A Grande Estufa

Este texto foi escrito para participar de um concurso sui-generis. Como qualquer outro concurso, possui suas regras. Uma delas é que qualquer conto não pudesse ultrapassar os 3000 toques, quantidade suficiente para encher uma página A4 no máximo. Um grande desafio para mim, prolixo por natureza.

Outra regra dizia que em uma parte qualquer do texto a frase "Eu lhe falei de um lugar onde nos sentiríamos no deserto. Sua gratidão me confortou. Partimos em silêncio" deveria aparecer.

Pensei em alguma coisa e o resultado me pareceu bastante agradável. Por isso publico aqui. Espero que gostem do resultado tanto quanto gostei. É como um intervalo para meu próximo conto "de verdade" - que está quase pronto. Obrigado a todos que me acompanham!

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A Grande Estufa

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- A coisa está complicada hoje. Impossível prosseguir.

- Impossível. Pelo menos por aqui.

Meia volta. Caminhamos na direção oposta chapinhando com as botas dentro da água suja. Trinta passos adiante voltamos o corpo, torcendo o tronco para tentar enxergar a praia. Ou o que um dia assemelhou-se a uma. Continuamos a andar sem falar coisa alguma. Há muito que não conseguíamos erva em lugar algum - difícil apertar um. Leo ingeriu mais uma das “azulzinhas” que vinham em caixas com tarja preta, disponíveis em qualquer drogaria abandonada, enxaguando-a com um gole de Vodka importada. Direto do gargalo. Era um barato do qual a gente não conseguia mais fugir. Estendeu o braço em minha direção, apanhei a garrafa e o imitei, apontando o fundo dela para o céu incrivelmente faiscante. A bebida rolou goela abaixo, acalmando o vazio do estômago.

- Preciso comer algo. Essa coisa dá fome. Me cobre?

Não aguardou resposta. Levei a mão direita até a base da coluna e trouxe de lá a nove milímetros automática. Mirei em todas as direções e depois acompanhei Leo com olhos vivos enquanto ele entrava numa padaria onde a água alcançava o pé do balcão. Ninguém por perto ou lá dentro. Retornou com pacotes de bolos industrializados. Comemos as partes boas, dispensando as mofadas.

Atravessamos a Nossa Senhora de Copacabana, a umidade subindo pela calça, afogando o que se arrasta e molhando o que caminha. Sentamos na murada de um prédio que havia sido incendiado por vândalos que passaram por aqui antes de nós. A Princesinha do Mar agora não passava de uma vassala, tomada por água, lixo e destruição. A faixa de areia desaparecera junto com o mosaico da calçada. O mundo submergia aos poucos.

Abaixei o corpo, molhei a ponta do indicador e o experimentei na boca.

- Salgada. Não é apenas esgoto e canos estourados. O mar avança rápido – falei enquanto limpava os farelos do rosto.

- Rápido – repetiu Leo.

- A situação na baixada piorou. A coisa está muito ruim na Zona Oeste também. Milicianos e exército. Muitas baixas, as previsões eram otimistas demais. Está mais rápido em todo o lugar.

Leo arrancou uma flanela do bolso e passou a esfregar com movimentos carinhosos a própria pistola que arrancara do coldre.

- Não posso mais com tanta água – ele disse. Não posso mais, você compreende?

Nossos ossos congelavam sob a roupa molhada. Imaginei que se ficássemos reumáticos ou uma maldita doença contagiosa nos apanhasse estaríamos perdidos.

- Precisamos de roupas secas. Vou escolher uma destas butiques e apanhar algo que sirva.

- Simplesmente não posso. Não agüento mais esse mundo molhado e podre. Não sei até onde consigo prosseguir. – Era um autômato polindo a arma prateada. A Vodka e a pílula azul mostravam efeitos.

- Sonhei com um lugar e acho que sei onde fica. Foi na noite passada. Acho que posso nos levar até ele – eu disse. Leo me encarou e seu olhar perdido me assustou. Eu lhe falei de um lugar onde nos sentiríamos no deserto. Sua gratidão me confortou. Partimos em silêncio.

Marcelo Santoro
Enviado por Marcelo Santoro em 28/07/2007
Código do texto: T583162