhe esclareceram sobre possíveis consequências de seus atos dali para frente. Foram um soco no estômago, um golpe cruel de realidade, o acordando para a realidade no mundo espiritual que o cercava, o qual achou conhecer tão, mas agora via o quão enganado estava.

Toda a sua coragem para enfrentar o mal, toda sua fé estremeceu no momento em que viu no rosto do ser sombrio a face de um pai.

Sentiu-se só, completamente abandonado. Chorou de medo e vergonha.

“Ei, Sérgio…” Chamou Sheila. “Onde está o seu Pai agora?”

*Esse versículo de Ezequiel é a versão usada pelo personagem Jules, do filme Pulp Fiction. Ele foi quase todo reescrito por Samuel L. Jackson e Tarantino.

**N.I.B. - Black Sabbath

***Draconian Trilogy - Therion

Tema: Criaturas do Inferno - Fanatismo

Keila Fernandes
Enviado por Keila Fernandes em 04/11/2016
Reeditado em 16/06/2019
Código do texto: T5813086
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