Os Roxos DTRL - 29

“A cadela do fascismo está sempre no cio” – Bertolt Brecht

Os Roxos

Seis horas e vinte minutos. Acordei. Meu despertador tocava um barulho irritantemente repetitivo e alto, como sempre.

Precisava mudar o toque para algo mais tolerável. Levantei ainda com o corpo pesado, fiquei a noite toda trabalhando no dia anterior, havia chegado tarde a minha casa depois de fazer hora extra na firma.

Tomei banho, escovei os dentes, e coloquei meu terno preto. Ainda teria uma hora para chegar ao trabalho, se o trânsito ajudasse.

Enquanto me arrumava, olhava pela janela as ruas de meu bairro iluminadas pelo sol da manhã, tudo estava tranquilo.

Ao mudar minha visão para os prédios da frente, vi também um homem no apartamento da frente, ele caminhava orgulhoso com suas vestes militares, era um veterano das forças armadas.

Em suas mãos estava um terno roxo que ele colocava próximo a janela, talvez fosse para alguma festa.

Desci as escadas de madeira de minha casa para tomar café da manhã.

A sala estava bem arrumada, para o meu espanto. Lembrei que quando entrei em casa na noite passada havia derrubado algumas coisas que tive preguiça de apanhar, e que, agora, estavam em seus devidos lugares.

Quando entrei na cozinha, vi meu café posto na mesa. Já estava quase adivinhando o motivo disso tudo, até que ela apareceu.

Mamãe! Como sempre. Ela trajava um vestido vermelho simples e soltinho. Sua carinha fofa de velhinha sorria para mim e dizia com sua voz doce que o café estava pronto.

Fiquei bastante feliz em encontrar mamãe naquela hora. Sua presença sempre me confortava, já que eu vivia sozinho e sem uma companhia tão agradável como ela.

Havia preparado ovos, café e torrada para mim. Era o que ela sempre fazia nos meus tempos de escola.

Ao sair de casa, dei um gostoso abraço em mamãe, peguei meu carro e segui para a empresa.

O dia estava calmo, como sempre no fim de ano na capital. Mas havia algo de diferente, pouquíssimas pessoas nas ruas, todas entrando rapidamente em suas casas.

O que estaria acontecendo?

Cheguei à empresa e não havia ninguém, também. Vasculhei salas, auditório, banheiros, etc.

Entrei na sala de atendimentos onde não havia clientes, e, muito menos, atendentes.

Liguei a televisão para ver se haviam notícias no jornal local, seria impossível ninguém se perguntar sobre o que estava acontecendo.

Era como se só existisse eu, mamãe, e aquelas pessoas que vi na rua. Quando a imagem apareceu, vi a coisa mais estranha da minha vida.

A cena que assisti era a possível explicação para a ausência de pessoas na cidade. Tratava-se de uma cobertura de um comício político em frente ao palácio do governo.

Eram muitas pessoas lá. De vez em quando a cena cortava e mostrava por meio de filmagem aérea a multidão que assistia o comício, mal dando para se ver o que assistiam.

A câmera cortava mais uma vez e focava no ponto de visão do povo e lá estava um palco com um grande tapete roxo, uma mesa com uma toalha de mesma cor e um homem de pé, com a coluna ereta, usava um terno igual às roupas dos que assistiam seu discurso, predominando aquela cor: o roxo.

Enquanto olhava aquele homem e escutava suas terríveis palavras, veio-me a memória de quem era mesmo não entendendo fato de muitas pessoas estarem aparentemente o apoiando, me soou preocupante.

Peguei meu carro, pretendia encontrar algum dos meus amigos que provavelmente estavam lá. No caminho, indagava como 8.000 de pessoas poderiam apoiar um sujeito daqueles.

Liguei o rádio onde seu discurso era apresentado:
“Cidadãos, amigos, irmãos e filhos da pátria. Hoje utilizo o meio democrático para convida-los a exercer sua cidadania no dia das eleições e votarem em um político de verdade que irá salvar esta nação... Durante anos fomos vítimas de governos mentirosos que nos enganavam para ganhar votos, prometiam coisas óbvias e só afundavam nosso país em desemprego, inflação e queda da economia. Nosso país e o nosso povo, merecemos mais do que isso. Acreditem em mim, temos valor. Os nossos governos até hoje trabalharam para atender políticas inúteis que seguiam cegamente bases ideológicas ultrapassadas e nos manter inferiores a outras nações. Somos melhores do que todos eles. Esse é o país do futuro, o povo que hoje vejo em minha frente tem mais qualidades do que qualquer outro. Quem são os Ingleses, Israelenses, iraquianos, chineses e os putos norte-americanos perto de nós. Por isso, venho ressuscitar o nacionalismo perdido da nossa nação. Precisamos voltar a acreditar que somos os melhores. No dia das eleições, faremos história e quem nos impedir, iremos derrubar. Acabaremos com o desemprego, a inflação alta, a crise econômica e a promiscuidade de algumas maçãs podres da sociedade. Pederastas imperfeitos, misândricas malditas e indivíduos de cor deformados. Ontem deixamos nosso aviso. Quem estiver nessa manhã até a meia noite deste dia vestido com qualquer roupa que não seja roxa, será derrubado pela nossa avalanche popular”.

Seu nome, Anselmo Valadares, uma figurinha repetida na política nacional.

Era conhecido por seus discursos autoritários em que claramente defendia práticas de tortura e fazia discurso de ódio contra ideais progressistas e seus inimigos ideológicos.
Algo como um Hitler do século XXI. A princípio, poucos concordavam com ele, o achavam muito instável e com ideias que historicamente só trouxeram retrocesso.

Os poucos que o apoiavam, fazia muito barulho, eram mais uma cria da sociedade pós-moderna que necessita de informações rápidas e já não se importa com nada. Como eles se multiplicaram?

Como conseguiram conquistar o apoio de tantas pessoas que um dia votaram em governos que pregavam o progresso social?

Meus olhos estavam na rua, mas minha mente nas perguntas que fazia a mim mesmo. Quando recobrei a atenção, vi um homem mancando e com sua camisa branca coberta de sangue.

Quase o atropelei quando pisei fundo no freio cantando pneu. O homem caiu no chão. Saí para socorrê-lo e ele estava em choque.

Coloquei-o em meu carro e disse: - Amigo, fique calmo, eu o levarei ao hospital mais próximo.

Ele olhou pra mim com os olhos arregalados e na mesma hora gritou: - Não, não. Os hospitais estão vazios. Leve-me para o esconderijo, lá existem primeiros socorros, pelo amor de Deus.

Segui em frente enquanto ele me instruía a como chegar nesse tal “esconderijo”. Ao chegar ao local, era uma velha escola abandonada e caindo aos pedaços.

Uma instituição pública mal cuidada pelo governo. O mesmo que sofria pressão política da oposição ligada ao Partido Roxo.

Ao chegarmos, eu o peguei no braço e ele pediu que fôssemos até a quadra. Quando entramos no local, estavam mais ou menos umas 100 pessoas.

Eu o levei até um homem vestido de médico e lá encontrei meu irmão, Douglas. Ele me abraçou e disse: - Ainda bem que você chegou, estava morto de preocupado, onde está mamãe?

Naquele momento lembrei-me de mamãe e disse: - Está em casa, ela veio me visitar hoje.

Ao ouvir minhas palavras, meu irmão arregalou os olhos e fez uma expressão de verdadeiro espanto. Logo em seguida começou a gritar: - Meu Deus !!!! Jorge precisamos ir buscar a mamãe agora!

Douglas saiu correndo até um homem trajando uma camisa amarela e perguntou: - Que hora é a marcha? Responde, porra!

O homem assustado pegou o seu relógio, viu que marcava oito e meia e disse: - Já começou.

Saímos às pressas do colégio, pegamos meu carro e fomos em alta velocidade a caminho de minha casa.

Enquanto dirigia sem parar, perguntei: - O que aconteceu?

Ele aflito me respondeu: - Os roxos, Jorge, os roxos. Eles enlouqueceram. Anselmo conseguiu maioria aqui e em outros cinco estados.

As eleições são semana que vem, mas os membros desse partido asqueroso estão atacando pessoas em todas as cidades, qualquer um que não esteja trajando roxo hoje será espancado ou morto.

Assustado com que ouvi, tornei a perguntar: - Mas por quê?

E ele novamente respondeu: - Eles querem ganhar de qualquer jeito e ontem um membro soltou um vídeo na internet pedindo isso. Provavelmente alguém da ala ultraconservadora.

Eu não entendia o estava acontecendo. Até ontem aquele filho da mãe estava totalmente embaixo nas pesquisas, até me espantava que ele houvesse conseguido se candidatar à presidência.

Próximo a minha casa vi uma enorme multidão, no mínimo umas 500 pessoas, era uma sombra roxa que caminhava a passos longos em forma de marcha militar. Fiquei parado. Eu e meu irmão ficamos apavorados com aquilo.

Ao olharmos para a diagonal, vimos um telão mostrando cada rua da cidade onde várias pessoas vestidas de roxo caminhavam e algumas até linchavam quem não vestia a cor.

Em seguida, meu telefone tocou, atendi sem nem ver o identificador. Ouvi a doce voz de mamãe que dizia: - Querido, terminei de arrumar seu quarto e estou saindo de sua casa, vou encontrar sua tia para tomarmos chá. – Desligou! Meu deus!

Cortamos caminho para chegarmos mais rápido.

Quando, enfim, paramos em minha rua, lá estava mamãe com sua bolsa e um vestido vermelho, soltinho, andando tranquila pela rua. Ao olharmos para trás, a sombra roxa e barulhenta se aproximava.

Mamãe olhava aquilo sem entender enquanto meu irmão me informava aos gritos que tinham pessoas armadas com pás, tacos de basebol, tochas, objetos cortantes entre outras coisas que poderiam matar alguém.

Saí do carro desesperado e gritei: - Mamãe, pelo amor de Deus, venha comigo! Ela olhou para mim sem entender e eu novamente a chamei aos berros.

Ao olhar para o lado e ver que aqueles psicopatas corriam em sua direção, ela foi às pressas até meu carro entrando no banco de trás. Douglas desceu e foi para o seu lado, abraçando-a, chorando e dizendo: - Ainda bem que te pegamos a tempo.

Segui em frente na mesma velocidade de antes.

Pelo retrovisor, via um grupo separado dos manifestantes correndo nossa direção. Eles jogavam pedras em meu carro.

Quando dentre todos, um saiu portando uma escopeta, naquele momento engoli seco e falei para meu irmão e minha mãe: - Abaixem-se.

Logo que eles obedeceram meu comando, uma bala acertou o para-brisa traseiro que quebrou em pequenos pedaços, enquanto meu irmão cobria a mamãe.

O segundo tiro foi disparado e destruiu o banco da frente o que me levou a acelerar mais.

Chegamos ao colégio e fomos direto à quadra onde as pessoas estavam desesperadas andando para um lado e para o outro, gritando e chorando.

Perguntei aquele homem de amarelo que chorava o que aconteceu e ele respondeu: - Eles estão vindo, os roxos descobriram que estamos aqui. Estão chegando.

Em poucos minutos, eu ouvia o som de pessoas correndo do lado de fora da quadra.

Esse mesmo barulho só aumentava e sugeria ainda mais que muitos estavam vindo para nos matar.

Logo, uma multidão entrava por todos os lados, derrubando portas e saltando muros, como uma onda.

Que faremos? Como deixamos isso acontecer?

Fim.

Tema: fanatismo.
Gabriel Craveiro
Enviado por Gabriel Craveiro em 08/11/2016
Reeditado em 03/10/2018
Código do texto: T5816728
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