Como um leproso

Não me convidaram, por consequência minha família não foi convidada.

E isso me faz pensar.

Não é de hoje que me distancio, que pouco me afeto, que tão pouco me importo.

Me sinto como um leproso, preso numa bolha imposta por meu espírito, encarcerado pela minha vontade, cárcere este, auto imposto.

E como a lepra o processo foi progressivo, sou mais pária hoje do que era ontem. Já caminhava na estrada sem destino desde meus primeiros relacionamentos.

Um exemplo simples dos sintomas foi minha carreira profissional. Era incapaz de manter máscaras nos primeiros empregos portanto incapaz de manter. Duravam em média um ano se tanto.

Bastava um dia ruim para que eu pedisse a conta, bastava meu comportamento bizarro para que fosse mandado embora.

E nunca lamentei nenhum deles.

Conheci muitas mulheres e poucas me afetaram.

Pensava que não sabia amar, pobre tolo imaturo, até os que padecem como eu são capazes de amar.

Reflito aqui esperando o coletivo nesse sábado tétrico dando respostas do porquê não ter sido convidado.

Tenho receio de ter um rompante de meu fantasma passado e chutar a mesa com as cartas que tenho hoje.

Desenvolvi máscaras quando percebi com a maturidade que meu modo de viver não era aceitável pela sociedade.

Afinal, tenho mais prazer lendo do que falando com pessoas que não me interessam, prefiro ouvir boa música do que ir a festivais onde me tocam involuntariamente, escrever meus textos de autor frustrado do que socializar.

Socializar, palavra difícil de falar e pior, difícil de praticar. Para mim, sem máscara, quase impossível. Minha “doença” não tem cura e aumenta com a idade, diferente da lepra que pode ser tratada mesmo que já tenha mutilado bastante seu portador.

Com a necessidade de expor detalhes das vidas nas redes sociais com fotos, áudios e posts ruins me torno um leproso dos tempos modernos.

Visto como o frio doente(cadáver) que não deseja sair com os “amigos” do trabalho.

Amigos do trabalho.

Outra mentira corporativa, posso dizer que tive poucos amigos reais na vida e destes pouquíssimos vieram dos trabalhos.

Uma forma amarga de ver a vida?

Nunca pensei assim, saboreio um livro bom como um macarrão bem feito, escuto músicas boas como se saboreasse um bolo de chocolate. Mas dá pra contar nos dedos as pessoas que me causaram isso com conversa, com brincadeiras ou com sexo.

Tentei ser o melhor possível com minhas namoradas. Algumas compreenderam minha patologia de maneira mais fácil, algumas partilhavam de outras doenças, algumas não me entendem até hoje.

Parei de me culpar (ou tentar) pelas traições muito cedo, parei de me culpar (ou tentar) por dizer as verdades nos relacionamentos mais tarde.

As traições são verdades utilizadas para destruir ou mudar na marra a dinâmica dos relacionamentos amorosos.

Traí e fui traído, dou risada quando escuto pessoas que dizem não trair.

Já nos traímos ao acordar e seguir uma rotina torturante para sobreviver com um sorriso no rosto. Nos traímos em relações de merda com folgados e folgadas.

Trair a si mesmo é uma característica do sapiens.

Se eu fosse uma carta de tarô seria o eremita. Viveria bem sozinho, com bons livros e boa música.

Eu odeio o mundo?

Eu não odeio ninguém, eu odeio ter de ir a encontros idiotas, conversar com gente vazia, sorrir em comemorações que não me apetecem, falar que amo só para tornar vidas suportáveis, odeio amar e não ter, odeio visitar pessoas quando poderia escrever ou ler, eu odeio conviver.

E isso é e sempre será perigoso pra todo o resto.

Eu posso fingir empatia e chorar em uma cena tocante para a maioria.

Mas eu não sinto nada por quase ninguém.

Eu sou aquele que na situação extrema causará o maior dano e tentará sair impune.

Aquele que envenenaria o café que todos tomam para atingir um único e igualmente insignificante ser.

E vou sobreviver a todos vocês.

Mesmo que me conheça a mais de dez anos e viva a três casas da minha. Mesmo que eu não te visite pois não gosto disso e não por que não gosto de você, mesmo que tenha chorado a morte do seu pai verdadeiramente e não espere nada disso.

Mesmo que não tenha me convidado ao seu casamento.

Hoje dizem que correspondemos de um a três por cento da população mundial.

O coletivo chegou.

Olho da janela uma menina contida em seus movimentos, sentada no banco procurando não encostar em ninguém. Tem um livro nas mãos e não quer fazer contato visual, não quer ser reconhecida.

A porcentagem aumenta a cada dia.

Que máscara vou vestir?

Só por hoje.

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Raoni Barone
Enviado por Raoni Barone em 15/11/2016
Reeditado em 17/04/2022
Código do texto: T5824289
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